Produtores brasileiros experimentam variedades pouco conhecidas para enfrentar um mercado cada vez mais competitivo
por Sílvia Mascella Rosa Publicado em 14/08/2013, às 00h00 - Atualizado em 18/03/2019, às 16h21
Vinhedos de Marselan – cruzamento de Cabernet Sauvignon e Grenache – da vinícola Perini
No Brasil, são cultivadas mais de uma centena de uvas finas para fins comerciais. Esse número parece realmente grande quando se pensa em quantas castas vêm à memória ao tentarmos elencar as variedades de vinhos que consumimos sistematicamente, e não apenas os brasileiros.
O trio CMC (Chardonnay, Merlot e Cabernet) domina a cena da vitivinicultura do Novo Mundo há quase meio século, gerando produtos que modificaram a história do vinho. Vide, por exemplo, os Chardonnay californianos e os Cabernet Sauvignon chilenos, que viraram praticamente sinônimos de vinhos interessantes (e tantas vezes excelentes) nesses países.
O Brasil seguiu a mesma trajetória em sua história recente, seja para ganhar competitividade, seja pelo fato dessas uvas serem versáteis e capazes de se adaptar aos mais variados terroirs, inclusive o nosso. Isso sem contar que o encontro da Chardonnay com a Pinot Noir e com a Riesling Itálico é a base da maioria de nossos tão prestigiados espumantes.
No entanto, seja por um resgate histórico, seja por uma evolução natural das pesquisas, seja até mesmo para se diferenciarem no mercado, muitas vinícolas apostam algumas garrafas em variedade diferentes, que propiciam um interessante passeio pelo mundo do vinho.
A Casa Valduga possui em linhas como Raízes e Identidade, em que variedades pouco comuns brilham
Da colonização portuguesa, passando pela imigração italiana, as uvas no Brasil já tiveram muitas procedências e sotaques, mas há décadas que o trio CMC é soberano em várias regiões, a ponto de a Merlot ser a uva símbolo do Vale dos Vinhedos, a única Denominação de Origem do Brasil. Seus resultados na região demarcada são realmente expressivos, e isso se deve ao terroir e à dedicação de alguns vinhateiros que, há anos, vêm observando e intervindo nos vinhedos para chegar aos bons vinhos atuais.
No entanto, até bem pouco tempo, a vedete da Serra Gaúcha era a Cabernet Franc, considerada por muitos ampelógrafos como a mãe da Cabernet Sauvignon. Mais perfumada e macia, aos poucos ela vem retomando espaço, como explica Dirceu Scottá, presidente da Uvibra e enólogo chefe da vinícola Dal Pizzol: “Tínhamos muita Cabernet Franc por aqui, produzindo vinhos bem interessantes, mas, no começo da década de 1990, muitos parreirais da região sofreram um ataque de vírus que prejudicou enormemente a qualidade das uvas e a variedade ficou desacreditada. Apenas dos anos 2000 em diante, com viveiristas novos, mudas importadas e mais conhecimento é que a variedade veio sendo resgatada”, explica. Para a Dal Pizzol, a Cabernet Franc já havia sido a mais importante varietal da empresa e, nos últimos anos, vem reconquistando o espaço perdido, com o rótulo “Do Lugar”, que faz menção ao seu passado na região de Faria Lemos.
Assim como na Dal Pizzol, na Casa Valduga, a Cabernet Franc já foi protagonista na década de 1990, quase sumiu também, e vem reaparecendo, dessa vez nos novos vinhedos na Campanha Gaúcha, na linha de vinhos Raízes, com resultados bem expressivos tanto como varietal quanto em cortes, graças também às novas mudas e ao terroir.
Na Casa Valduga, aliás, a diversificação dos terroirs acrescentou muitas uvas antes desconhecidas dos brasileiros entre seus produtos, como na linha Identidade, que tem uvas plantadas em Encruzilhada do Sul, no sudeste do estado gaúcho. É de lá que chegam varietais como a Arinarnoa e a Marselan, por exemplo.
O enólogo Dirceu Scottá comenta que essa evolução da qualidade das uvas menos conhecidas se dá com base em pesquisas mais bem fundamentadas de adaptação e a compra de mudas certificadas, gerando novos varietais para o mercado (como é o caso, por exemplo, da bem sucedida Touriga Nacional na própria Dal Pizzol e na Miolo, na Campanha Gaúcha). Mas ele alerta que essas mudanças devem acontecer também no trio CMC, pois as pesquisas de melhoramento genético e desenvolvimento clonal estão sendo fundamentais para que mesmo as uvas clássicas encontrem sua melhor forma por aqui: “Não é preciso reinventar a roda e deixar de lado uvas que produzem vinhos que são bem aceitos por todos. Não acredito que as variedades clássicas venham a se esgotar, mas sei que é preciso pesquisar e trabalhar direito para fazer com que elas sejam competitivas, num mercado em que o consumidor deseja vinhos mais fáceis de beber e de bom custo, e em que a concorrência internacional é muito forte”, releva Scottá.
“Não é preciso reinventar a roda e deixar de lado uvas que produzem vinhos que são bem aceitos por todos”, Dirceu Scottá
Angheben trouxe mudas do norte da Itália buscando resgatar uma parte da história dos seus antepassados
Turistas que visitam a Serra Gaúcha normalmente se dividem em dois grupos: aqueles que estão se aproximando pela primeira vez do mundo do vinho e aqueles que fazem desse um caminho constante, em busca de novidades e sabores distintos. Ambos os grupos encontram o que querem na região, repleta de tradições e de belezas naturais ou construídas pelo homem. No entanto, apesar da tradição italiana predominar na Serra, a maioria dos vinhos consumidos pelos turistas é de uvas francesas. É por isso que alguns produtores decidem, volta e meia, recuperar as uvas trazidas por seus antepassados numa época em que o vinho servido à mesa para acompanhar a massa e as carnes de caça era das variedades Peverella e Trebbiano (brancas) e Bonarda, Teroldego e Barbera (tintas).
A Peverella ainda é tímida na Serra e quase desapareceu, mas persiste nas mãos de alguns obstinados produtores como a família Salvatti, da região dos Caminhos de Pedra, e os vinhateiros da Era dos Ventos (Álvaro Escher, Luis Zanini e Pedro Hermeto). Tradicional do norte da Europa, ela foi uma das primeiras uvas brancas produzidas no Brasil depois da chegada dos italianos, no começo do século passado.
A Bonarda ainda não fez seu caminho de volta para os parreirais gaúchos, mas a Barbera já conta com bons exemplares por aqui, seja no Vale dos Vinhedos (na Vinícola Angheben), seja em Farroupilha (na Vinícola Perini). “A maior parte dos turistas que nos procuram querem vinhos diferentes e é por isso que aqui acreditamos que o caminho para os vinhos brasileiros é o das pequenas produções, com alta qualidade e que não deixem de mostrar a tipicidade e o regionalismo”, conta Eduardo Angheben, enólogo da vinícola que leva seu sobrenome. Ele e o pai, o também enólogo Idalêncio Angheben, trouxeram mudas do norte da Itália buscando resgatar uma parte da história dos antepassados, uma vez que a Barbera, por exemplo, já foi muito cultivada na Serra Gaúcha.
Mas implantar vinhedos tão diferentes não foi fácil a princípio e algumas variedades foram abandonadas, enquanto outras ganharam espaço: “Talvez ainda não tivéssemos todo o conhecimento, a paciência e os recursos que precisávamos quando começamos as pesquisas com as variedades italianas, mas o fato é que uvas como a Nebbiolo, por exemplo, ficaram no caminho, pois o resultado em campo era bom, mas decepcionava em cantina”, conta Eduardo Angheben. Entre as que ficaram, dois sucessos: a Teroldego e a Barbera, que vai ao encontro do gosto de muitos consumidores que buscam vinhos mais leves e com boa acidez.
A uva Barbera, originária da região central do Piemonte, pareceu mesmo encontrar um terroir interessante em partes da Serra, e mesmo tendo sido relegada por muitos anos como a coadjuvante em cortes até de vinhos de mesa, ela nunca deixou de ser plantada. Mas esses vinhedos antigos não tinham qualidade para produzir os vinhos modernos que as vinícolas querem fazer.
Assim, a Perini, em Farroupilha, decidiu comprar mudas italianas certificadas e implantar novos vinhedos, recuperando uma parte de sua história também. O enólogo da empresa, Leandro Santini, explica que já existem hoje alguns viveiristas brasileiros que trabalham com mudas de alta qualidade, livres de viroses e totalmente sãs, mas que até bem pouco tempo isso não era fácil: “O Brasil já viveu épocas em que as mudas vinham do Uruguai, da Europa e da África do Sul sem qualquer controle, e isso nos trouxe muitos problemas. Felizmente hoje podemos comprar mudas com alta qualidade tanto de variedade quanto de porta-enxerto e que venham de acordo com as especificações que precisamos. Por exemplo, com um clone que se adapte melhor ao solo e ao clima de determinada região. Isso é excelente para todas as uvas, mas ainda mais importante para as variedades menos comuns por aqui, que conhecemos em menor profundidade”, revela.
Vinhedo do MundoLocalizado no Parque Temático da Dal Pizzol, no distrito de Faria Lemos (Bento Gonçalves), o Vinhedo do Mundo é uma coleção com mais de 200 variedades de uvas de 22 países, inclusive com mudas vindas da Geórgia, no Cáucaso, local histórico onde muitos estudos apontam como sendo o de origem de uvas finas como a Merlot, por exemplo. “Estamos trabalhando em parceria com a vinícola italiana Cormóns, que possui mais de 800 variedades de uvas em suas terras na Veneza Giulia e, com eles, compartilhamos mudas e conhecimento”, conta o enólogo Dirceu Scottá, da Dal Pizzol. O Vinhedo do Mundo, que começou como uma coleção para pesquisas internas de adaptação, expandiu-se para ser também um indutor do enoturismo, aproximando as pessoas de muitas uvas raras e exóticas, além daquelas já conhecidas de todos. |
Fazenda Ouro Verde, “onde o terroir é excelente para variedades como a Shiraz e a Moscato”, segundo o enólogo Miguel Angelo Almeida
Critérios para a escolha das castas e das regiões onde elas serão implantadas são climáticos, agronômicos, enológicos e comerciais
Na vinícola Perini, onde a Chardonnay, a Merlot e a Cabernet Sauvignon são vinificadas com excelentes resultados, a principal uva fora do trio que se provou uma aposta acertada foi a Moscato Bianco R2, que caiu no gosto do consumidor e vai muito bem no mercado. A família das uvas Moscato, aliás, tem sido uma importante ferramenta para trazer novos consumidores para o mundo dos vinho finos, com seu perfil aromático bem marcado e leveza de sabores: “O consumidor de vinhos não é fiel, ele está sempre em busca de novidades e, por isso, é importante termos grandes vinhos das uvas mais conhecidas e também alguns vinhos pouco óbvios de alta qualidade”, completa Santini, afirmando que os enólogos gostam mesmo é dos desafios.
Enfrentar desafios é exatamente o que acontece com empresas que trabalham com muitas variedades de uvas e o Grupo Miolo, espalhado em cinco diferentes regiões produtoras brasileiras tem, em 1.200 hectares, 27 castas diferentes plantadas, além de outras tantas em estudos de viabilidade produtiva: “Cada projeto do grupo tem suas peculiaridades e aptidões naturais. Por exemplo, no semiárido do nordeste não temos nenhuma das castas do CMC, elas não são viáveis lá na fazenda Ouro Verde, onde o terroir é excelente para variedades como a Shiraz e a Moscato, por exemplo”, conta o enólogo do grupo, Miguel Angelo Almeida. Bem implantadas na Serra, a Merlot e a Chardonnay produzem excelentes resultados no Vale dos Vinhedos, enquanto a Cabernet Sauvignon tem se mostrado muito promissora na Campanha Gaúcha.
A Miolo, quando adquiriu os vinhedos da Almadén, em Santana do Livramento, deparou-se com muitas variedades para estudo, que estavam no Brasil há mais de 30 anos, permitindo uma gama de experimentação significativa para a vinícola e o desenvolvimento, inclusive, de um Tannat de vinhedos velhos, que haviam sido mantidos em bom estado nas terras da Almadén.
Já o terroir vizinho de Candiota, onde estão as terras do Seival Estate, as castas francesas como Sauvignon Blanc e Pinot Noir vão muito bem (além do trio CMC), mas o grande destaque vem mesmo das variedades portuguesas, como a branca Alvarinho e a tinta Touriga Nacional. “Os critérios que norteiam as escolhas das castas e das regiões onde elas serão implantadas são climáticos, agronômicos, enológicos e comerciais, pois o objetivo é extrair o máximo potencial natural traduzido em vinho, seja ele de castas tradicionais ou não”, conta Almeida. Ele completa explicando algo que todos os vinhateiros foram unânimes em ressaltar: a moderna vitivinicultura brasileira, melhor organizada nos últimos 20 anos, precisa de inovação e de qualificação, em uvas tradicionais ou não tradicionais. “É fundamental investir em diferenciação. Os tempos mudam e mudam muito rápido, quer o tempo do homem, quer o tempo do clima”, conclui.
Vinícola Monte Lemos, Faria Lemos, Brasil (R$ 58). Bela coloração rubi brilhante, com aromas de chocolate e baunilha mesclados com especiarias doces e frutos negros. O enólogo escolheu favorecer o lado mais delicado da uva, vinificando em temperatura baixa. O resultado é um vinho macio, atraente, com a fruta madura aparente e bons taninos, que se beneficia também do descanso em garrafa. Bom para beber agora e para guardar uns dois anos também. SMR
Cave de Pedra, Vale dos Vinhedos, Brasil (R$ 40). Sangiovese com estágio de oito meses em barricas de carvalho. Apresenta cor vermelho-rubi puro e cativantes aromas de cerejas maduras envoltos por notas terrosas, defumadas e de especiarias doces. Em boca, é mais austero, confirma os toques minerais do nariz, tem boa acidez e final médio. Experimente com carnes de caça ou massas ao molho tipo sugo. EM
Vinícola Perini, Farroupilha, Brasil (R$ 16). Amarelo claro bem brilhante, este vinho tem aromas convidativos de frutas como pêssego branco, nectarina e um ligeiro floral. Fresco e frutado em boca, tem um final com toque ligeiramente mineral. É o aperitivo ideal, fácil de beber e bem feito. Atualmente, os Moscatos tranquilos são o grande sucesso no mercado americano e aqui no Brasil são imbatíveis na transição dos vinhos mais adocicados para os mais secos. SMR
Casa Valduga, Encruzilhada do Sul, Brasil (R$ 55). Marselan é o fruto do cruzamento entre Cabernet Sauvignon e Grenache. Apresenta intensa cor vermelho-rubi de reflexos violáceos e aromas de frutas vermelhas frescas envoltos por notas herbáceas, tostadas, defumadas e especiadas. No palato, é frutado, tem acidez refrescante e final gostoso e suculento. Gastronômico, deve ir bem na companhia de carnes grelhadas. EM
Don Guerino, Rio Grande do Sul, Brasil (R$ 50). Tinto elaborado a partir de Teroldego, com estágio de 14 meses em barricas de carvalho. Apresenta cor vermelho-rubi e aromas de frutas negras, notas minerais, florais e de especiarias doces. No palato, é frutado, tem ótima acidez, madeira bem colocada, taninos finos e final médio e agradável. Experimente com carne de cordeiro. EM
Vinícola Dunamis, Dom Pedrito, Brasil (R$ 40). Bela tonalidade rubi, com aromas bem típicos de frutas, notas terrosas e certa rusticidade bastante interessante no estilo e na cepa. É um detalhe que agrada muito. Boca muito equilibrada, com taninos presentes e delicados, boa acidez que convida a outro gole, frutado na medida certa e leveza para arrematar o conjunto. SMR
Hermann Vinhos e Vinhas, Rio Grande do Sul, Brasil (Decanter R$ 53,15). Tinto feito majoritariamente a partir de Touriga Nacional. Apresenta cor vermelho-rubi de reflexos violáceos e aromas de frutas negras maduras, típicas notas florais, minerais e especiadas, além de toques herbáceos. No palato, é frutado, redondo, tem acidez refrescante, taninos macios e final médio e suculento. Para acompanhar carnes vermelhas. EM
Pizzato Vinhas e Vinhos, Vale dos Vinhedos, Brasil (R$ 50). Uma das poucas vinícolas que apostam nessa variedade rara no Brasil, principalmente para vinificação em varietal, a Pizzato consegue um resultado surpreendente neste tinto negro, com aromas de couro, tabaco, alcaçuz e ligeiro toque floral. Ficou por apenas seis meses em barrica de carvalho americano e, acreditem, aos oito anos ainda está jovem e suculento, com muita potência e excelente textura. Final longo e persistente. SMR
Grupo Miolo – Seival Estate, Candiota, Brasil (R$ 55). Amarelo com tom dourado claro. O enólogo Miguel Almeida, natural de Portugal, ficou feliz ao constatar que a Alvarinho no Brasil também suporta passagem por carvalho. Neste delicioso exemplar, os aromas são de frutas brancas maduras e notas florais. Em boca, tem boa presença, com volume e acidez na medida, mas o melhor é o toque amadeirado, que traz a lembrança do mel e dos frutos secos, aliados à uma longa persistência. SMR
Vinibrasil, Pernambuco, Brasil (R$ 19). Cor vermelho-rubi de reflexos púrpura e aromas de frutas vermelhas maduras envoltas por notas florais e de especiarias doces. No palato, é frutado, redondo, tem boa acidez e final médio e agradável. Surpreende pelo equilíbrio do conjunto. Pode acompanhar desde carnes vermelhas até embutidos em geral. EM