Os Frutos da Nossa Terra

Em variados terroirs, a colheita de 2008 no Brasil preconiza uma das safras mais marcantes da vinicultura nacional

por Sílvia Mascella Rosa

fotos: Sílvia Mascella Rosa

Falar da vindima de 2008 no Brasil é muito mais do que dizer: podemos esperar por vinhos surpreendentes quando as garrafas finalmente estiverem sobre nossas mesas. É mais do que traduzir números, tabelas e equalizar tantas vozes dessa nossa nova e punjente vitivinicultura. É contar uma história feita de desafios, paixões, tecnologia, muita paciência e, principalmente, muito amor pela terra e pelos frutos por ela gerados.

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Como já escrevi muitas vezes neste espaço, fazer vinhos finos no Brasil não é fácil. Nossos terroirs têm, normalmente, mais chuvas do que as uvas necessitam. Nossos produtores ainda têm problemas com mão-de-obra especializada, carga tributária excessiva e um mercado consumidor com alguma resistência aos rótulos da própria terra.

Mas, na época da colheita, nada disso importa. O que interessa a todos produtores neste momento é o intangível. Traduzido, no mundo das uvas, pelo comportamento da natureza quando a colheita se aproxima e principia. Tempestades de verão, chuvas de granizo e seca intensa são os fantasmas que vêm puxar os pés de enólogos e agrônomos assim que o ano começa. Estes podem se tornar pesadelos tão reais, a ponto de, literalmente, jogar por terra o trabalho de um ano inteiro.

Para nossa felicidade, neste 2008 a natureza resolveu ser generosa com o Brasil. É quase consenso entre produtores que esta é uma das melhores vindimas que o país já teve em sua história: “Felizmente o clima nos brindou com uma excelente colheita, que já pode ser comparada à de 2005, uma das mais consistentes que já tivemos”, conta Fábio Miolo, da Miolo Wine Group, que possue vinhedos e vinícolas em diversas regiões do Rio Grande do Sul e também no nordeste. Por consistência entenda-se que a qualidade das uvas está homogênea e muito boa nas distintas áreas cultivadas. Quem concorda com Fábio Miolo é o enólogo Jean Pierre Rosier, que presta consultoria para diversas vinícolas em Santa Catarina e acredita no potencial da região para vinhos de tipicidade marcante. “O clima colaborou muito neste ano, só nos resta (aos enólogos) não estragar o presente que recebemos”, brinca Rosier.

Independentemente da procedência (França, Itália, EUA, África do Sul), as videiras de uvas viníferas têm necessidades em comum para poderem produzir bons frutos. Elas precisam de solos com boa drenagem, dias quentes, noites frias e água na medida certa. Assim, é muito fácil perceber o quanto disso é deixado nas mãos caprichosas – e por vezes vingativas – da mãe natureza. Para o enólogo Anderson Schmidt , que tem a rara oportunidade de trabalhar em três regiões distintas - Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná - a safra deste ano realmente surpreendeu. Segundo ele, as três regiões nas quais trabalha apresentaram invernos rigorosos, pouca chuva no período de floração e brotação e um verão mais seco do que o normal, até mesmo no centro do Rio Grande do Sul. Onde normalmente, as uvas de maturação lenta - Cabernet Sauvignon, por exemplo - costumam ter seu crescimento prejudicado pelo excesso de água.

Schimidt também antecipa ótimos vinhos base para os espumantes e acredita que a safra 2008, quando estiver engarrafada, vai encantar o mercado.

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Onde tudo começa
Colher boas uvas no Brasil não é uma atividade simples. Requer meses de trabalho em campo, cuidando de detalhes que vão desde as ações fitosanitárias – para manter as plantas livres de pragas e fungos – até a necessidade de telas protetoras sobre os vinhedos para não permitir que as chuvas de granizo levem para o solo os preciosos grãos de uva. Esses cuidados incluem o controle das abelhas, que têm a nobre função polinizadora, e de suas parceiras, as vespas, que perfuram os grãos maduros e os fazem apodrecer. Passam pelo treinamento das equipes as quais vão participar da colheita para que elas saibam como separar o joio do trigo, ou seja, os cachos que podem ser colhidos daqueles que devem ser descartados.

Esse último fato, aliás, faz com que uma caminhada por um vinhedo em plena produção possa causar arrepios na espinha a quem que se preocupa com o desperdício. Uma das práticas mais utilizadas em vinhedos que prezam pela alta qualidade de seus frutos é o raleio, ou seja, a subtração (o descarte) de uma parte dos cachos de uva já em franco processo de amadurecimento. Esses cachos descartados ficam pelo chão e vão, aos poucos, se tornando adubo para as próprias plantas de onde foram tirados. Difícil é convencer os pequenos produtores de que essas uvas – as quais para eles significam dinheiro – devem ser descartadas por conta do aprimoramento do produto final.

“O colono que está dependendo disso desde o primeiro cacho quer sempre apressar o processo, mas o tempo da videira é precioso. Bem cuidada e com chance para se enraigar, seu fruto será a cada ano mais valioso”, explica Acari Amorim, um dos sócios da Vinícola Quinta da Neve (SC), produtora do mais interessante Pinot Noir brasileiro até o momento. Diminuir a produção de uvas por planta foi uma decisão dura, mas um dos fatores primordiais para a melhoria da qualidade dos vinhos brasileiros.

O enólogo chefe da Villa Francioni, Orgalindo Bettú, explica que cada uva no País gosta de um determinado tipo de terreno e que essa geografia, bem utilizada, vai maximizar a qualidade do produto final. Para isso, a dupla agricultor e enólogo deve ser afinada e perceber quais as uvas podem ter produtividade maior e quais não. “É preciso considerar também o solo de cada terroir, sua disponibilidade de nutrientes, a quantidade de folhas necessárias por conta do sol que atinge as plantas, e um bom trabalho de manuseio durante todo o cultivo”, detalha Bettú. O que muita gente não imagina é que as uvas viníferas, em seu ponto preciso de maturação, são extremamente doces. Se estas forem colhidas antes do ponto ideal resultarão em vinhos não tão macios e, algumas vezes, excessivamente tânicos.

Cordilheira Sant’ana/divulgação
Uvas Gewurztraminer da Cordilheira de Sant’Ana

À sombra dos parreirais, muitas histórias novas estão sendo escritas. “A viticultura de qualidade no Brasil é recente, tem pouco mais de dez anos e, ao olharmos para o velho mundo, percebemos o longo caminho que temos para percorrer. Esta é uma cultura de longo prazo, que precisa de muito estudo”, explica Rosana Wagner, sócia e enóloga da Vitivinícola Cordilheira de Sant’ana, localizada na fronteira entre o Brasil e o Uruguai. Nessa região, os produtores brasileiros estão, literalmente, colhendo resultados. A intensidade do frio e o regime de chuvas vêm contribuindo para uvas com bom teor alcoólico e boa acidez final, dois aspectos essenciais para um vinho de qualidade.

Um novo capítulo também começa a ser escrito na história da família Binotto, que diversificou os negócios da família estabelecida no ramo de transporte com a criação da Vinícola Santo Emílio de Santa Catarina. São 15 hectares plantados com apenas duas variedades viníferas em produção que, neste ano, resultaram em seu primeiro vinho: Leopoldo. “É uma coisa nova e gratificante que nos surpreende a cada dia e nos obriga a elaborar novos conceitos”, revela Elizabeth Binotto ao final da colheita de sua terceira safra.

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Dentro do Vale dos Vinhedos (RS) outra família, com mais experiência entre as barricas, é a de Patrícia Carraro, da Vinícola Boutique Lídio Carraro. Eles já têm plantados 37 hectares de uvas em duas regiões do Rio Grande do Sul e trabalham com nove castas, mas existem outras 18 variedades em teste e algumas passando pela primeira vinificação neste ano. “Desde que lançamos o primeiro vinho, em 2002, a experimentação com as uvas é uma de nossas prioridades. O objetivo é sempre buscar a melhor expressão de cada fruta. Neste ano, com a safra excepcional que tivemos, poderemos vinificar muitas garrafas especias”, afirma Patrícia.

O que esperar
Uma grande parte das uvas colhidas durante a vindima de 2008 ainda está fermentando. Uma pequena parte, principalmente em Santa Catarina, acabou de ser colhida. Alguns dos vinhos brancos já podem estar prontos, mas ainda estão indo às barricas para envelhecer e outros às garrafas para amadurecer. No mercado, até este momento, só está disponível o Gamay da Miolo, vinho leve no estilo do Beaujolais Noveau francês, preparado para ser bebido jovem.

fotos: Sílvia Mascella Rosa
Seleção manual de grãos na Santa Augusta

Quanto aos outros vinhos, espumantes e tintos, ainda é muito cedo para falar. O presidente da Associação Brasileira de Enologia (ABE), Carlos Abarzua, só antecipa que os vinhos base para espumantes devem apresentar ótimo equilíbrio de acidez e grande estrutura, muito aromática. “O resultado da vinificação dos tintos deste ano certamente apontará para vinhos aveludados, macios e concentrados”, completa Abarzua. Outra boa notícia é que a excelência da colheita vai permitir a todas as grandes empresas prepararem seus vinhos ícones – aqueles que só são feitos em anos realmente bons. Alguns exemplos são a dupla Talento e Desejo, da Salton; o Gran Reserva, da Valduga; o Miolo Merlot Terroir, o Brut Millésime e o Lote 43, da Miolo; e o espumante Cave Geisse Terroir, da Cave de Amadeu.

Outro bom sinal – de nossa evolução como País produtor de vinhos finos e da ousadia dos enólogos – é que algumas vinícolas menores – como Cordelier e Luiz Argenta - vão aproveitar a qualidade das uvas deste ano para engarrafar vinhos especiais. Já a Pizzato vai aproveitar para fazer cortes mais ousados.

Para completar esta reportagem sobre a colheita 2008 no Brasil, ADEGA degustou dezenas de rótulos nacionais de diferentes regiões e estilos. O resultado está nas páginas de CAVE (pág. 68) e também estará nas próximas edições de ADEGA.

Safras marcantes dos vinhos brasileiros

1999
A primeira safra que conseguiu mostrar a evolução de alguns vitivinicultores nacionais.

2002
Excelente safra em aromas e corpo, mas os vinhos de 1999 foram mais longevos.

2004
Safra que apresentou bons resultados em algumas regiões e medianos em outras, sinal evidente das características dos diferentes terroirs.

2005
A melhor safra da década até agora. Alguns de seus vinhos mais importantes só vão chegar ao mercado neste ano de 2008. Safra para guardar.


Tela anti-granizo protege vinhedo da Villa Francioni

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