Um dos principais nomes da vitivinicultura da Borgonha parece estar em perfeita sintonia entre tradição e modernidade
por Christian Burgos
Albéric Bichot é um homem do mundo do vinho que foge aos esteriótipos. O que você esperaria do proprietário de mais de 100 hectares de vinhedos numa região em que os produtores têm, em média, 4 hectares? E que neste ano, no estande da França na Expovinis, foi o produtor mais bajulado pelos dignatários franceses que visitaram a feira em celebração ao "Ano da França no Brasil"?
Deleitamo-nos ao conversar com Albéric Bichot, um sujeito extremamente espirituoso, transparente, pragmático, apaixonado e atencioso; complexo como os vinhos da Borgonha. Talvez sua personalidade seja fruto da confiança de ser o escolhido para conduzir a Albert Bichot, um empreendimento familiar que se iniciou em 1831.
Como começou no mundo do vinho?
Pertenço à sexta geração de uma empresa que permanece 100% familiar, o que não é tão comum agora na França por causa do sistema de impostos para transmitir heranças. A empresa continua independente. Em 1996, assumi o negócio quando meu avô faleceu. Na verdade, ele veio ao escritório até os últimos dias de sua vida. Então, eram meu pai e três tios, agora eu dirijo a companhia por 14 anos. Entrei em 1990.
"Hoje, ser négociant ou produtor não faz diferença, o importante é o que você tem em seu copo"
Seu avô passou direto para você?
Ele passou para o meu pai, então meu pai para mim.
Por que ele escolheu seu pai e seu pai lhe escolheu?
Porque são loucos... [risos] Meu avô não tinha irmãos, só seis irmãs. Ele teve quatro filhos, meu pai era o segundo e o mais sério. De meu lado, somos cinco filhos, tenho três irmãs, mas elas bebem demais [risos] e meu irmão é muito jovem.
É interessante e até mesmo preocupante ver como as empresas francesas estão tendo que lidar com os problemas de sucessão e impostos sobre herança. Como aconteceu com vocês?
Em primeiro lugar, numa empresa familiar, especialmente quando você tem muitos filhos, a primeira coisa é ter um bom ambiente, sem grandes brigas, e esse é o nosso caso. Então, a família tem que escolher um líder. Se todos quiserem ser o líder, fica uma grande confusão. Conosco isso felizmente não aconteceu. Todos reconhecem que estou protegendo nossos interesses. Além disso, mando-lhes todos os meses algumas caixas de vinho para proteger também a saúde deles... [risos]
#Q#Vocês são produtores e négociants. Como isto aconteceu?
Na realidade, produzimos vinhos desde o século XIX, mas durante dois períodos fomos apenas négociants. A primeira vez foi no fim dos anos de 1880, quando perdemos todos os nossos vinhedos para a filoxera. Nós os reconstruímos com novas vinhas. Depois, durante a II Guerra Mundial perdemos tudo novamente, porque meu bisavô e avô estavam do lado da resistência.
Os negócios foram muito mal e tivemos que vender todas as vinhas para sobreviver. Nos anos 50 e 60, começaram a reconstruir novamente os domains (propriedades). Desde os anos de 60 até o fim dos 90, reconstruímos os domaines e agora temos 100 hectares. Não é nada comparado à Austrália ou Califórnia, mas, na Borgonha, não é ruim... Além disso, somos négociants, e há 10 anos procuramos revolucionar o conceito de négociant.
Ao invés de comprar vinhos prontos, agora compramos as uvas. Construí quatro vinícolas, Chablis, Côte de Nuits, Côte de Beaune e Côte Chalonnaise Mercurey. Dos nossos amigos produtores, compramos uvas com nosso próprio padrão de qualidade, então vinificamos para fazer vinhos Albert Bichot, além de produzir vinhos com uvas de nossos próprios domaines.
Como você diferencia seus próprios vinhos dos que produz como négociant?
Não diferencio. Em termos de enologia é exatamente igual, os mesmos enólogos, a mesma atenção para vinificar. O mais importante é a origem das uvas. Por exemplo, no Gevrey Chambertin temos nossos próprios vinhedos, mas, em alguns casos, as uvas compradas de outras parcelas fazem vinhos melhores. Então, honestamente, hoje, ser négociant ou produtor não faz diferença, o importante é o que você tem em seu copo. No fim, o produtor é Albert Bichot, mas o que está no copo, se é négociant ou produtor, não é o ponto. Isso é uma revolução na Borgonha.
Quando sua família começou a reconstruir seus domaines ela comprou as propriedades que tinha antes?
Não, infelizmente, ou felizmente, tivemos que encontrar novos vinhedos.
Neste momento vocês voltam a ser négociants e produtores...
Diz-se hoje que um produtor de sucesso se torna négociant e quando um négociant é bem sucedido, torna-se produtor.
Por quê?
No fim, é a mesma família. Nossa paixão é o vinho, que vem de nossos vinhedos ou não. O mais importante é a vinificação, a qualidade das uvas e o que você encontra no final em sua taça.
E o sistema de impostos sobre herança?
Costumava ser insano, mas, felizmente, com o atual governo está melhor. Está mudando, você não paga mais todos aqueles impostos na transmissão da herança. Paga se vender a companhia que herdou. Não sou rico, sou apenas potencialmente rico. Ficarei rico e pagarei os impostos se vender a companhia, o que não é o caso.
Depois de seis gerações, não é minha meta, não sou um capitalista, sou depositor, somente quero transmitir o know-how, a companhia, os vinhedos. Meu pai, meu avô, meu tataravô, nunca ficaram ostentando carros luxuosos, jatinhos ou amantes [risos]. Vivemos fazendo vinho, curtindo, dividindo nossas paixões, e é isso. Se fossemos mesmo capitalistas, venderíamos a empresa. Mas depois disso o que faríamos?
"Diz-se hoje que um produtor de sucesso se torna négociant e quando um négociant é bem sucedido, torna-se produtor"
O que será da próxima geração?
Tenho um filho, com quatro anos, safra 2005. E uma filha de 2003. Próximo filho em 2010, espero. [risos]
#Q#Fale sobre os seus vinhedos e o processo de vinificação.
Temos quatro grandes propriedades, cada qual com sua vinícola. Insisto nisso porque alguns dos meu concorrentes na França têm uma grande vinícola onde vinificam Côte de Beaune, Côte de Nuits, Chablis, Côte Chalonnaise etc. De nosso lado, somos mais "domaines spirit oriented" (filosofia orientada aos domaines), então temos uma propriedade em Chablis, na cidade de Chablis, o Domaine
Long-Depaquit, com 65 hectares e ainda compramos algumas uvas. Na Côte de Nuits, está o Domaine de Clos-Frantin, onde temos Echezeaux, Grand Echezaux, Gevrey Chambertin, Clos-de-Vougeot etc. Temos uma vinícola lá e compramos uvas apenas para Côte de Nuits. Então, Côte de Beaune, em Pommard, temos o Domaine du Pavillon, onde vinificamos apenas os Côte de Beaune. Por fim, o Domaine Adélie, em Mercurey, com exatamente o mesmo sistema.
Em cada propriedade temos uma estrutura de vinificação independente e um enólogo responsável pela produção do primeiro dia nos vinhedos até o vinho pronto. Não temos um superenólogo fazendo todos os vinhos iguais.
Você é contra os "winemakers popstars"?
Sim, mesmo eu não quero ser um. O mais importante é o nome da empresa.
Você diria que os négociants se tornarão os maiores produtores da Borgonha?
É possível, sim, por causa do sistema de impostos. Se você tem 4 hectares e morre, tem que transmitir a terra. Um hectare é vendido para pagar os impostos de herança, e você tem três filhos. Um filho não está interessado e sua filha está casada com seu concorrente, um pesadelo... [risos] Por fim você tem que vender pelo menos um terço de sua propriedade. E será comprado por grandes négociants, se eles puderem pagar, pois agora os níveis de preços estão aumentando.
Qual o preço de um bom hectare?
Um tinto regular da Borgonha deve custar 20 mil euros por hectare, mas não é muito lucrativo, os preços de venda não são muito altos. Já para Clos-de-Vougeot, deve ser 1 milhão de euros por hectare, para produzir apenas 4 mil, 5 mil garrafas por ano. Então, o lucro não é o ponto. É um investimento de longo, longo prazo. Por isso, mantemos contratos de longo prazo com fornecedores de uvas. Mesmo os grandes e conhecidos domaines, que gostam de engarrafar seus próprios vinhos, mantém relação com produtores de uvas como uma espécie de "seguro de fornecimento de uvas".
Como você avalia as últimas safras na Borgonha?
Se começarmos pela safra 2005, foi muito boa para os tintos, certamente, e talvez um pouco louca em relação aos preços, claro que não tanto quanto em Bordeaux, em que os tintos "quebraram a banca". E para os brancos tivemos a safra de 2006, que foi fantástica. Não muito cara. 2007 será uma boa safra para tintos e brancos para serem bebidos bem jovens, e sobre 2008 precisamos de mais tempo para avaliá-la. Quando a engarrafarmos, saberemos melhor.
Quando será?
Os tintos de 2008 serão engarrafados em fevereiro de 2010 e os brancos no fim do ano. Estou muito otimista.
Como você vê o mercado brasileiro?
Albert Bichot vende vinhos no Brasil há mais de 30 anos. Meu avô começou em 1970 e posso dizer que, nos últimos quatro anos, vemos grande interesse pelos vinhos da Borgonha, principalmente pelo Pinot Noir, óbvio, por causa da complexidade... Não quero ser um "cara duro" em relação aos vinhos australianos, ou californianos, ou Bordeaux, mas, depois de um certo conhecimento de vinho (após muito Merlot e Cabernet Sauvignon), você quer fazer algo, não maior, mas diferente, com mais complexidade, mais fineza - um vinho que você quer terminar a garrafa, por isso um Pinot Noir é muito interessante.
#Q#Estamos vivendo uma febre de Pinot?
Sim, nos últimos três ou quatro anos. Isto começou com o lançamento do filme norte-americano.
Você acredita que "Sideways - Entre umas e outras" teve tanta importância?
Desejo acreditar... mas não sei se é verdade. Entretanto, quando você vê os gráficos, Pinot Noir está realmente aumentando nos Estados Unidos, embora o movimento no Reino Unido e Japão tenha começado há mais de 10 anos.
Incrível como um fato isolado pode afetar o mercado. É possível que algum outro fator tenha afetado o consumo?
Seguramente houve muitos outros fatores. Quem assistiu realmente esse filme, os norte-americanos? Acredito que é uma questão de gosto, as pessoas querem provar novos aromas, novas sensações. Com certeza vinho tinto, Pinot Noir, é muito saudável. Estudos em todo o mundo apontam que o polifenol é bom para seu coração, para seus olhos, mesmo para Alzheimer. Mesmo que não fosse verdade, vinho é bom para a saúde social.
O que você acha de um instituto do câncer francês divulgar notícia de que o álcool em todas as bebidas aumenta o nível de câncer e outras doenças?
Honestamente falando, na França temos muitos lobbies. Aparentemente estamos tendo um lobby de 10 ou 20 especialistas de câncer contra outro grupo de especialistas de câncer. Então, é meio que uma briga e somos as vítimas. Um estudo tem resultado oposto ao outro. Nada é muito sério no fim.
Como o governo reage a isso?
Aparentemente, nos últimos meses ele está agindo positivamente, pois, no fim, se perdermos tudo, será impossível ter um website, uma degustação, uma feira... É muito do estilo francês matarmos a nós mesmos.
Então a pressão está diminuindo?
Sim, nos alimentamos com vinho há muitos séculos na França e o Paradoxo Francês ainda está indo muito bem. Mas parece ser politicamente correto dizer não ao álcool, drogas, cigarros, sexo, comida... Dizer não a qualquer prazer... [risos]
"Esta complexidade é realmente uma fraqueza, mas também uma força. A Borgonha precisa ser descoberta ano após ano, leva tempo"
Como você divide as categorias de seus vinhos no Brasil e quanto planeja exportar para cá?
Aparentemente, é certo de que há um mercado para os três níveis. Para os grandes Grand Cru, há um nicho de pessoas entendidas e que podem pagar por isto. Depois existe um nível intermediário, que é o Village, como Chablis, Gevrey Chambertin, Pommard, basicamente tintos. Nos brancos, temos que reforçar nossas posições e mostrar que os brancos da Borgonha têm riqueza, poder. E então o terceiro nível, que chamamos de regional, que levam as pessoas a beber Borgonhas Pinot Noir ou Chardonnay.
Comparando qualidade e preço, os brancos da Borgonha não são percebidos como acessíveis. Em termos de custo x qualidade há boas opções na Borgonha?
Sim, mesmo para os Grand Cru. Os mais caros Grand Cru ainda são duas ou três vezes mais baratos que os Grand Cru de Bordeaux. Falando objetivamente, prefiro beber três garrafas jovens de Clos-de-Vougeot do que uma de Château "qualquer coisa". Para os níveis de preço mais baixos, os Borgonha têm menos competitividade, mas as pessoas querem experimentar o que há de melhor, e nossos volumes não são grandes.
#Q#Você acredita que a França hoje exerce o papel de liderança que deveria?
Falando por mim, como uma nova geração, estou muito feliz com o que vejo pelo mundo. Aprecio alguns Sauvignon sul-africanos, alguns Cabernets da Austrália. Agora o mundo é tão pequeno, acho que não há produtor líder. Você tem um vinho para cada ocasião. Gosto de beber vinhos da Côte de Rhône em casa, mesmo Bordeaux. Temos que ser abertos. Nas nossas vinícolas temos trainees da Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, Marrocos, para eles aprenderem e nós também. Temos que comunicar, trocar, nos desenvolver juntos.
E falando abertamente, há 20 anos os franceses sofreram com os vinhos do Novo Mundo, porque eles estão nos empurrando. Há 10 anos, Bordeaux, Borgonha e Côte du Rhône estão acordando. "O que você está fazendo? Não durma sobre os louros". É uma grande oportunidade.
É muito difícil para o consumidor brasileiro sentir-se confiante em escolher entre os milhares de rótulos da Borgonha. Qual seria o segredo?
Para fazer uma boa escolha, obviamente você tem que experimentar muitas garrafas. Mas você compra duas coisas, o nome do vinho, a appellacion, Pommard por exemplo; e compra a assinatura, Pommard feito por Albert Bichot.
O pior que pode acontecer é: comprei um Pommard e não é bom, então não gosto de Pommard. Tem que estar atento à assinatura e ao nome do vinho. Em Bordeaux é diferente, você compra o nome do Château. Esta complexidade é realmente uma fraqueza, mas também uma força. A Borgonha precisa ser descoberta ano após ano, leva tempo.
Qual o papel dos négociants? Por que eles ainda vivem no vinho moderno?
Eles existem porque as propriedades são muito pequenas e ficam menores e menores; e, em segundo lugar, porque os négociants na Borgonha são completamente diferentes de Bordeaux. Em Bordeaux, são apenas brokers; eles compram e vendem. Na Borgonha, vinificamos, colhemos as uvas, envelhecemos os vinhos em barricas, fazemos a assemblagem, temos um papel realmente. Quando colocamos nossa assinatura como négociants, isso significa mesmo alguma coisa. Quando assinamos um vinho, colocamos toda a nossa fé e nossa alma nisso.
Você pratica cultura orgânica?
Sim, mas não de maneira ortodoxa. Apenas experimentando, ano após ano, cada parcela, cada vinhedo. Algumas parcelas podem suportar ser biodinâmicas, outras não. O mais importante é observar, provar, não agir de maneira fanática. Apenas aprender sobre a natureza. Temos que ser muito modestos, humildes com a natureza, isso é o que meu avô me disse, me ensinou e ainda sigo.
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