O vinho para o poeta Charles Baudelaire é parecido com o homem e sua obra influenciou uma geração de escritores modernos
por Lucas Bertolo
Charles Baudelaire, poeta da vida moderna e do desencanto do mundo, foi um dos autores do seu tempo que mais versos compôs sobre o vinho. Viveu (brevemente, pois morreu aos 46 anos) em meados dos anos 1800, período conturbado da história francesa, que esteve às voltas com a monarquia e o período de Napoleão III.
Como era comum na época, especialmente entre artistas, consumia ópio. Diz-se que bebia pouco, era comedido, no entanto.
Clique aqui e assista aos vídeos da Revista ADEGA no YouTube
Na segunda metade do século XIX, havia mais de 2,5 milhões de hectares de vinhedos na França, o que representava mais da metade da produção mundial de vinho. A vitivinicultura era a ocupação de 1,5 milhões de famílias e, indiretamente, o sustento de 6 milhões de franceses, ou 20% da população do país.
Na mesma época, uma praga vinda da América, a filoxera, começa a se espalhar pelos vinhedos europeus, devastando a indústria e cultura do vinho por quase meio século.
Baudelaire publica a sua obra máxima, “As Flores do Mal”, em 1857, dois anos depois da famosa classificação de Bordeaux e poucos antes da primeira infestação da filoxera na França, e dedica ao vinho uma seção com cinco poemas.
O livro foi censurado imediatamente à sua publicação, e Baudelaire condenado sob acusação de insultar os bons costumes. Tachados de obscenos, satânicos e insanos, os seus versos influenciaram poetas como Arthur Rimbaud, Cruz e Sousa, e movimentos artísticos e literários como o surrealismo de André Breton e o modernismo brasileiro.
Em “A Alma do Vinho” faz parte da seção dedicada ao vinho em “As Flores do Mal” (com outras quatro poesias), Baudelaire dá voz e alma ao vinho, que canta sua razão de ser, suas provações, seus prazeres. No poema, é o vinho que sente alegria imensa ao descer pela “goela de um homem exausto de tanto trabalhar”. E é desse encontro, desse amor entre homem e vinho, que nasce a poesia.
A “chanson à boire” (canção de beber) foi temática muito comum nos repertórios dos poetas em cuja sensibilidade ainda se fazia presente certo romantismo. De Victor Hugo à Théophile Gautier, passando por Leconte de Lisle, Gérard de Nerval e Théodore de Banville, todos cantaram os deleites do vinho ou os agrumes da ebriedade.
Na poética de Baudelaire, entretanto, o vinho tem outro alcance de sentidos e significados: a embriaguez mundana, a melancolia da vida moderna (o spleen), e a indignidade de, bêbado, “dormir como um cão”, de certa feita emaranha-se com um embevecimento libertino e com o êxtase de um banquete romano. O vinho em Baudelaire é como o phármakon dos gregos antigos: a um só tempo veneno e antídoto.
LEIA TAMBÉM: Vinícola italiana produz vinhos de vinhedo do Leonardo da Vinci
No poema supracitado, o vinho é comparado à própria Beleza, nas contradições de sua completude. E está neste entrelaçar de imagens contraditórias a verdade do vinho para Baudelaire: vertem-se céu e precipício, o bem e o malefício.
É o delírio báquico nas garrafas a dissolver a dor humana, assimilando e transformando-a, ora em repouso, ora em revolta. O vinho do assassino e o dos amantes (que mereceram poemas em “As Flores do Mal”) é um só vinho, seja para “apaziguar um remorso, evocar uma lembrança, afogar as mágoas ou construir um castelo na Espanha”.
“É preciso estar sempre embriagado. Isso é tudo, é a única questão. Para não sentir o fardo horrível do tempo que esmaga nossos ombros e nos enverga para a terra, é preciso embriagar-se sem descanso. Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, à sua escolha. Mas embriague-se!” (Embriague-se, primeiro parágrafo, pertencente ao livro Petits Poèmes en Prose).
O convite à embriaguez contínua de Baudelaire, para além de certo entorpecimento imobilizador, é o convite à suspensão do tempo da vida do trabalho. O leitor é convocado a sonhar acordado, a construir os próprios horizontes, a tornar-se autônomo através do vinho, da poesia ou da virtude, e não um “escravo martirizado do Tempo”. A embriaguez em Baudelaire é uma tomada de posição diante do mundo: como se lê um poema, bebe-se para aplacar uma sede da alma.
Para afogar o rancor e a indolência embalar De todos estes velhos que morrem calados, Deus, com remorso, o sonho tratou de criar; O Homem então fez o Vinho, do Sol filho sagrado!"
O vinho dos trapeiros, última estrofe
Baudelaire inicia “O vinho dos trapeiros” (As Flores do Mal) com os belíssimos versos: “no coração de um velho bairro, labirinto lamacento / onde a humanidade se agita em tempestuoso fermento”.
É um poema sobre trabalhadores voltando para casa com seus barris de vinho, a caminho de uma “luminosa orgia”. Um dos trapeiros, trôpego como um poeta, “embriaga-se dos esplendores de sua própria virtude”.
Na última estrofe do poema, Baudelaire compõe inusitadas contraposições: um Deus, com remorso, para afogar o rancor dos pobres e velhos cria o sono; o Homem então cria o vinho, que “traz a glória ao povo embriagado de amor”. A criação humana, com matizes de paganismo às avessas (o vinho é, no poema, filho de Apolo, do Sol, e não de Dionísio), supera a criação do remordido Deus cristão.
Em Paraísos Artificiais, obra sobre os efeitos do ópio, do haxixe e do vinho, Baudelaire defende que “o vinho é parecido com o homem: não se sabe nunca até que ponto podemos estimá-lo ou desprezá-lo, amá-lo ou odiá-lo, nem de quantas ações sublimes ou crimes monstruosos é capaz. Não sejamos então mais cruéis com ele do que com nós mesmos, devemos tratá-lo como nosso igual”. O vinho, ao assumir posição de equidade com o homem, assume também o que há de “fugitivo, transitório e contingente” nos humores humanos. É “no ouro de seu tinto vapor, como um sol poente em um céu nebuloso” (O veneno, primeira estrofe, últimos versos).
Àqueles avessos ao vinho ou à poesia, Baudelaire deixa um recado: “Muitas pessoas me acharão, sem dúvida, um indulgente: ‘Você inocenta a embriaguez, você personifica o crápula’. Admito que diante dos benefícios eu não tenho coragem de contar as queixas. Aliás, eu disse que o vinho era similar ao homem, e concordei que os seus crimes eram iguais às suas virtudes. Melhor não posso fazer. Mas tenho uma outra ideia: se o vinho desaparecesse da produção humana, creio que ele faria um vazio à saúde e ao intelecto do planeta, uma ausência, uma imperfeição muito mais horrível que todos os excessos e desvios com que responsabilizamos o vinho. […] Um homem que não bebe senão água tem um segredo a esconder dos seus iguais” (Do Vinho e do Haxixe, parte II).