A pequena e charmosa comuna é uma estrela da margem direita de Bordeaux, que carrega uma riqueza cultural ainda mais diversa que seus infinitos vinhedos ao horizonte
por Por Matheus Martins Fontes
Fileiras de casas antigas, vielas de pedra estreitas e inclinadas, muralhas que remontam às fortalezas erguidas para proteger o povoado contra invasões bárbaras, tudo parecendo convergir para a igreja medieval, construída num monolito entre os séculos XI e XVI. Entre os caminhos sinuosos, uma miríade de restaurantes e lojas de vinho que enfeitam o vilarejo, e do alto uma deslumbrante vista da imensidão esverdeada dos vinhedos que adentram os limites urbanos, e convidam para uma taça ao pôr do sol.
Parece a descrição de roteiro de um filme, não? Mas não é. Trata-se da encantadora Saint-Émilion. O vilarejo, situado no estuário do rio Dordogne, cerca de 40 quilômetros de Bordeaux, há séculos exerce seu fascínio nos amantes dos grandes vinhos e da boa gastronomia em um lugar rodeado pelas riquezas históricas e desta charmosa “vila”.
A pequena cidade de Saint-Émilion foi construída na forma de um anfiteatro. No alto, está a famosa Igreja Monolítica. Ao redor, os vinhedos de alguns dos principais Châteaux
Para chegar lá é fácil. Saint-Émilion está ligada à cidade de Bordeaux, que por sua vez está conectada a Paris e às principais capitais europeias por voos e trens diários. O voo é rápido e permite aproveitar uma visão aérea da região. O TGV (trem de alta velocidade) é outra possibilidade para a viagem entre Paris e Bordeaux. Dura cerca de três horas e chega-se ao centro. De lá mesmo é possível pegar outro trem até Saint-Émilion. Apesar dessa facilidade, o ideal é alugar um carro para se locomover com liberdade pelo entorno da cidade e até visitar outras regiões próximas. O trajeto até Saint-Émilion é feito por estradas muito boas e dura aproximadamente uma hora.
Em uma cidade pequena, de distâncias curtas, em um único dia é possível visitar boa parte dos pontos turísticos, mas vale a pena reservar mais tempo para usufruir da atmosfera local e aproveitar os restaurantes mais badalados e os famosos Châteaux. A seguir, listamos e contamos um pouco da história dos lugares imperdíveis em Saint-Émilion.
Apesar da subida cansativa, a vista da cidade, da torre central, é deslumbrante
A história oficial dá conta de que os romanos, no século II a.C., já plantavam uvas no local que se tornaria Saint-Émilion. A pequena cidade foi construída na forma de um anfiteatro, no lugar mais alto do solo calcário característico da região e, foi a partir daí que surgiram as pedras de ocre, tão presentes em cada pedaço de rocha que compõe o solo.
Do século IX até o XIX, homens trabalharam pesadamente e arrancaram blocos de pedras para construir os edifícios na vila, assim como uma muralha cujos resquícios (cerca de 2 quilômetros) ainda podem ser observados na entrada da cidade. Isso ajuda a explicar a existência de mais de 200 quilômetros de galerias subterrâneas, e a Igreja Monolítica totalmente esculpida em uma só rocha, uma das maiores de toda a Europa.
No mesmo local, na Place de Créneaux, são encontradas as famosas catacumbas, que eram os locais onde se enterravam as pessoas mais importantes da cidade e muitas galerias subterrâneas abrigam, há séculos, vários quilômetros de adegas, que guardam garrafas das melhores safras da região. Não é à toa que os 1.400 anos de viticultura de Saint-Émilion lhe renderam a nomeação pela Unesco de patrimônio universal em 1999 (a primeira área de cultivo de vinho no planeta a receber essa distinção).
As catacumbas de Saint-Émilion
O cenário de pedra domina a cidade.
No subsolo, ainda há 200 quilômetros de galerias
Do lado de fora da Igreja Monolítica, os moradores construíram uma torre, que data entre os séculos XIII e XV, com base romana e corpo gótico. No alto de seus 196 degraus encontra-se o sino da torre, construído entre os séculos XII e XVI. E por mais que pareça um desafio encarar a subida de 68 metros, a incrível vista de toda a região de Saint-Émilion é a real recompensa por tal sacrifício.
Tratando-se de espiritualidade e história, é importante conhecer também a Igreja do Colegiado e seu Claustro. Ela é uma das maiores do distrito de Gironde. Construída entre os séculos XII e XV, já hospedou cânones agostinianos em seu monastério, até a Revolução Francesa. Os estilos românico e gótico são evidências claras das reformulações que foi sofrendo durante toda a sua história.
Uma gruta, localizada a poucos metros da Igreja Monolítica, é um importante vestígio da fundação histórica do vilarejo. A gruta de Saint-Émilion – chamada Ermitã – é o monumento mais antigo da vila. Ela servia de refúgio para o monge bretão Émilion, que teria batizado a cidade no século VIII. Após uma série de milagres realizados, ele teria abdicado da família para se refugiar nas florestas locais e lá construído a Igreja, dedicando sua vida a ajudar os pobres e desamparados. Em seguida, os monges agostinianos teriam começado a produção comercial de vinho na região.
O Hostellerie De Plaisance (duas fotos acima) é uma das boas opções de estadia na cidade, com seus quartos charmosos e seu restaurante estrelado. O restaurante L’Envers du Décor é disputadíssimo, pois já ganhou o prêmio de melhor carta de vinho da França. Por fim, nada como se deliciar com os “originais” macarons
Com a cuidadosa atuação dos órgãos do patrimônio histórico, em Saint-Émilion, não se veem cabos de eletricidade, postes, antenas e canos, nas ruazinhas que pouco mudaram desde a Idade Média. Por outro lado, notam-se muitas escadarias de pedras em ruas inclinadas de beco em beco. Moradores contam que foi ali o berço dos macarons, uma das várias delícias gastronômicas de Saint-Émilion. Os modelos tradicionais da cidade diferem dos vendidos em Paris – eles têm o formato de biscoito e são macios por dentro, assim como um bolo. A receita remonta ao ano de 1620 quando as freiras construíram seu convento e vendiam os doces para se sustentarem.
Outra tradição curiosa é a dos Jurados, uma congregação criada em 1199 pelo rei da Inglaterra, John Lackland, como uma espécie de Câmara dos Nobres, que concedia direitos legais, políticos e econômicos aos homens “escolhidos” de Saint-Émilion. Esse grupo de notáveis e magistrados recebia o poder da administração geral da cidade. Em troca desses direitos, os comerciantes ingleses tinham prioridade sobre os outros para comprar os vinhos da região. A autoridade dos Jurados durou até o início da Revolução Francesa, em 1789.
Alguns dos mais famosos Châteaux bordaleses estão nas redondezas de Saint-Émilion
Em 1948, muitos viticultores ressuscitaram a tradição, mas na forma de um grupo de embaixadores, com o propósito de divulgarem e promoverem os bons vinhos de Saint-Émilion, e através dessa vertente histórica conseguiram fazer da cidadezinha um local reconhecido no mundo do vinho. Eles organizam um festival de primavera, em junho, e o festival da colheita, em setembro, ocasião na qual os membros dessa irmandade desfilam pelo vilarejo vestidos em seus mantos carmesim e tudo termina numa festa cheia de música, comida e, é claro, excelentes vinhos.
Na cidade de Saint-Émilion é possível fazer cursos básicos de iniciação em vinhos e aos sábados, o turista tem acesso às sutilezas da região, e recebe as boas-vindas de um produtor, que compartilha os segredos de sua verdadeira paixão ao longo do dia. Este programa (em francês) foi pensado para ser vantajoso tanto para os principiantes na apreciação do vinho quanto para connoisseurs. Os interessados podem fazer suas reservas através do email accueil@saint-emilion-tourisme.com.
Há também a opção de recorrer à Maison du Vin (Casa do Vinho) de Saint-Émilion, que oferece os princípios básicos de degustação com aulas de 1h30 na própria escola de vinho. Para reservar sua vaga, basta entrar em contato também com a Secretaria de Turismo da cidade (www.saint-emilion-tourisme.com).
E finalmente a cidade também proporciona ao turista a experiência única de provar, escolher e produzir sua própria garrafa. Em duas horas de visita no Chatêau Haut-Sarpe, no centro de Saint-Émilion, é possível aprender um pouco sobre como se faz um vinho, dar vida à sua própria garrafa e ainda levar para casa o seu tinto. O agendamento para a atividade também é feito pelo site da Secretaria de Turismo.
Quem vai à cidade, terá a chance de provar excelentes vinhos e a influência da taça reflete na gastronomia local, em que a harmonização não é baseada no prato, mas na própria garrafa que acompanhará a refeição. Na pequena área de 27 km2, um leque de restaurantes e bares “au vin” podem ser encontrados um do lado do outro, em cada esquina de pedra, à disposição como palco de conversas agradáveis.
Na Rue Du Clocher, uma das mais movimentadas do vilarejo, há o L’Envers du Décor, um bar de vinhos histórico de Saint-Émilion (aberto em 1987). Com sua cozinha regional, o estabelecimento se tornou um dos pontos mais procurados do centro, com três salões de jantar. Para quem está sozinho, o balcão é uma excelente pedida, mas o jardim de inverno (se não for inverno mesmo!) é nossa sugestão. De qualquer maneira aceite a mesa que lhe propuserem, pois o local é disputadíssimo desde que venceu o prêmio de melhor carta de vinho em taça da França em 2005. O pato é incrível, mas aventure-se pelo menu de peixe, lagosta, cordeiro e pela tábua de queijos.
A poucos metros da Igreja Monolítica, mais precisamente na Rue du Tertre de la Tente, há o ambiente sofisticado do restaurante Le Tertre, escolha certa para encontros românticos. No verão, é possível escolher uma das três mesas para dois a céu aberto e fazer uma agradável refeição cerca do da fragrância das flores ao redor. Se o tempo não estiver ajudando, o restaurante tem várias mesas no salão interior – ideais para um almoço entre família e amigos – com o som discreto do piano ao fundo.
Outra excelente opção também fica na mesma Rue Du Clocher, a 50 metros do L’Envers du Décor, onde está o magnífico Hostellerie De Plaisance. O restaurante do hotel, classificado com duas estrelas pelo Guia Michelin, é outro local que oferece uma vista panorâmica de Saint-Émilion e seus vinhedos. Na casa, é possível realizar uma minidegustação com o chef harmonizando o prato de acordo com o vinho. A cozinha contemporânea, com leve influência asiática, agrada a todos os gostos. Outra curiosidade se dá pela mudança dos cardápios a cada dia, em uma proeza genuína de criatividade e sutileza.
O mesmo Hostellerie de Plaisance também é uma boa alternativa para quem procura descansar com conforto após um dia cheio de passeios pela região. Há suítes e quartos transpirando uma atmosfera radiante de elegância e tranquilidade incomparáveis. Outra grande pedida é programar sua estadia em um dos Châteaux e de lá partir para explorar as redondezas.
Há diversas boas lojas de vinho na cidade, como a Grande Cave (acima), que faz degustações comparativas gratuitas, e a Etablissements Martin (abaixo), com sua cave subterrânea onde estão guardados grandes tesouros
Em toda a região de Saint-Émilion, a maioria dos Châteaux (são 103 ao todo) abre seus portões para saciar a curiosidade dos turistas. O viajante deverá escolher qual é o do seu interesse e fazer a reserva diretamente com antecedência. No site da Secretaria de Turismo, há a lista de todos os Châteaux e seus atrativos. Há nomes de peso como o Château Angélus, Ausone e Pavie, três Premiers Grands Crus Classés A. Não se deve esquecer que lá perto também se encontra o mítico Cheval Blanc. Mas ainda é possível conhecer alguns dos ícones da região, como o Château Canon, que recebe visitantes gratuitamente, o Beau Séjour, que cobra uma pequena taxa, ou o Villemaurine, com suas belas caves subterrâneas.
A 10 minutos de carro do centro de Saint-Émilion, o Château Valandraud dispõe de jardim com terraço mobiliado, piscina e banheira de hidromassagem. Do quarto, é possível apreciar a bucólica vista dos vinhedos, o café da manhã continental é servido diariamente e pode-se usufruir da cozinha principal para preparar outras refeições. O acesso ao Château e a degustação dos vinhos ali produzidos estão disponíveis mediante solicitação no site www.saint-emilion-wine-tourism.com.
*Colaboração de Péricles Gomes e Juan Carlos Ferreira
Mais informações: www.saint-emilion-tourisme.com
Dicas de comprasPara as compras, os turistas vão encontrar muitas lojas (mais de 100) na cidade medieval: boutiques, lojas de vinhos, galerias de arte, lojas de utilidades domésticas, joalherias, lojas de presentes, entre outras. Para quem quer provar os macarons, vale uma visita na loja de Nadia Fermigier - Successeur de Madame Blanchez, que diz ter a receita original do doce. Para os que pretendem comprar vinhos, há boas opções nas lojas Bordeaux Classique (excepcional seleção de Bordeaux, mas também de outras regiões francesas), Etablissements Martin (vinhos de safras antigas) e La Grande Cave de Saint-Émilion (com degustações comparativas gratuitas e exemplares da Revista ADEGA para ajudar a sua compra). Outro ponto imperdível é a visita à loja da Laguiole com suas facas e saca-rolhas ícones. |