Potência versus sutileza, vinificação versus terroir, blend versus varietal. Conheça as principais diferenças entre Bordeaux e Borgonha
Arnaldo Grizzo Publicado em 15/11/2022, às 13h00
De um lado, sutileza, de outro, potência. Quando se fala dos vinhos da Borgonha em comparação com os de Bordeaux, as duas regiões vitivinícolas mais famosas da França, costuma-se resumir (bem grosseiramente) dessa forma, para tentar explicar suas diferenças.
Mas essa é uma abordagem bastante genérica e nem sempre totalmente certa, pois mesmo os bordaleses podem produzir vinhos sutis, assim como os borgonheses podem elaborar algo potente.
Há quem diga, no entanto, que as diferenças estilísticas se dão pelas filosofias por trás da visão dos produtores. Sim, pensando novamente de forma genérica, definitivamente há um distanciamento entre formas de pensar a vinificação que levam a vinhos bastante diferentes entre si. Mas um produtor bordalês não pode usar um “approach” borgonhês? Ou então um enólogo da Borgonha não pode vislumbrar algumas técnicas de Bordeaux?
Com certeza, ainda mais agora em um mundo cada vez mais conectado em que há informação sobre tudo e muita troca, pitadas de um podem afetar o outro.
Todavia, por mais próximos que alguns possam por ventura caminhar, sempre vai haver diferenças importantes entre Bordeaux e Borgonha. Basta dizer que o terroir não é e nunca será o mesmo e, como sabemos, esse ponto é crucial para qualquer vinho. Há ainda uma infinidade de questões culturais e históricas que afetam a produção de cada local, tornando seus vinhos únicos.
Sendo assim, vamos elencar alguns tópicos para que você compreenda as principais diferenças entre essas regiões. Qual a melhor? Desculpe, mas essa questão não cabe aqui.
Um tópico crucial na diferença entre Bordeaux e Borgonha são as variedades historicamente cultivadas em cada um dos locais.
Se na Borgonha temos por base a Pinot Noir para os tintos e a Chardonnay para os brancos (com raríssimas exceções), em Bordeaux vamos falar do predomínio de Cabernet Sauvignon, nas denominações da margem esquerda, e de Merlot, nas da margem direita, mas com acréscimos importantes de Cabernet Franc, Petit Verdot, entre outras. No caso dos brancos, Sémillon e Sauvignon Blanc são as principais.
Além de uma maior variedade de castas permitidas em Bordeaux, seus vinhos são essencialmente elaborados com mesclas de uvas. É bastante raro vermos um vinho bordalês feito 100% com uma única variedade (sim, há exceções). Por sua vez, na Borgonha a mescla não é permitida. Os tintos devem ser de Pinot Noir somente, assim como os brancos de Chardonnay.
Ou seja, de uma lado, os enólogos bordaleses entendem que os blends são a representação mais fiel do terroir da região, enquanto os borgonheses tiram essa interpretação dos vinhos varietais.
É comum os rótulos de Bordeaux ostentarem o nome de algum Château. A palavra significa castelo, pois costumeiramente as propriedades locais tinham castelos (ou pelo menos casarões) como sede. Alguns, mesmo sem ter um verdadeiro château, também usam isso no rótulo.
Por sua vez, os produtores borgonheses costumam se denominar Domaine. O termo significa domínio ou propriedade, ou seja, um pedaço de terra com um dono. Mas sim, há quem use o nome Château na Borgonha e Domaine em Bordeaux, mas são mais raros.
O terroir de Bordeaux é famoso por estar dividido entre as margens esquerda e direita do rio Gironde. Do lado esquerdo há predominância de solos arenosos com cascalhos grandes, ditos graves, onde a Cabernet Sauvignon se dá melhor. Do direito, o cascalho também predomina, mas há mais presença de argila, o que favorece a Merlot.
Já a principal divisão da Borgonha se dá entre a Côte de Nuits e a Côte de Beaune. As encostas do norte (Nuits) tendem a ser mais famosas por seus tintos, enquanto as do sul (Beaune) pelo brancos. Vale lembrar que há outras regiões tanto em Bordeaux (Entre-Deux-Mers, principalmente) quanto na Borgonha (Côte Chalonnaise, Mâconnais e Chablis).
Uma das principais diferenças entre as visões bordalesas e borgonhesas em torno do vinho se revela em suas classificações. Enquanto na Borgonha a hierarquia de qualidade dos vinhos é definida pelo vinhedo de onde provém a uva, em Bordeaux o nome do produtor fala mais alto.
Explicamos.
Na Borgonha, a classificação vai de vinhedos Grand Cru, Premier Cru, Village até regionais. Um Grand Cru pode ter vários proprietários e todos eles poderão fazer vinhos com essa classificação.
Já em Bordeaux as classificações (sim, há mais de uma) baseiam-se no status do produtor. Na hierarquização mais famosa do Médoc, estabelecida em 1855, há cinco categorias, dos Premier Grand Cru Classé até os Cinquièmes, e foi baseada na reputação e preço dos vinhos. Se um produtor considerado Premier Cru adquire terras de um vizinho de hierarquia mais baixa, e passa a fazer vinhos com esses vinhedos, ele continua sendo um Premier Cru.
O clima da Borgonha é continental, com invernos bastante rigorosos. São cerca de 28 mil hectares de vinhedos localizados a uma altitude média 220 metros no coração da França, estendendo-se a mais ou menos 300 quilômetros, de Joigny no departamento de Yonne até Macon em Saône et Loire. Os solos variam bastante, mas predominam os subsolos com bastante influência do calcário, pois milênios atrás a região era inundada pelo mar.
Já Bordeaux fica no leste da França, no departamento de Gironde, na região da Aquitânia. A produção vinícola, nos cerca de 110 mil hectares de vinhedos, concentra-se às margens de dois rios principais, o Garonne e o Dordogne, que, ao se encontrarem, formam o estuário do Gironde. Os terrenos são bastante planos e predominam os solos arenosos (margem esquerda) ou argilosos (margem direita) misturados com cascalho (“graves”, em francês). O clima é temperado oceânico.
A produção de vinho na Borgonha é intrinsecamente marcada pelas ordens religiosas que se instalaram na região durante a Idade Média. Os monges da Abadia de Cluny foram determinantes para o desenvolvimento dessa cultura e também para o mapeamento dos melhores terrenos para a produção da uva, assim como a escolha das variedades Pinot Noir e Chardonnay.
Por sua vez, a história do vinho de Bordeaux é marcada pelo domínio inglês na região por cerca de três séculos, desde quando Eleonor da Aquitânia casou-se com Henrique II da Inglaterra até o fim da Guerra dos Cem Anos. A influência inglesa e também holandesa foi essencial para o desenvolvimento bordalês, especialmente na criação dos chamados “clarets”, termo até hoje às vezes usado para designar os vinhos de Bordeaux.
Além de partir do pressuposto que os vinhos bordaleses são blends e os borgonheses varietais, costuma-se haver algumas diferenças importantes em técnicas de vinificação entre as duas regiões – falando obviamente de forma bastante genérica.
Em Bordeaux, os produtores tendem (ou pelo menos tendiam) a privilegiar o uso de barricas novas com formatos ligeiramente menores e tostas mais acentuadas.
Na Borgonha, o uso de barricas (um pouco maiores e com tosta menos intensa) quase sempre é mais comedido. Apesar de isso ter mudado bastante nos últimos anos, os enólogos bordaleses costumavam ser um pouco mais intervencionistas do que os borgonheses no uso de leveduras, sulfitos etc. Contudo, não se pode esquecer que os borgonheses às vezes podem fazer uso da chaptalização (adicionar açúcar ao mosto) para produzir seus vinhos em anos complicados.
Há quem fale de uma dicotomia entre potência e sutileza, mas isso nem sempre é verdadeiro.
A Pinot Noir é uma uva bastante delicada e, em condições similares, certamente dará vinhos mais sutis do que a Cabernet Sauvignon e a Merlot, mas isso não quer dizer que não se possa encontrar finesse nos vinhos bordaleses.
Há quem professe que, devido à maior estrutura, os Bordeaux possuem muito mais tempo de guarda que os borgonheses. Mas temos visto alguns rótulos da Borgonha vencerem o tempo de forma sublime, tanto tintos quanto brancos.
Mas, enfim, se quisermos generalizar, Bordeaux apresentará mais potência, estrutura, força tânica, robustez, especiarias, notas de madeira, frutas concentradas etc., enquanto Borgonha terá mais leveza, acidez, delicadeza, notas terrosas, frutas um pouco menos maduras etc.