King Valley é “um pedaço da Itália” em território australiano e conhecido por seu espumante no melhor estilo do Vêneto
Sammara Gomes da Silva Publicado em 09/10/2023, às 11h35
Com alpes australianos ao fundo e localizada a apenas três horas de carro da cidade de Melbourne, a região de King Valley possui clima e topografia similares ao das regiões do Piemonte e da Toscana na Itália.
Esses fatores contribuíram para que essa região fosse chamada de lar por muitos imigrantes italianos que chegaram à Austrália nas décadas de 1950 e 1960 em busca de oportunidades, como refugiados após a II Guerra Mundial.
LEIA TAMBÉM: Os melhores vinhos da Austrália degustados pela Revista ADEGA
“Com muita sorte, meu pai conseguiu vir para a Austrália e foi enviado para o Campo de Refugiados Greta no estado de Nova Gales de Sul e que era um dos maiores do país. De lá, ele foi enviado para o norte de Queensland para trabalhar como cortador de cana e onde permaneceu por dois anos. Durante esse período, ele conseguiu regularizar a sua permanência no país e trazer seu pai, mãe, irmão e irmã para morarem aqui com ele”, conta Peter Corsini, cujos os pais Gino e Carmel Corsini são os fundadores da vinícola La Cantina.
No início da década de 1950, muitos italianos migraram para King Valley para trabalhar no cultivo de tabaco até meados de 1970 quando então, devido à popularidade do tabaco americano, houve um declínio no interesse e produção da planta da região.
Assim, a produção de vinho “italiano” em King Valley começou de forma tímida. “Plantamos as primeiras variedades de Barbera em 1984, mas foi só em 1996 que produzimos vinho dessa variedade comercialmente”, conta Arnie Pizzini, da Chrismont Winery.
Barbera, Pinot Grigio e Sangiovese são algumas das variedades mais celebradas da região. Mas a região também é conhecida como um dos maiores produtores de Prosecco na Austrália.
De acordo com Damien Griffante, gerente da Australian Grape & Wine Association “a indústria do Prosecco na Austrália hoje vale AU$ 60 milhões gerados diretamente e sem contar os benefícios gerados indiretamente com turismo regional e empregos não só em King Valley, mas em outras 14 regiões”.
Um dos grandes responsáveis pela introdução do Prosecco na Austrália é Otto Dal Zotto, nascido em Valdobbiadene, berço do Prosecco na Itália.
“Meu pai chegou à Austrália em 1967 e, depois de um tempo, migrou para a região de King Valley”, relembra Christian Dal Zotto, da Dal Zotto Wines. As primeiras variedades plantadas por Otto foram: Barbera, Sangiovese, Pinot Grigio e Arneis, porém, após voltar de férias da Itália, decidiu produzir Prosecco.
“Estava sentado à mesa com a minha família quando tive a ideia de produzir uma das minhas bebidas favoritas na Itália, o Prosecco. O desafio, no entanto, era encontrar, na Austrália, boas mudas da uva. E isso só foi possível através de um conhecido que tinha conseguido importar, com sucesso, mudas de Prosecco de qualidade de Valdobbiadene. Mas somente em 1999 conseguimos iniciar uma plantação comercial” relembra Otto Dal Zotto.
Quando lançou, em 2004, a primeira safra de Prosecco, o sucesso foi imediato. “Devido à pequena quantidade e ao grande sucesso, tivemos que restringir a venda para três garrafas por cliente. Fico muito feliz com tudo o que conquistamos até hoje e o quão popular o Prosecco se tornou na Austrália”, diz.
Mas você deve estar se perguntando: Prosecco não é um denominação de origem protegida da Itália? Como pode ser produzido na Austrália?
Pois bem, desde 2009 os vinhos italianos ditos Prosecco são protegidos por lei e, teoricamente, ninguém de fora da região ao redor de Valdobbiadene pode produzir algo com o nome Prosecco – pelo menos ninguém que queira vender vinhos na União Europeia.
Desde 2018, quando a Austrália e a União Europeia iniciaram as negociações para um acordo comercial, a questão do Prosecco tem sido debatida. Tony Battaglene, presidente da Australian Wine & Grapes Association explica que “entre uma das exigências feitas pela União Europeia está a extensão de uma lista de proteção assinada por ambos em 2008 e a inclusão de alguns vinhos, destilados e alimentos, como o Prosecco, o queijo feta e até o parmesão”.
LEIA TAMBÉM: Glera, a uva do Prosecco e seus nomes menos conhecidos
E acrescenta: “eles estão em busca do mesmo nível de proteção que a região de Champagne na França possui hoje, porém, até 2008, por exemplo, Prosecco não fazia parte da lista de proteção assinada pela Austrália e a União Europeia porque era considerado apenas o nome de uma variedade de uva, como já havia reconhecido anteriormente a Organização Internacional da Vinha e do Vinho (OIV)”.
Em 2009, a Itália alterou o nome da então uva Prosecco para Glera. O professor Mark Davison da Universidade de Monash em Melbourne foi contratado para buscar meios legais de defender o produto australiano e encontrou evidências em mais de 80 documentos com datas que vão desde 1969 e que comprovam que os italianos já se referiam à uva e à bebida como Prosecco. Questionado sobre a motivação para a mudança dos nomes, ele explica:
“Europeus têm uma ligação muito forte com as denominações de origem porque isso remete à tradição e à cultura. Outro fator está associado ao valor comercial, uma vez que, muitas pessoas acreditam que essas denominações representam qualidade e estão dispostos a pagar mais pela bebida. E, por último, está a questão da competição, uma vez que fica mais fácil para a União Europeia excluir os competidores que tentam fazer negócios na Europa”.
Tony Battaglene é enfático ao afirmar que “a indústria de vinhos da Austrália rejeita todos os pedidos de Indicação Geográfica (IG) relacionados ao Prosecco, pois, entende que isso seria o mesmo que impor restrições ao uso das uvas Shiraz e Chardonnay”.
Quando questionado sobre o resultado dessa disputa, ele pontua: “estamos muito otimistas. Os consumidores da Austrália naturalmente não acreditam em indicações geográficas e têm questionado o real motivo pelo qual a União Europeia está tentando mudar as regras. Muitos dos produtores que fazem Prosecco na Austrália são italianos e compraram mudas vindas da Itália, como Otto Dal Zotto, por exemplo”.