Doce, salgado, amargo, ácido. Os sabores de um vinho vão muito além destas poucas percepções
Marcelo Copello Publicado em 31/05/2019, às 17h00
Vinho é boca, costumo dizer. E é comum que muitos se encantem com as ricas descrições dos aromas de um vinho e que sucumbam ao fascínio de navegar pelas diversas nuanças gustativas deste complexo néctar de Baco. Mas, o vinho é feito para ser bebido e o que realmente separa uma grande bebida das demais é o "sabor", qualidade dos taninos, acidez, seu equilíbrio, profundidade, persistência etc.
O que é, então, o sabor de um vinho? Vários estudos científicos recentes mostram que o assunto está em voga e que ainda há muito para ser descoberto. Já sabemos que a sensibilidade de nosso paladar vai muito além de doce, salgado, ácido e amargo. Estamos, contudo, ainda longe de saber com precisão tudo o que se passa dentro de nossas próprias bocas. Vejamos alguns conceitos e novidades sobre o assunto.
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Antes de tudo, é importante diferenciar "gosto" de "sabor". Gosto é a percepção das células gustativas apenas, ou seja, de tudo o que se dissolve na saliva. Já o conceito de sabor é mais amplo. É um conjunto de informações sensoriais produzidas em toda a cavidade bucal, formadas a partir da percepção gustativa, olfativa e tátil, que chamamos de sensibilidade oral.
Nossas preferências de sabores se formam até os três meses de idade. A alimentação da mãe durante a gravidez e o aleitamento influem em nosso "gosto pessoal" para o resto de nossas vidas. O sabor está fortemente associado a "prazer" ou "desprazer". Humanos e animais evitam gostos associados a coisas venenosas ou a qualquer experiência alimentar mal sucedida. Por exemplo: se algum dia ingerimos algo que nos fez passar mal, provavelmente evitaremos instintivamente aquela percepção gustativa por longo tempo ou para sempre.
As informações de sabor são percebidas em toda a boca, principalmente na língua. Durante muitos anos, uma informação equivocada foi propagada em muitos livros, mostrando um "mapa da língua", em que cada gosto básico (doce, salgado, amargo e ácido) seria percebido em uma parte dela. Hoje está provado que cada papila gustativa responde a todos os sabores, embora existam grupos que percebem mais fortemente um tipo de gosto.
Temos cerca de 5 mil células situados dentro das papilas gustativas, que ficam, em sua maioria (cerca de 80%), na língua. No entanto, consideramos como órgão sensível ao sabor toda a boca e não apenas a língua, pois também temos receptores sensíveis ao gosto na mucosa oral, faringe, laringe, e até no início do esôfago.
O "Umami", o "aquoso" e um amplo leque de sabores
Até algumas décadas atrás, eram aceitos apenas quatro "gostos básicos": salgado, doce, azedo (ou ácido) e amargo. Hoje, está provado que o ser humano possui receptores específicos para mais dois sabores na boca, o "umami" e o "aquoso", ou "gosto de água". Vejamos cada um destes "gostos básicos":
Salgado - é importante para o equilíbrio eletrolítico e é causado basicamente pelo Cloreto de Sódio, ou sal de cozinha.
Doce- nossa maneira instintiva de reconhecer alimentos energéticos e dos vários tipos de açúcares, incluindo os adoçantes artificiais.
Azedo - sabor dos ácidos, incluindo aminoácidos, essenciais ao organismo, que os utiliza para a síntese de proteínas.
Amargo - nossa maneira instintiva de identificar possíveis venenos e alimentos tóxicos.
Umami - palavra japonesa que significa "saboroso" ou "delicioso". É causado pelo L-Glutamato, um aminoácido abundante em proteína animal, que originou o tempero "Ajinomoto". A boca possui receptores específicos para o umami, logo este não seria uma mera combinação dos outros sabores básicos. O umami estaria em alimentos com alto valor protéico. E, instintivamente, buscaríamos tais alimentos "deliciosos".
Aquoso - recentemente foi provado que possuímos receptores gustativos próprios para a água.
Outro conceito recente é que não sentimos apenas os gostos básicos. Nosso córtex gustativo, localizado no lobo temporal, também percebe uma ampla gama de variações de intensidade e qualidade, formando assim um complexo leque de sabores.
Em foco ainda, mas sem conclusões definitivas, é a discussão em torno do sentido do paladar ser sintético ou analítico. A visão é sintética: em um vinho tinto percebemos a sua cor vermelhoviolácea, por exemplo, mas não conseguimos distinguir entre a combinação de tons de amarelados e azulados que produziram a cor resultante. O olfato, por outro lado, é analítico: percebemos os diversos aromas que compõem o final de um vinho.
No que diz respeito ao sabor, ainda não há dados conclusivos, quanto a se conseguimos realmente sentir acidez, doçura etc, em separado, ou se simplesmente percebemos um estímulo único e só depois racionalizamos e decompomos mentalmente a sensação.
A ciência prova que a imagem sensorial é a forma pela qual o cérebro, graças a vestígios químicos, efetua a memorização de um aroma e de um sabor. Estas impressões dependem, contudo, de variáveis sociais, sentimentais, biológicas e simbólicas. Aromas e sabores são sensações ao mesmo tempo individuais e coletivas.
É possível mapear as preferências de "sabor" de uma época ou de um povo. Um exemplo é que, por volta de 1900, o Sauternes era considerado o vinho ideal para acompanhar ostras frescas. Outro é que, na Hungria, usa-se servir o docíssimo fermentado local, o Tokaji, para acompanhar pratos principais de carne bem condimentada com páprica. Tais combinações soam exóticas ou quase monstruosas para nosso paladar.
Já relatamos uma experiência interessante no número 32 de ADEGA, em um Enogourmet com o tema "Fondue". Servimos fondue de queijo com três vinhos brancos: um da Suíça, no estilo que seria normalmente o escolhido pelos suíços para a fondue; um alemão, idem; e um Chardonnay (estilo mais comum nas taças brasileiras). Como era de se supor, a escolha do suíço e do alemão causou estranheza a alguns brasileiros e o vinho mais aceito foi o Chardonnay.
Um vinho muito ácido, por exemplo, pode ser intragável. Outro, com a mesma acidez, mas também com alto teor de doçura, pode ser delicioso. A percepção dos sabores depende do ambiente dos receptores gustativos.
Este fenômeno ocorre porque, quando posto na boca, o vinho atinge os receptores gustativos à medida que é dissolvido pela saliva. Esta reação química varia imensamente conforme a composição do fermentado, o que mudará a dinâmica e a velocidade de todo o processo.
A percepção do sabor também sofre a ação da fadiga. Um mesmo vinho parecerá mais ou menos doce, tânico ou ácido, dependendo do que foi servido antes ou junto com ele - como um prato harmonizado, por exemplo. É comum dizer que a melhor maneira de valorizar um vinho é servir outro inferior antes (ou vice-versa). Assim, a ordem correta em uma degustação é fundamental, sempre mantendo um crescente, pois um sabor mais forte irá impregnar as papilas gustativas e prejudicar o fermentado seguinte.
Informação sensorial tem apenas uma pequena parte na determinação de nossas preferências na hora da escolha de um vinho. Inconscientemente, deixamos que experiências anteriores e que o marketing influa em nossa opinião. Baseados nisso, na hora de degustar, é bem possível que mesmo antes de abrir a garrafa já tenhamos formado uma opinião sobre como serão seus aromas e sabores.
O cientista Frédérick Brochet, doutor em enologia, fez experiências relacionadas à percepção do sabor do vinho. Em uma delas, ele serviu a degustadores um fermentado branco, que foi prontamente analisado, com os típicos aromas de sua casta. Depois o mesmo foi novamente servido, porém tingido de tinto. As descrições foram totalmente diferentes e, para este "novo vinho", foram usados descritores típicos de tintos.
Outras experiências no mesmo campo, com tecnologia de ressonância magnética, já foram feitas. Um estudo italiano da fundação Santa Lucia, publicado em 2005, mapeou as áreas do cérebro ativadas durante uma degustação às cegas de um vinho. Degustadores amadores usaram áreas do cérebro ligaras ao prazer, gosto, cheiro etc. Já provadores experientes ativaram também áreas que demonstravam alto nível de processo cognitivo - como conhecimento, memória seletiva, estratégia comportamental.
Finalmente a experiência mais foi comentada recentemente na mídia de todo o mundo foi feita na Califórnia. Publicada em janeiro de 2008 pela "National Academy of Science", também com o uso de ressonância magnética, ela provou que o preço de um vinho causa genuinamente mais prazer em quem o prova. Várias pessoas provaram fermentados, cuja única informação fornecida era o preço (alguns com o valor real e outros com preço majorado ou diminuído). O mesmo vinho causou verdadeiramente mais prazer quando foi provado "custando mais".
Existem várias técnicas para se analisar o paladar de um vinho. Muitos degustadores dividem a prova de boca em três etapas: "front palate", "mid palate" e "back palate", ou "entrada", "meio de boca", e "fim de boca".
A "entrada" é marcada pelo impacto tátil, que chamamos de "ataque", dado pela sensação conjunta de doçura ou maciez (dada pelo álcool e, se o fermentado é doce, também açúcar), acidez (os ácidos do vinho, principalmente o tartárico) e amargor (dada pelos taninos).
Depois deixamos que o vinho corra pela boca, para sentir sua textura, no que chamamos de "meio de boca". É o momento em que analisamos cada elemento: qualidade de taninos, maciez (álcool e doçura), corpo ou intensidade, acidez, equilíbrio e qualidade geral.
Mas, na boca, não se percebe só o gosto. Sentimos também tato e aromas (pela comunicação interna da boca com o nariz). O tato informa sobre a consistência do vinho (textura e corpo), aspereza, fluidez, pungência (alguns mais tânicos ou alcoólicos podem dar leve impressão de pressão ou de dor na língua), temperatura e adstringência ou tanicidade (produzida pelo travo notado nas laterais da língua, como uma cica que seca a boca).
O aroma de boca é diferente do de nariz, pois a saliva aquece e intensifica a evaporação. Estes aromas normalmente são mais fortes (e normalmente menos elegantes) que os de nariz. Para senti-los melhor, pode-se, com o líquido ainda na boca, deixar entrar um pouco de ar. Assim, a evaporação será intensa e os odores bastante nítidos.
Ao engolirmos o líquido, analisamos o "fim de boca": se o vinho "termina bem", deixando sensação agradável, sua persistência gustativa, eventuais notas amargosas etc. Após engolir, sentimos o calor provocado pelo álcool e mais aromas que retornam à boca.
No que diz respeito à percepção dos gostos básicos, em um vinho, a doçura é percebida principalmente na ponta da língua. Esta sensação vem dos açúcares, frutose, do álcool etílico e da glicerina.
A acidez é notada principalmente nos cantos da boca, próximo aos maxilares, pela salivação provocada. Quanto maior a salivação, mais ácido o fermentado. Isso vem dos ácidos málico, lático, tartárico e cítrico.
O toque salgado é sentido principalmente na parte superior da língua e surge dos sais minerais e sais ácidos. O amargor é mais perceptível na área junto à garganta, normalmente após engolir. Ele reflete a oxidação de taninos e sulfatos.