Monges, frades, bispos, cônegos

A ligação entre a Igreja Católica e o champagne

Os homens da igreja Católica que criaram Champagne e a tornaram a bebida dos deuses

Imagem A ligação entre a Igreja Católica e o champagne

por Arnaldo Grizzo

Há quem diga que Champagne é a “bebida dos deuses”, como o poeta russo Pushkin (em Eugene Onegin) que afirma ser um “vinho abençoado pelos deuses”, por exemplo.

Ou então numa anedota em que o rei Lobengula, da África do Sul, teria feito uma proposta ao inglês Frederico Selous que viera colonizar seu território (e havia trazido Champagne consigo): “Se você me fornecer constantemente novos suprimentos do vinho dos deuses, não apenas vou deixá-lo viver, mas você será meu primeiro-ministro!”

Mas talvez, pela história, possamos dizer que Champagne, na verdade, está mais ligado ao Deus cristão, ou sendo mais exato, aos clérigos católicos.

A tradição dos monges beneditinos na região é longínqua, no entanto, acredita-se que as bênçãos sobre o vinho local remontam a períodos anteriores às ordens monásticas se estabelecerem.

Diz-se, por exemplo, que Saint-Remi, então bispo da Igreja da França, teria abençoado o vinho de Champagne e o dado a Clovis, rei dos francos, prometendo-lhe, com essa bebida mágica, vitória nas batalhas. Clovis então prometeu se converter ao cristianismo em caso de vitória, o que de fato ocorreu no ano de 498 com a celebração de seu batismo na igreja em Reims.

E há ainda outro milagre atribuído a Saint-Remi e ligado ao vinho de Champagne. Durante uma viagem à sua diocese (na aldeia de Sault), Saint-Remi é abordado por sua prima (uma virgem consagrada a Deus, chamada Celsa) que diz estar sem vinho.

O bispo então entra na adega, faz o sinal da cruz no barril e começa a rezar. Depois de um tempo, o vinho flui com tanta abundância que inunda a adega. Este milagre está imortalizado em uma estátua na fachada norte da catedral de Reims, num dos vitrais do século XVI na igreja de Notre-Dame d’Epernay, bem como numa tapeçaria.

O grande irmão

Champagne

Todavia, os nomes dos eclesiásticos que ficariam marcados na história de Champagne surgiriam mais tarde. O monge beneditino Dom Pierre Pérignon, da Abadia de Hautvillers, é talvez o mais lembrado, tido como “inventor de Champagne”, mas há outros que influenciaram a bebida local decisivamente. Um deles seria, por exemplo, Frère (irmão) Oudart.

Nascido em Dormans em 1654, Jean Oudart deveria ter se tornado vinicultor, como seus antepassados. Mas, aos 20 anos, sua fé o levou a ingressar na abadia beneditina de Saint-Pierreaux-Monts em Châlons, onde se tornou irmão em 18 de junho de 1679.

Esse status era reservado aos leigos convertidos, ou seja, que mudaram de vida para se tornarem religiosos.

O abade, percebendo a paixão de Oudart pelo cultivo das vinhas e pela vinificação dos vinhos da abadia, enviou-o em uma missão a Pierry, perto de Epernay, onde a congregação tinha vinhas e um centro vitícola.

O irmão Oudart tornou-se um verdadeiro chef-de-cave e também se preocupou com a comercialização de seu espumante para a alta sociedade parisiense por meio do grande comerciante do momento, Adam Bertin du Rocheret, que, segundo consta, também já exportava esses vinhos para as Américas. Em carta de Rocheret, ele aponta que os vinhos “dos monges” eram vendidos pelo dobro do valor do que se consideravam os vinhos “excelentes” da época.

Irmão Oudart manteve relações com as abadias da mesma ordem beneditina de Saint-Pierre-aux-Monts em Châlons e Saint-Pierre em Hautvillers e provavelmente teria tido influência tão decisiva na produção dos vinhos quanto Dom Pérignon, que viveu quase na mesma época.

A descoberta de seu túmulo em 1972 mostra que Oudart deve ter tido uma importância que vai além de seu “status” de irmão apenas, pois foi sepultado na nave da igreja de Pierry e o enterro foi repleto de homenagens, algo excepcional para um mero “irmão”. Há pouca documentação, mas há quem acredite que a obra enológica de Oudart diga respeito àtomada de espuma ou ainda ao desenvolvimento do licor de tirage.

O cônego e a primeira casa de Champagne

Outro homem da igreja a colocar sua marca em Champagne foi o cônego Godinot. Nascido de uma família pobre em 1661, Jean Godinot estudou com os jesuítas e depois de ter sido cônego da catedral de Reims, entrou em atrito com o arcebispo, sendo assim, afastado de seus afazeres eclesiásticos.

Dessa forma, explorou as vinhas de Champagne, melhorou os processos de cultivo e prensagem de vinhos e depois dedicou toda sua fortuna a atos de caridade. A sua principal obra foi a implantação de fontes públicas na região.

Credita-se a Thierry Ruinart, nascido em 1657, a influência na criação da primeira casa de Champagne. Sexto de nove filhos de uma família mercantil, ele é considerado um dos maiores embaixadores de Champagne pelos locais por onde passou, especialmente nas cortes francesas quando esteve estudando na Abadia de Saint-Germain-des-Prés em Paris. Ruinart, aliás, teria conhecido Dom Pérignon em uma parada em Hautvillers durante uma viagem de volta da região da Lorena e se interessado pelo trabalho do colega.

Seu irmão, Nicolas, era comerciante de tecidos de linho e acredita-se que Dom Ruinart possa tê-lo influenciado a acrescentar o vinho nos negócios da família. Foi o filho de Nicolas, também chamado Nicolas, que fundaria a primeira casa de Champagne, em 1729, 20 anos após a morte de Dom Ruinart. Seu primeiro livro de contas para o período 1729-1739 tem a menção, “em nome de Deus e da Santíssima Virgem”.

“Os segredos do criador”

Não se sabe ao certo se Pierre Pérignon nasceu no final de 1638 ou nos primeiros dias de 1639 em Sainte-Menehould en Argonne, uma fortaleza nas fronteiras de Champagne e Lorena. Filho de uma família de oficiais de justiça, também pouco se sabe sobre sua infância, mas seu pai e um de seus tios paternos possuíam vinhas, onde ele pode ter participado da colheita.

Aos 18 anos, decidiu ser monge. Entre todas as ordens religiosas da região, escolheu a abadia-mãe da Congregação Beneditina de Saint-Vanne e Saint-Hydulphe localizada em Verdun, um centro muito ativo da Contra-Reforma na Lorena. Anos depois, ao chegar à abadia de Hautvillers, em Champagne, ele ajudou a finalizar a reconstrução do local e desenvolver a produção de vinhos.

Afirma-se que foi o “promotor” Dom Pérignon quem balizou as práticas vitivinícolas, até então pouco definidas e não registradas formalmente por seus antecessores. Sabe-se que, sob seu comando, o negócio de vinhos da abadia prosperou, não com espumantes exatamente – que teoricamente teriam feito sucesso somente quando ele já estava no fim da vida.

A “invenção do Champagne” é atribuída a ele por uma carta de Dom Jean-Baptiste Grossard, último promotor da Abadia de Hautvillers, datada de 25 de outubro de 1821 (mais de um século após a morte de Pérignon em 1715), dirigida a um certo M. d'Herbes, vice-prefeito de Aÿ, onde escreveu que: “foi o famoso Dom Pérignon quem encontrou o segredo de fazer vinho branco espumante e também não espumante, e a forma de o clarificar sem ter de depositar as garrafas”.

Em um texto anônimo de 1722, dito: “Manière de cultiver la Vigne et de faire le Vin en Champagne et ce qu’on peut imiter dans les autres Provinces, pour perfectionner les Vins” (algo como: “forma de cultivar a vinha e fazer o vinho em Champagne e que se pode imitar em outras províncias para melhorar os vinhos”).

O autor diz: “Resta falar do segredo do famoso padre Pérignon. Uma pessoa digna de fé afirmou que esse padre o havia confidenciado seu segredo poucos dias antes de sua morte. Em cerca de meio litro de vinho, dissolva meio quilo de açúcar, jogue cinco ou seis pêssegos separados de seus caroços, cerca de quatro sóis de canela em pó, uma noz-moscada também em pó: depois disso tudo está bem misturado e dissolvido, adiciona-se meio setier (0,23 l) de conhaque bom [...]”. Essa “colatura” seria o segredo da formação da espuma. 

Se a parte da tomada de espuma é verídica ou não, difícil saber, mas ninguém contesta que Dom Pérignon esteve na origem da tradição de mesclar safras e castas, um dos princípios básicos de Champagne até hoje. Como se vê, ele e tantos outros homens “santos” ajudaram a criar a mística em torno dos espumantes mais celebrados do mundo. 

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