Há algo de podre no reino de Sauternes

O famoso vinho de uvas botritizadas do Château d'Yquem encanta o mundo

por Arnaldo Grizzo

Fotos: Divulgação

O que o Château d’Yquem produz, segundo seus apreciadores, não é meramente um vinho. O líquido feito lá é dito como sendo “luz engarrafada”, tamanha a admiração dos que um dia tiveram a oportunidade de degustá-lo. A mitologia em torno do mais famoso vinho branco doce do mundo é certamente riquíssima e renovada a cada dia, com referências constantes em livros (já foi citado por Vladmir Nabokov, Fiodor Dostoievski, Marcel Proust, Júlio Verne, Alexandre Dumas Filho), filmes (desde clássicos de “cinema noir” até as superproduções hollywoodianas atuais) e outras formas de arte.

E arte, sem dúvida, é o que faz o Château d’Yquem com seu vinho. Numa região de produção de uvas brancas, elas são atacadas por um fungo chamado de Botrytis cinerea, que apodrece os cachos, deixando a uva com tons marrons. O que pode parecer um desastre, na verdade, revela-se uma maravilhosa conjunção para a produção de vinhos doces. Devido a esse fungo, os níveis de acidez e açúcar aumentam e dão uma complexidade aromática inigualável. Daí o nome: “podridão nobre”.

Brancos de Bordeaux

A propriedade de Yquem está localizada em Sauternes, ao sul de Bordeaux. Sendo assim, durante muitos anos ela foi dominada pelos ingleses, pois o rei Henrique II era casado com a duquesa de Aquitânia (região onde fica Bordeaux). Somente no século XV, após a Guerra dos 100 anos, o local voltou ao domínio francês e uma família de nobres, liderada por Jacques Sauvage Yquem, assumiu o comando e construiu o Château.

Porém, foi somente em 1711, com Luiz XIV, o “Rei Sol”, que a família se apropriou realmente das terras. No fim do século XVIII, Josephine de Sauvage d’Yquem se casou com o conde Louis Amédée de Lur Saluces, herdeiro de uma família de nobres guerreiros que serviu aos reis da França durante anos. Louis, afilhado de Luiz XV, acabou morrendo em 1788, apenas três anos após seu casamento (em um acidente em treinamento militar) e a viúva, Josephine, foi quem começou a criar a fama do vinho do Château.

Nessa época, o então ministro norte-americano, que futuramente seria presidente dos Estados Unidos, Thomas Jefferson, conheceu a bebida e levou várias garrafas para seu país. O vinho branco doce agradou até mesmo George Washington, presidente à época, que mandou importar 30 dúzias. Jefferson, por sua vez, pediu mais 10.

Apesar de presa duas vezes por ser contra a Revolução Francesa, Josephine aprimorou o método de colheita em ondas das uvas botritizadas e construiu a primeira adega no Château. O neto dela, Romain- Bertrand continuou o legado e, em 1855, alcançou a classificação de Premier Grand Cru Superieur, o único branco nessa categoria – a mais alta. Assim, a fama do vinho cresceu ainda mais, sendo procurado por monarcas de todos os lugares, especialmente os russos, e exportado até para o Japão.

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Fotos: Divulgação

Guerra e filoxera

Depois desse período de bonança, veio a filoxera e as Guerras Mundiais. A praga que devastou os vinhedos em quase todo o planeta, não poupou Yquem. E, durante a I Guerra, o castelo foi transformado em hospital militar. Depois disso, o marquês Bertrand de Lur Saluces assumiu o Château e foi determinante para a instauração dos padrões da DOC de Sauternes – sendo contra o processo de chaptalização dos vinhos (acréscimo de açúcar ao mosto).

Vinho do Château d’Yquem já foi chamado de “luz engarrafada” e é citado em diversas obras literárias

Seguindo a linha beligerante de seus antepassados, Bertrand foi preso durante da II Guerra. Ele ainda ajudou a implantar a academia de vinho de Bordeaux e o Conselho Interprofissional, além de criar o vinho branco seco de Yquem, o “Y” (dito igrec, em francês). Com a morte de Bertrand, seu sobrinho, o conde Alexandre de Lur Saluces passou a administrar o Château. Somente em 2004 o domínio da propriedade foi dividido com um grande grupo comercial.

Fotos: Divulgação

Terroir

Os atuais 113 hectares (pouco mais de 100 são produtivos) do Château d’Yquem são os pontos mais altos da região de Sauternes, apenas 75 metros acima do nível do mar. A parte superior do solo é seca e quente, acumulando calor graças a seixos planos e grossos cascalhos. Nas partes mais profundas, a argila mantém as reservas de água, mas foram feitos sistemas de drenagem para evitar alagamentos.

O microclima sofre influência do rio Garonne e possui um equilíbrio delicado para propiciar o crescimento da Botrytis cinerea – se estiver muito seco, ela não prolifera, quando muito úmido, o suco perde concentração. Além disso, outros fungos podem aparecer e arruinar as uvas.

As cepas plantadas são Sémillion (80%) – responsável pelo corpo e estrutura do vinho – e Sauvignon Blanc (20%) – que propicia os aromas e a finesse. A colheita é feita em ondas, grão a grão, quando apenas as uvas botritizadas e de maior concentração são colhidas a cada vez, pois o fungo age diferentemente em cada cacho. As uvas que não estão prontas ficam para uma outra onda de colheita. Geralmente, há cinco ou seis ondas a cada safra. Isso faz com que haja o risco da chegada do inverno e a perda de uma safra inteira.

Se o clima estiver muito seco, a Botrytis cinerea não prolifera. Se estiver muito úmido, o suco perde concentração

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A idade média das vinhas é de 30 anos. O rendimento é baixíssimo. É dito que há 100 mil pés, que produzem apenas 60 mil garrafas, ou seja, uma taça de vinho por videira. O padrão de qualidade requerido é tamanho que safras inteiras costumam ser descartadas e não engarrafadas. Esse fenômeno costuma ocorrer uma vez a cada 10 anos. Por exemplo, no século passado, não houve Château d’Yquem das seguintes safras: 1910, 1915, 1930, 1951, 1952, 1964, 1972, 1974 e 1992. Em pouquíssimos anos, 100% da vindima é aproveitada.

Sabe-se que, desde a metade do século XIX, convencionou-se que vinhos brancos doces ficavam melhores com uvas atacadas pelo fungo. Antes disso, porém, não há certeza de que os vinhos eram feitos somente com as uvas botritizadas. Hoje, a maturação se dá em barricas de carvalho novas por, no mínimo, três anos.

O vinho branco seco de Yquem, o “Y” (blend meio a meio de Sauvignon Blanc e Sémillon), também só é produzido quando as condições são extremamente favoráveis e, desde 1959, quando foi criado, só houve 23 safras.

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As condições precisam ser perfeitas. Do contrário, safras inteiras são descartadas

O vinho

Os que puderam provar este vinho ícone dizem que é quase impossível descrevê-lo em palavras e a melhor atitude diante dele é o silêncio. Um vinho de meditação por excelência. Ao degustá-lo, percebese o perfeito equilíbrio entre a fruta, a botritis, o açúcar e a acidez. Os sabores remetem ao clássico crème brûlée francês, pêssegos, damascos.

Um vinho de guarda, que pode durar por mais de 100 anos, o Château d’Yquem é difícil de harmonizar, mas boas sugestões podem ser combinar com foie gras ou queijo roquefort. Algumas das safras mais celebradas são: 1921, 1928, 1937, 1945, 1967, 1975, 1983, 1986, 1988, 1989, 1990, 1997, 2001 e 2005

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