Qual o futuro do vinho? É possível que daqui a alguns anos a indústria padronize o gosto da bebida? Qual a verdadeira influência de Michel Rolland e de Robert Parker no mundo dos vinhos?
por Marcelo Copello
O tema que mais tem agitado o mercado brasileiro do vinho nos últimos meses é a polêmica em torno da dita globalização do gosto do vinho. O assunto não é novo, já se fala sobre isso há alguns anos, mas a estréia no Brasil em maio passado do documentário Mondovino levou o debate ao grande público. Novos termos passaram a fazer parte do vocabulário dos apreciadores de vinho, como "parkerização", "gosto Rolland", "vinho bombado", ou "vinho-cola". Confira o que há em torno do assunto e tire suas próprias conclusões, enquanto degusta o vinho predileto de sua adega.
Mondovino
Neste documentário, o diretor norte-americano Jonathan Nossiter fala da relação do homem com a natureza através da cultura da vinha. O filme critica duramente importantes personagens da indústria do vinho, que estariam transformando a bebida milenar em produto de gosto padronizado. Na mira do diretor estão o enólogo-consultor francês Michel Rolland, o crítico americano Robert Parker, entre outros.
O que é a globalização no gosto dos vinhos?
O vinho é talvez o maior fruto da comunhão do homem com a natureza. O nobre fermentado é uma expressão de seu criador (o enólogo) e do ambiente que o gerou, como uma obra de arte. Em certos vinhos é possível dizer, apenas provando-o, de onde vieram as uvas que lhe deram origem.
A palavra chave aqui é terroir, expressão francesa que designa o conjunto de fatores naturais (solo, subsolo, insolação, microclima etc) que influenciam a qualidade das uvas.
A "globalização do gosto" é uma tendência atual de produzir vinhos direcionados ao mercado, de gosto muito semelhante entre si, não respeitando o terroir. O estilo é de vinhos encorpados, feitos com uvas ultramaduras, frutados, com forte presença do gosto de carvalho e de teor alcoólico alto. O tal vinho globalizado equivaleria, em uma analogia com o cinema, com "cinemão holywoodiano", feito seguindo um padrão que agrada as massas e muitas vezes também diverte o mais severo dos críticos de cinema.
O que é o gosto Rolland*?
É importante esclarecer que Rolland, com 102 clientes em 14 países, não elabora diretamente os vinhos. Ele oferece consultoria aos enólogos locais e dá orientação no plantio e condução das vinhas, na gestão de maturidade das uvas, na vinificação, no amadurecimento etc.
Rolland, às vezes, participa do corte ou assemblage (mistura dos vinhos de barris diferentes para formar o produto final), sua especialidade. Seus vinhos são elaborados invariavelmente com uvas ultra-maduras, as vezes maduras em excesso. Essa maturação corre o risco de estar em desarmonia com a maturação fenólica (taninos) e com perda de acidez.
Depois o líquido passa por um estágio em barris os de carvalho. Como
resultado todos estes vinhos tem características em comum, o "gosto Rolland":
1- A cor do líquido é muito escura;
2- Os aromas e sabores lembram frutas muito maduras e geléias, com presença
marcante de aromas vindos do estágio em madeira (café, chocolate, caramelo,
coco queimado, baunilha etc.);
3- A maciez e quase doçura no palato é outro item, pelo alto teor alcoólico
(geralmente de 13,5% para cima), taninos doces e baixa acidez.
É bom lembrar que Rolland não "inventou" esse padrão. Ele é apenas um excelente enólogo, que sabe o que agrada e o que não agrada, e sabe como fazer vinhos que atendem a demanda.
*Leia mais sobre Roland em entrevista exclusiva nesta edição
#Q#O fenômeno Robert Parker
Aos 57 anos, esse americano de Baltimore é o crítico de vinhos mais importante da história da humanidade. Ele começou sua carreira no vinho nos anos 80, escrevendo um jornal, enquanto estudava direito Maryland. Seu periódico, The Wine Advocate, logo alcançou fama. Hoje suas notas (de 50 a 100) determinam o preço de muitos vinhos. O que eu acho de Parker? Ele é excelente em sua função. É um degustador brilhante, muito preciso. Suas avaliações dos vinhos, principalmente quando o assunto é Bordeaux, são muito confiáveis. O problema não é Parker em si, mas sim o efeito de tanto poder concentrado em um único palato. Parker e sua legião de seguidores apreciam o estilo de vinhos descrito como "gosto Rolland". Assim, muitos vinhos hoje são elaborados para agradar esse padrão: os ditos "vinhos parkerizados".
A ditadura do gosto americano
Por que este padrão vigora hoje? Como descrito na matéria "boom do vinho", publicada no número 1 de ADEGA, o mercado de vinhos teve grande crescimento nas últimas décadas graças aos novos bebedores, principalmente no maior mercado de vinhos do mundo, os EUA. Muitas pessoas que consumiam outras bebidas passaram a se interessar por vinho. Esses neófitos em grande parte se identificam com o estilo "parkerizado". Em consequência, muitas vinícolas ao redor do mundo buscam produzir vinhos que atendam esse gosto.
Por que esses vinhos recebem notas altas da crítica em geral?
Muitos dos vinhos feitos por Rolland e outros consultores são realmente excelentes. A polêmica não é em torno de sua qualidade e sim do estilo. Esses produtos em geral são muito bem elaborados e impressionam bastante, pois têm muitas qualidades. Têm corpo, aroma, são saborosos e macios ao palato. Os padrões adotados para pontuação, notas e rankings raramente levam em conta o que seriam as possíveis fraquezas desses vinhos. Essas em geral seriam sua falta de capacidade de envelhecer, que às vezes é comprometida pela baixa acidez e excesso de extração, e o fato de, por serem encorpados e alcoólicos, terem seu uso para acompanhar refeições limitado.
Há esperança?
Sim, há uma tendência aos vinhos se parecerem e seguirem um padrão de gosto, principalmente nos produtos de menor preço. O que conceitualmente é ruim, pois o grande charme do vinho é sua infinita variedade. Porém, esse padrão também significou uma melhoria geral na qualidade do vinho que se faz mundo afora, e a formação de um enorme mercado consumidor. A esperança é que os novos apreciadores desenvolvam seu paladar, busquem novos gostos, descubram e se encantem com a diversidade que só o vinho pode oferecer.
O estilo Michel Rolland é reconhecível às cegas?
A Revue du Vin de France (RVF), em sua edição de abril deste ano, quis verificar a possibilidade do reconhecimento às cegas dos vinhos elaborados sob orientação de Michel Rolland. A matéria chamou-se "À l'aveugle, reconnît'on le style Michel Rolland?".
Para tal, seis reputados críticos de vinho, do corpo de degustação da revista, foram escalados para provar 15 rótulos assinados pelo renomado consultor.
O comitê de degustação foi composto por: Bernard Bourtschy, Georges Lepré, Isabelle Bachelard, Roberto Petrônio, David Cobbold e Pierre Csamayor. Os vinhos escolhidos foram (todos da safras de 2002):
- Itália:
• Ornellaia;
- EUA:
• Harlan Estate;
- Chile:
• Clos Apalta;
- Argentina
• Clos de los Siete e Val de Flores;
- França – Bordeaux margem direita (Saint Emilion e Pomerol):
• Château Le Bon Pasteur
• Château Magrez Frombauge
• Château Clinet;
- França – Bordeaux margem esquerda (Médoc, Pessac-Léognan
etc):
• Château Citran
• Château Kirwan
• Château Léoville Poyferré
• Château Pontet Canet
• Château La Tour Carnet
• Château Pape Clément
• Château Smith Haut Lafite.
Foi pedido apenas que os especialistas tentassem identificar a origem dos vinhos. O país no caso dos estrangeiros e, se a suspeita fosse para a França, a região. O resultado? Apenas 21% dos palpites foram corretos...
Parker, "o ditador do gosto" | ||
No ano passado, o mundo acompanhou uma ruidosa desavença entre a crítica inglesa Jancis Robinson e Robert Parker. O motivo: a avaliação de um vinho, o Château Pavie 2003, assinado por Roland. Segundo ela, um vinho "ridículo" e "bombado"; segundo Parker, um grande vinho. Agora é a vez de Hugh Johnson, o maior guru britânico do vinho, atacar agressivamente Parker. A revista inglesa Decanter noticiou em julho deste ano que, em seu novo livro, a ser lançado em outubro, Johnson se refere ao americano como "ditador do gosto" e "absolutista". Johnson traz ao debate as diferenças de estilo dos críticos do Reino Unido e dos Estados Unidos, como um dos temas abordados em seu livro autobiográfico Wine: A Life Uncorked (Vinho: Uma Vida Desarrolhada), que será publicado em outubro. Ele faz uma comparação explícita entre o atual estilo imperial dos Estados Unidos com o estilo Parker - considerado o mais influente crítico de vinho - sugerindo que ambos tendem ao dominante. Assim reporta Adam Lechmere sobre extratos da entrevista que Hugh Johnson concedeu à revista Decanter (a ser publicada em outubro). "A hegemonia imperial vive em Washington e o ditador do vinho em Baltimore...". |
PAPA DO VINHO PEDE PACIÊNCIA
Aos 57 anos de idade o francês Michel Rolland é o enólogo mais requisitado do mundo, prestando consultoria à 102 vinícolas em 12 países. Ele esteve no Brasil em julho deste ano para lançar novos vinhos produzidos pela vinícola gaúcha Miolo, sob sua orientação. Em entrevista exclusiva à ADEGA, Rolland falou do futuro do vinho brasileiro, de biodinâmica e da missão dos "enólogos-consultores" como ele. Algumas das perguntas foram enviadas por leitores de ADEGA, dentre eles o cineasta Jonathan Nossiter. Leia os principais trechos da entrevista:
ADEGA: O que o sr. acha dos tão falados efeitos da globalização
no vinho?
Rolland: Certamente não posso concordar
com opiniões como a do filme Mondovino, de Jonathan Nossiter. Eu não posso
ter essa visão romântica. Entre os vinhos tradicionais clássicos, é claro
que encontramos alguns ótimos vinhos, mas muito freqüentemente os vinhos
são ruins. Não podemos ficar parados, temos que evoluir, pois se deixarmos
que os vinhos continuem ruins as pessoas continuarão bebendo cerveja e
outras bebidas.
ADEGA: Para conquistar mercado internacional é necessário
que o Brasil construa uma imagem, para tal é preciso ter massa crítica.
Vários produtores buscando qualidade, como a Miolo, que investiu em sua
contratação. Hoje não podemos dizer genericamente: "o Brasil faz bom vinho",
mas podemos dizer "temos alguns bons rótulos". O que o sr. acha disso?
Rolland: Sim, ainda falta muito para construir uma
imagem internacional. Estive aqui em 1982 e posso dizer que o vinho brasileiro
era terrível, evoluiu muito desde então, mas o que há hoje ainda é pouco
para construir uma imagem. Para isso é necessário tempo e investimento.
ADEGA: Qual foi a sua maior contribuição para a vinicultura
mundial? (pergunta enviada pelo leitor Éder Teixeira Cardoso de São José
dos Campos, SP)
Rolland: Pessoalmente não sei. Sei apenas
que estou fazendo vários vinhos ao redor do mundo, em cerca de 100 vinícolas.
Mas todo meu trabalho junto é uma gota em relação ao tamanho do mercado,
que deve ter mais 100 mil empresas.
ADEGA: E qual foi a contribuição geral dos "enólogos-consultores"
ou flying winemakers como o senhor?
Rolland: Certamente os vinhos são, na média,
melhores hoje do que no passado. Nunca tivemos tantos vinhos, tão bons,
em tantos países do mundo.
ADEGA: Qual o futuro de vinhos orgânicos e biodinâmicos?
(pergunta enviada pelo leitor José Paulo Schiffini, do Rio de Janeiro)
Rolland: Sou favorável à biodinâmica. Filosoficamente
é um conceito muito bom, pois é bom para o homem e para a natureza. O
problema é que não podemos fazer cultura biodinâmica sempre e em qualquer
lugar. Em lugares chuvosos é tecnicamente muito difícil. Conheço a biodinâmica
há 30 anos e naquela época era uma aposta no escuro, hoje evoluiu muito.
ADEGA:
Será possível algum dia aplicar a biodinâmica para vinhos de grande volume?
Digamos 1 milhão de garrafas?
Rolland: Talvez no futuro, com a evolução
da tecnologia. O Chile e o Napa Valley, por exemplo, são quase que naturalmente
biodinâmicos, por suas características de clima e solo. O Vale dos Vinhedos,
no Rio Grande do Sul, e Bordeaux, estão longe, pois são locais chuvosos.
ADEGA: O sr. pretende fazer vinhos biodinâmicos?
Rolland: Não estamos voltados para isso
no momento mas, como disse, alguns de meus projetos na Argentina ou Chile
estão naturalmente muito próximos da biodinâmica. Já se quiséssemos fazer
biodinâmica no sul do Brasil hoje, seria impossível.
ADEGA: Agora temos uma pergunta especialmente enviada
pelo cineasta Jonathan Nossiter, a quem o sr. bem conhece. "Caro Michel,
você vai conseguir transformar o vinho brasileiro, como fez com tanto
sucesso na Argentina, e torná-lo competitivo no mercado internacional?"
Rolland: Acho que o Jonathan não gosta dos vinhos
que estou fazendo. Mas eu não faço vinhos para ele, faço vinhos para o
consumidor em geral. Claro que não tenho resposta a esta pergunta pois
não sei se os vinhos que eu faço no Brasil jamais serão bons para ele.
O que posso dizer é que, para mim, certamente os vinhos brasileiros irão
melhorar.
ADEGA: Quando o sr. acha que o Brasil fará sucesso internacionalmente,
como a Argentina?
Rolland: A Argentina iniciou seu trabalho há 20 anos
e só começou a ter o sucesso há 5 anos atrás. Ou seja, temos 15 anos de
trabalho pela frente aqui no Brasil. Temos que ter paciência.
Vinhos da parceria Miolo-Rolland | ||
Quinta do Seival Cabernet Sauvignon 2004,
Campanha-RS (cerca de R$ 40). Elaborado na Campanha Gaúcha, próxima
a fronteira do Uruguai. Esse é o primeiro vinho da Miolo do qual
Rolland participou de todo o processo de elaboração, desde a orientação
no vinhedo, vinificação e seleção final de barricas. Cor púrpura
escuro, lembrando frutos vermelhos e negros bem maduros e toques
de baunilha, violetas e tostados. Taninos doces, médio/bom corpo,
média persistência. Vinho agradável, bem ao estilo moderno. Uma
boa compra. Lote 43 2002, Vale dos Vinhedos-RS (cerca de R$
60) um corte de Cabernet Sauvignon e Merlot em iguais proporções,
amadurecido 1 ano em barris americanos novos, com 12,5%. Esse vinho
do início dos trabalhos do Rolland com a Miolo em 2003, encontrou
já vinificado e participou apenas do corte. Um perfil totalmente
diferente do vinho anterior, com mais acidez e taninos mais rústicos,
já toques de evolução e mais vida pela frente. Rubi escuro com reflexos
granada. Aromas de ameixa e cerejas pretas madura, couro, tabaco
e café. Paladar intenso, com bom corpo, taninos um pouco rugosos
ainda presentes, delatam que o consultor não interferiu muito aqui.
Em outro estilo, também agradou. |
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