Bastam três

Sommelier: confie em seus sentidos

Em uma degustação às cegas, o amplo conhecimento, sozinho, é insuficiente

por Marcelo Copello

"Um velho especialista em vinhos, ao ser atropelado por um trem, teve seus lábios umedecidos com vinho para que recobrasse os sentidos. 'Pauillac, 1873' murmurou ele antes de morrer", Abrose Bierce.

A prova final do VI Concurso Nacional de Sommelier, promovida pela Associação Brasileira de Sommeliers (ABS), aconteceu há dez anos, no hotel Pestana, no Rio de Janeiro. Na ocasião, tive a honra de fazer parte do júri técnico, que avalia os candidatos na etapa mais temida do concurso, a degustação às cegas.

Nesta prova, quatro vinhos foram servidos, e os candidatos, sabatinados a respeito de cada um, no caso: "Sauvignon Blanc 2004" (Trapiche - Argentina); "Sauvignon Blanc 2005" (Viña Montes - Chile); "Carménère 2004" (Casa Silva - Chile) e "Chardonnay Lote I" (Villa Francioni - Santa Catarina - Brasil).

À primeira vista, estes vinhos podem ser considerados fáceis de serem identificados, pois são todos mono-varietais de castas bem conhecidas. Mesmo assim os candidatos (todos especialistas de ótimo nível) tiveram dificuldades, suavam frio, literalmente tremiam e alguns emitiram palpites esdrúxulos. Conclusão, a frase mais associada à degustação às cegas é pura verdade: "Degustar às cegas é uma lição de humildade".

É bom explicar que esta prática consiste em provar um vinho sem saber qual é. Basta embrulhar a garrafa para esconder o rótulo ou apresentar a bebida já na taça. Este tipo de degustação é usada em concursos de sommeliers, avaliações de vinhos em geral, e didaticamente. É um exercício intelectual de alto nível e pode ser também uma brincadeira educativa e divertida. Por outro lado, é o terror dos bebedores de rótulos, que julgam os vinhos por fama e preço, ficando assim totalmente perdidos. Mas por que este tipo de prova é tão difícil? Em primeiro lugar, pela variedade de vinhos que há no mundo, que é virtualmente infinita. Depois, pela dificuldade envolvida na degustação técnica de um vinho. Para ser levada ao nível de excelência, requer uma profunda reeducação dos sentidos.

Segundo o filósofo francês Michel Onfray, o ser humano, ao se tornar sapiens, passou a condenar tudo que o ligava à sua origem animal. O homem renunciou ao olfato e ao paladar em proveito da visão e da audição, sentidos que exaltam a distância. O ser "civilizado" vê e ouve. Olfato e paladar seriam sentidos ignóbeis. Aromas e sabores, primitivos.

O ser humano possui cinco sentidos. Ao ignorar dois deles, estaria perdendo, grosso modo, 40% de seus meios de comunicação com o mundo.

Para quem gosta de pintura, não é difícil diferenciar um Salvador Dalí de um Renoir. Para quem gosta de música clássica, o mesmo se daria entre obras de Bach e Chopin, por exemplo. Por que não ser óbvia para todos, também, a diferença entre um Cabernet Sauvignon e um Pinot Noir? Qualquer adolescente distingue, ouvindo rock, em meio a vários instrumentos, os timbres da guitarra e do baixo. Por que então, dentre tantos aromas de um vinho, não reconhecer carvalho ou banana?

Costumo participar regularmente de degustações às cegas. Feitas com fins didáticos, consistem em, primeiramente, avaliar completamente o vinho sem a preocupação de reconhecê-lo. Depois, procurar adivinhar, passo a passo, os seguintes quesitos: teor alcoólico, safra, quais os tipos de uva compõem o vinho, país e região de origem, e, por fim, adivinhar que vinho é. Os dois primeiros quesitos são relativamente fáceis, o terceiro e quarto são de dificuldade mediana. Já acertar o vinho é extremamente difícil. Esta atividade deve ser feita em grupo, de preferência com a orientação de um degustador mais experiente. A troca de informações entre os participantes também é importante.

Aviso que, para ter sucesso no jogo, é preciso muita prática. Em outras palavras, já ter bebido muitos vinhos. E o mais importante, lembrar-se deles.

Em "Dom Quixote", de Miguel de Cervantes, há uma passagem em que Sancho Pança, personagem notório por contar vantagem em tudo, diz que em sua família existiam grandes degustadores, tanto que numa ocasião dois deles, ao degustar o vinho de um determinado tonel, concordaram em tudo, menos em um sutil aroma que um dizia ser couro e outro, ferro. E continuaram bebendo e discutindo até esvaziarem o tonel e acharem lá no fundo um chaveirinho de couro.

Sem querer chegar a esta improvável precisão, pode-se aprender muito degustando vinhos às cegas. Sobretudo adquirir confiança em seus sentidos e a já citada humildade.

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