A vinícola, acredite, quase teve seu vinho ícone descartado
Arnaldo Grizzo Publicado em 30/08/2021, às 10h20 - Atualizado em 31/08/2021, às 11h17
Vinhedo e a sede da vinícola australiana Penfolds
Em 1844, pouco após chegarem a Adelaide, Austrália, Christopher Rawson Penfold, um médico de Brighton, Inglaterra, e sua esposa Mary, compraram terras em Magill, um subúrbio da cidade.
Acredita-se que eles tenham trazido algumas mudas de videiras e, enquanto o doutor Christopher montava seu consultório, eles também iniciaram um vinhedo. Certamente não imaginavam que o que estavam começando ali marcaria para sempre a história do vinho australiano.
O início da hoje poderosa vinícola Penfolds é realmente um pouco fortuito.
Enquanto o marido se dedicava à medicina, sendo cada vez mais requisitado, Mary assumia toda a parte de vitivinicultura. Registros e contas mostram que ela foi responsável pela primeira vinificação e também administrou a propriedade.
O lendário vinhedo Kalimna no Vale de Barossa
Um registro de 1874 mostra que Mary era uma boa enóloga: “São utilizadas uvas de todos os tipos, a uniformidade, que é tão grande, é garantida misturando os vinhos com dois ou três anos. Isso é feito sob a supervisão pessoal da sra. Penfold, não em conformidade com qualquer regra fixa e definida, mas inteiramente de acordo com seu julgamento e gosto”.
E esse conceito de “mistura” de uvas daria o tom dos grandes vinhos da empresa no futuro, inclusive do aclamado Grange.
O nome Penfolds ganhou notoriedade pela primeira vez como um fornecedor de vinhos tônicos ricos em ferro, produzidos para a relativamente pequena comunidade de Adelaide. A demanda foi crescendo aos poucos, ganhando fregueses em Victoria e New South Wales. Quando Mary deixou o comando da vinícola nas mãos da filha Georgina em 1884, a Penfolds era responsável por 30% do vinho produzido na região de South Australia.
Até o fim do século 19 e começo do seguinte, sua reputação era devida aos excelentes fortificados, sendo o maior produtor deles na Austrália.
O sucesso como produtor de vinho fortificado permitiu à Penfolds expandir-se comprando vinhedos importantes como o lendário Kalimna no Vale de Barossa, fonte de uvas para alguns dos mais clássicos vinhos de todos os tempos da vinícola, incluindo Grange, Bin 707, RWT Barossa Shiraz, St Henri Shiraz, Block 42 Cabernet Sauvignon e o lendário Bin 60A Cabernet Sauvignon Shiraz; feito em apenas em 1962 e 2004.
Mas a história não só da Penfolds, como de todo o vinho australiano, começou a mudar em 1931 quando um jovem determinado, de apenas 16 anos, chamado Max Schubert fez tudo o que pôde para ingressar na vinícola. Seu primeiro trabalho foi como office boy. Dezessete anos depois, aos 33 anos, ele se tornaria o primeiro enólogo-chefe da Penfolds e uma lenda da enologia na Austrália.
Max Schubert começou na Penfolds como office boy
Em 1950, Schubert foi enviado para a Europa para visitar as principais regiões vitivinícolas. Durante essa estadia em terras europeias, ficou impressionado com o estilo dos vinhos franceses, especialmente os de Bordeaux e teve a ideia de produzir um vinho tinto australiano “capaz de se manter vivo por no mínimo 20 anos e comparável aos produzidos em Bordaux...”. Mas, sabendo que não teria acesso às castas bordalesas tradicionais (Cabernet Sauvignon, Cabernet Franc, Merlot), decidiu fazer um vinho a partir de Shiraz, a variedade mais facilmente encontrada na Austrália.
Assim ele criou a primeira safra experimental de Grange em 1951. A partir daquele momento, ele estava mudando a história do vinho australiano para sempre.
No entanto, antes de chegar ao resultado desejado, Schubert contou com a ajuda do pesquisador químico Ray Beckwith nessa tarefa. Ele foi o pioneiro na utilização de medidores de pH para determinar o equilíbrio do teor de açúcar e acidez, o que foi vital para determinar as datas corretas de colheita e monitorar os vinhos durante a fermentação.
O uso de medidores de pH é agora uma prática comum. Outras técnicas de vinificação pioneiras utilizadas na produção de Grange incluíram o controle da temperatura de fermentação, a utilização de culturas de leveduras puras aclimatadas e a finalização da fermentação em barricas novas de carvalho americano.
As safras experimentais seguiram até que, em 1956, Schubert foi chamado para a sede da Penfolds em Sydney para mostrar esses vinhos para seus superiores e provar junto com alguns críticos gastronômicos. Diante da reprovação (diz-se que ninguém gostou dos vinhos), o enólogo recebeu ordens por escrito para interromper o projeto de produção de Grange. Mas Schubert ignorou seus superiores e, com o apoio de Jeffrey Penfold-Hyland, continuou a fazer pequenas quantidades do vinho em segredo até 1959.
Enquanto Schubert estava aperfeiçoando seu experimento em Grange, em 1959 a tradição dos “Bin” começou.
O vinhedo Eden Valley da Penfolds
O primeiro, um vinho Shiraz com as uvas dos vinhedos de Barossa, recebeu o nome simplesmente da área de armazenamento das adegas onde foi envelhecido. E assim o Kalimna Bin 28 se tornou o primeiro vinho oficial da Penfolds com o nome Bin.
Enquanto isso, os vinhos experimentais de Schubert começaram a amadurecer (e a mostrar suas qualidades) e, após novas provas, a direção da vinícola autorizou o enólogo a reiniciar o projeto Grange em 1960. Foi assim que, oficialmente, nasceram os primeiros Penfolds Grange Hermitage. O termo Hermitage – uma denominação de origem do Rhône, onde as uvas Shiraz são estrelas – era bastante usada na Austrália, mas precisou ser retirado do rótulo em 1990 quando a União Europeia instituiu que nenhum vinho estrangeiro que tivesse o nome de suas denominações pudesse ser vendido em países europeus.
“Somos capazes de produzir vinhos iguais aos melhores do mundo. Não devemos ter medo de colocar em prática a força de nossas próprias convicções, continuar a usar nossa imaginação na vinificação em geral e estar preparados para experimentar a fim de ganhar algo extra, diferente e único no mundo do vinho”, teria dito Schubert em um simpósio em 1979 para incentivar outros produtores australianos a criar algo da magnitude de seu Grange, que já havia ganhado fama mundial.
A sala das barricas da Penfolds
Até então, a safra 1955 havia vencido diversos concursos no mundo. A safra 1971 ganhou como o melhor Shiraz na Olimpíada de Vinho de Paris. Em 1975, Schubert se aposentou e Don Dittier assumiu a enologia. A safra 1976 recebeu 100 pontos de Robert Parker. Em 1986, John Duval estabeleceu-se como enólogo, e a safra 1990 seria considerada o “vinho do ano” da revista Wine Spectator, consolidando a lenda. E desde 2002, Peter Gago está à frente da produção desse ícone.
Lembrando o conceito usado por Mary Penfold em seus vinhos, o Grange parte da filosofia de mescla de vários vinhedos de diferentes regiões para “demonstrar claramente a sinergia entre Shiraz e os solos e climas do sul da Austrália”.
Desde 2011, a Penfolds faz parte do grupo Treasury Wine Estates, mas desde a década de 1980 ela vem passando por aquisições, tendo sido parte da Tooth & Co. nos anos 1980, da SA Brewing Holdings nos anos 1990, e do grupo Foster's nos anos 2000. Apesar disso, a filosofia das misturas tanto multirregionais quanto multivarietais segue sendo a essência da Penfolds, com seus vinhos, mais do que representando varietais, representando um estilo próprio.
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