O inseto que chegou à Europa mudou a história do vinho

Filoxera é um inseto que chegou à Europa há mais de 200 anos e mudou a história do vinho para sempre

Marcelo Copello Publicado em 25/08/2008, às 12h20 - Atualizado em 17/01/2023, às 16h32

"Vou fazer cair o dilúvio sobre a terra, uma inundação que exterminará todo ser que tenha sopro de vida debaixo do céu. Tudo que está sobre a terra morrerá" Bíblia, Gênesis (6,17) -

Hoje, mais de um século depois do fenômeno, é difícil acreditar que esta catástrofe de proporções bíblicas realmente aconteceu. Tive idéia da dimensão do problema na primeira vez que visitei o Douro e me deparei com um mortório – vinhedos do Douro atacados pela Filoxera no final do século XIX e abandonados desde então.

Eles podem ser vistos ainda hoje, espalhados pela região. Desde então pude notar, em absolutamente todas as regiões vinícolas que estive, em vários continentes, que a Filoxera foi um divisor de águas. A história do vinho se escreve "a.F." e "d.F.".

O que é a Filoxera?

O vocábulo filoxera é usado indistintamente para designar o inseto com este nome e a praga causada pela infestação deste animal em vinhedos. Phylloxera vastatrix, Dactylosphaera vitifoliae, Viteus vitifolii ou simplesmente Filoxera é um tipo de pulgão, cujo tamanho varia de 0,3mm a 3mm de comprimento, conforme a fase de seu complexo ciclo de vida. Esta praga ataca várias partes da videira em diversos momentos do ano.

O pulgão destrói as folhas da planta (que ficam amareladas prematuramente e caem), diminuindo sua capacidade de fazer fotossíntese. Mas o que geralmente a mata é o ataque do inseto às suas raízes, que são sugadas pelo pulgão. Dessa forma, as feridas abertas sofrem a ação de fungos que geram o apodrecimento – a verdadeira causa mortis da videira.

A vitis vinifera e a Filoxera

A vitis vinifera é apenas uma das 60 espécies de uva no planeta, mas é a única que gera os vinhos finos. Todas as centenas de castas que conhecemos vêm de apenas uma espécie, isso tem seu lado ruim, pois a variedade genética é limitada, aumentando a vulnerabilidade a doenças. A vitis vinifera é também conhecida como vinha europeia, ela é a mais comum no velho continente e teria vindo do Oriente Médio.

Em contraste, a América do Norte possui uma grande diversidade de espécies autóctones, de uvas não viníferas, que geram vinhos inferiores. No Brasil, comumente designamos estes caldos de "vinhos de garrafão".

O efeito da praga nas folhas da vinha. Na Nova Zelândia, vinhedos livres de filoxera

Para entender como se deu o ataque desta praga em vinhedos de todo o mundo é importante saber que, primeiro, os danos provocados pela Filoxera nas vinhas dependem da susceptibilidade da espécie de videira aos ataques do pulgão.

Segundo, a Filoxera existe há séculos na América do Norte, mas só chegou na Europa (e de lá para outros continentes), no século XIX, como veremos adiante.

Ou seja, enquanto a vitis vinifera nunca havia tido contato com o pulgão e era (e ainda é) totalmente vulnerável, as espécies de uvas norte-americanas coevoluíram com a praga por séculos e adquiriram grande resistência, tornando-se quase imunes.

Porta-enxerto, vinhas americanas protegem as européias

Uma calamidade no vinho

O ataque da praga na Europa aconteceu de forma semelhante às epidemias levadas por navegadores espanhóis às suas colônias americanas. Povos aborígines foram dizimados por vírus inofensivos aos europeus.

É fundamental entender o contextoem que se deu a Filoxera. No final do século XIX, a economia europeia era movida a vinho: nada menos que 80% da população da Itália vivia direta ou indiretamente dele.

Na França, cerca de 20% da receita do Estado vinha do fermentado e 30% das pessoas trabalhavam diretamente com o produto. Em Portugal, o vinho do Porto era o item número um na balança comercial do país.

Com a colonização da América, os europeus tentaram cultivar a vitis vinifera no Mundo Novo. Todas as tentativas fracassaram, pois as vinhas morriam sem explicação. Não se sabia as causas, mas provavelmente tratava-se da Filoxera e do Oídio (outra praga terrível que também viria a atacar a Europa). Tentaram então fazer vinho com as vinhas locais, mas o resultado era intragável. 

Os vinhos elaborados a partir de vinhas não-viníferas possuem um típico gosto animal desagradável chamado de foxy - derivado da palavra fox, que significa raposa na língua inglesa. Como caminho natural para resolver este problema levaram mudas de vinhas americanas à Europa para estudá-las, carregando junto a praga.

Conta a história que um certo Monsieur Borty recebeu vinhas americanas, vindas Nova York, e cheio de boas intenções plantou-as em seu quintal, no Languedoc, sul da França, em 1862. Este marchant de vinhos notou que as demais vinhas de sua plantação de vitis vinifera começaram a morrer. Cerca de cinco anos depois, todo o sul da França estava devastado. Em uma década, a produção de vinhos da França caiu a um terço e a calamidade já era global.

A última região a ser atacada pela praga foi Champagne, em 1890. O Douro foi a primeira parte de Portugal com registros de Filoxera, em 1865. Em 1875, o pulgão já estava na Austrália, em 1880 na África do Sul, em 1885 chegou ao norte da África, na Argélia e de lá atacaria vinhedos na Tunísia e Marrocos. O século XIX chegou ao fim com o mundo de Baco destroçado e a produção mundial seriamente comprometida. Muitos vinhedos foram extintos, muitas castas desapareceram dando lugar a outras. A geografia do vinho estava mudada para sempre.

A morte das vinhas, pânico e tentativas curiosas

No início, a morte das vinhas era um mistério e o pânico se instalou mesmo depois de Jules Émile Planchon, botânico de Montpelier, no sul da França, identificar o problema: um inseto quase invisível a olho nu, de combate desconhecido. Métodos curiosos foram utilizados, alguns entrando para o folclore da bebida.

Na Itália, chegaram a atribuir o problema às estradas de ferro, uma novidade na época, que poderia trazer doenças. Alguns trilhos foram destruídos. Em algumas regiões, vinhedos foram inundados em uma tentativa de impedir que o pulgão chegasse às raízes da planta, o que não funcionou.

Na região do Beaujolais, tentaram combater a praga com um "defensivo agrícola" natural, a urina, às vezes humana. Contam que os meninos de colégio, todos os dias depois das aulas, tinham a missão de urinar nas vinhas. Certos pesticidas químicos funcionavam, mas o sucesso era relativo, custavam caro, eram altamente tóxicos e exigiam uso constante.

Alguns viticultores começaram a plantar vinhas americanas, que não morriam, mas o vinho resultante, como já sabemos, era de qualidade inferior.

Pequeno vinhedo na região espanhola de Toro, onde é comum haver vinhas enxertadas

Situação atual e o controle eficaz da praga

Não se descobriu até hoje um controle eficaz da praga. A Filoxera ainda existe e ataca. Os cientistas não sabem todos os pormenores das diferenças entre a vitis vinifera e as espécies americanas para determinar os motivos que levam uma a resistir à praga e a outra não. Sabe-se que o pulgão não age em terrenos arenosos, razão pela qual alguns vinhedos resistiram como, por exemplo, na região de Colares, em Portugal, próxima a Lisboa.

O Chile é também um caso sempre citado, pois a Filoxera não chegou até lá por conta das proteções naturais, já que o país é uma "ilha" entre a Cordilheira dos Andes, o deserto de Atacama, a Antártida e o oceano Pacífico. Além disso, atribui-se o fato também ao solo chileno ser rico em cobre e outros minerais, uma proteção natural. A Sicília - com seus terrenos vulcânicos, de consistência muito rica - também abriga alguns vinhedos "virgens", intocados pelo maligno inseto.

A Cura

Em Montpelier, desenvolveram um processo que não chega a ser a cura propriamente dita da praga, mas um paliativo. Após muitas experiências descobriram, em 1874, que ao enxertar a vitis vinifera sobre uma vinha americana era possível produzir vinhos finos em uma planta resistente à praga. Apenas a raiz da planta é da vinha americana e sobre ela cresce uma vitis vinifera.

No início, havia muita resistência em usar este método, primeiro porque se temia pela qualidade do vinho e depois pela grande dificuldade de conseguir vinhas americanas, já que era proibido importá-las. Este método foi e é a cura adotada em todo o mundo até hoje.

As vinhas enxertadas são chamadas de cavalo, este nome se dá porque elas são plantadas umas sobre as outras. Os exemplares com raízes originais europeias, sem o artifício da enxertia, são denominadas de vinhas de "pé franco". Além dos citados acima, existem espalhados pelo mundo alguns exemplos isolados de vinhedos "pé-franco". É o caso do notório vinhedo Nacional, da Quinta do Noval, no Douro, ou da Herdade do Mouchão, no Alentejo. O fabuloso Thermantia 2005 (avaliado com cinco estrelas em ADEGA 24) é outro exemplo, elaborado na região espanhola de Toro a partir de um vinhedo préfiloxérico de 140 anos de idade.

Pode-se hoje perfeitamente plantar um vinhedo em "pé franco" em qualquer lugar do mundo, mas o risco de perdê-lo por um ataque da Filoxera é grande. E mesmo as vinhas em cavalo podem ser atacadas se o porta-enxerto (o tipo de vinha americana que fornecerá suas raízes à planta) não for bem escolhido. É bom lembrar que a Filoxera, como todas espécies que habitam o planeta, pode evoluir e sofrer mutações naturais, e um porta-enxerto hoje resistente à praga pode, no futuro, não o ser mais.

Na Califórnia, entre os anos 1960 e 1970, plantou-se muito usando o porta-enxerto conhecido como AXR#1, que era resistente à Filoxera, mas que veio a sucumbir ante a um novo biotipo do pulgão, o biotipo B, que dizimou muitos vinhedos, os quais tiveram que ser replantados com novo porta-enxerto.

* Texto originalmente publicado em agosto de 2008 , com o título
"Filoxera mudou a história e a geografia do vinho" e republicado após atualização

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