Os segredos do enólogo português Rui Cunha

O enólogo Rui Cunha é neto do fundador da Ramos Pinto, e traçou seu próprio caminho com o vinho português autoral da Secret Spot Wines

Christian Brugos, Eduardo Milan e Giuliano Agmont Publicado em 17/01/2019, às 15h00 - Atualizado em 14/02/2023, às 15h36

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As respostas se sucediam de modo previsível. Uns diziam médico. Outros cravavam arquiteto ou engenheiro. E havia aqueles que titubeavam antes de enunciar advogado. Eis que uma das vozes intriga a classe, deixando até a professora constrangedoramente sem palavras. 

Para surpresa geral, o garoto daquela turma de colegial decreta: “Enólogo”. Na época, em plena década de 1980, poucos em Portugal sabiam que raio de profissão era aquela. Mas o pai do menino sabia muito bem. E, ao ver o filho angustiado com a missão de responder o que queria ser no futuro para uma atividade especial da escola, decidiu arranjar-lhe um estágio na vinícola onde trabalhava, a Ramos Pinto. 

“Não tinha a menor ideia do que queria ser. Gostava de Biologia, um pouco de Física e não tinha nenhuma intenção de ficar trancado em um escritório. Então, meu pai sugeriu que me tornasse um enólogo: ‘Enólogo, pai, o que é isso?’. Sem internet, ele me mandou pesquisar no dicionário, mas já dando algumas pistas, explicando que é um profissional que cuida das uvas, tem que saber de Física e Química e suja as mãos”, lembra o hoje bem-sucedido enólogo português Rui Walter Cunha, que teve seu destino selado após aquelas semanas na vindima.

 “Adorei, bebia vinho, trabalhava e ganhava dinheiro. Estava no paraíso, e queria ser enólogo”. O tempo passou, o menino cresceu e o mundo do vinho ganhou um grande aliado. O mais surpreendente da história é que Rui, mesmo sendo neto de Adriano Ramos Pinto, o fundador da vinícola onde começou a carreira, acabou construindo sua própria trajetória. Depois de trabalhar para pequenos produtores, investiu em vinhos autorais e, desde 2004, acumula prestígio a cada safra com os rótulos de sua Secret Spot Wines. 

Nesta entrevista, concedida durante uma aprazível degustação de seus rótulos em um típico almoço português, o enólogo não revelou os segredos que guarda a sete chaves, mas deu ótimas pistas.

Como foi essa primeira experiência na Ramos Pinto?

Meu pai trabalhava lá, e perguntou ao dono se eu podia fazer um estágio na vindima para ver se gostava. O João [Nicolau de Almeida], enólogo da vinícola, disse que eu podia. Passei 15 dias por lá. Nos anos seguintes, fui fazendo estágios, sempre com o João. Eu cuidava da parte da investigação das castas, dos polifenóis, dos terroirs, fermentação em inox, fermentação em madeira… Fui estudando e descobrindo que era isso mesmo o que queria. 

Quando me formei na Villa Real, decidi fazer uma especialização na Alemanha. João me disse: ‘Tenho um amigo que é bom em brancos, ele tem uma vinícola na Alemanha’. E lá fui eu para Alemanha aprender sobre os vinhos brancos. Até hoje, sempre que posso, vou à Alemanha aprender sobre os vinhos brancos.

E como nasceu o projeto Secret Spot Wines?

Em 2004, houve a possibilidade de alugar uma adega. A família do meu sócio (Gonçalo Sousa Lopes) havia comprado uma vinícola no Douro, abandonada, que não tinha vinhedos. Conseguimos equipar a adega, plantar nossas uvas e começar nossos projetos de vinhos. E foi assim que nasceu o projeto Secret Spot Wines. Sempre nos preocupamos em ter vinhos distintos do Douro, com estilos muitos diferentes. Temos vinhos com barrica, sem barrica, mais elegantes, mais estruturados.

E quanto ao Secret Spot?

O Secret Spot não é um vinho de uma só vinha, não temos vinhedos próprios, temos contratos com vários produtores de uvas e agricultores que visitamos mensalmente para tratarmos das uvas, discutir que castas devem sem plantadas. O projeto Secret Spot nos permite ter mais liberdade de criação do que se estivéssemos ligados a uma só propriedade. Se fosse esse o caso, estaríamos ligados somente àquelas castas, somente àquele terroir. E se, por exemplo, alguém me pedisse para produzir um vinho orgânico e eu dissesse não por não ter como produzir?

É um modelo similar ao dos négociants da Borgonha, não?

Sim, com certeza, no fundo somos um tipo de négociant, porque sempre existiram négociants na região do Douro. Hoje a maioria das vinícolas, do Douro, tem propriedades e muitas delas já vinificam na propriedade. Mas, quando tudo começou, os négociants nem sabiam de onde vinha o vinho, só recebiam as amostras e escolhiam qual queriam. Ou seja, o Douro começou como uma área de négociants.

Na Borgonha, um dos grandes problemas dos négociants é que, quando encontram a terra perfeita e a uva perfeita, ele tenta não divulgar, para não perder seu contrato. Há esse tipo de problema acontecendo no Douro também?

Sim, esse tipo de problema existe principalmente quando se procura vinhas velhas, com 60 a 100 anos, plantadas com todas as castas misturadas. Não há muitas dessas vinhas, mas elas possuem uma qualidade excelente, e quase todas alteram seu ponto de maturação, ou seja, podem originar Vinhos do Porto com muita qualidade ou vinhos de mesa. Neste ano mesmo, nosso contrato com uma produtora de vinhas velhas terminou e não será renovado, por conta de um concorrente que vai pagar o dobro.

Uma das estratégias que adotamos para proteger o Secret Spot é não revelar a origem das uvas, que é sempre de uma só vinha. Nem o agricultor sabe que em determinado ano suas uvas estão dentro do Secret Spot. Assim, a concorrência também não tem como ficar sabendo. Na vinícola, somente três pessoas sabem, temos um código de cores na cápsula que corresponde às uvas.

Que comparações faria entre o Douro e a Borgonha?

Um dos meus sonhos é que a região do Douro se tornasse uma Borgonha daqui a 200 anos e eu pudesse falar: ‘Vamos degustar agora um Château Galego de Favaios’. Nosso vinho Moscatel tem suas uvas da região de Favaios, porém não posso colocar Favaios no rótulo, pois existe a Adega de Favaios e é uma região muito grande. E a região do Douro é muito grande, composta por diversos vales. 

O Douro nunca será um local para ter uma produção de três milhões de garrafas de vinho, como a Argentina e seus vinhos ‘Coca-Cola’, que agradam a todos. O Douro tem de seguir para o outro lado. No Douro, conseguimos fazer vinhos corretos, com bom preço, 500, 600 mil garrafas, com todos trabalhando para manter nossa qualidade a cada ano. Ao imaginar o Douro igual à Borgonha, minha vontade seria que, se falássemos ‘Vale do Pinhão’, todos saberiam que ali se produz um bom Vinho do Porto. Mas, para isso, precisamos de muitos anos.

“Um dos meus sonhos é que a região do Douro se tornasse uma Borgonha daqui a 200 anos e eu pudesse falar: ‘Vamos degustar agora um Château Galego de Favaios’”, afirma Cunha


Por quê?

No Douro, começamos a produzir vinhos de mesa em 1990, usamos as mesmas uvas para produzir o Vinho do Porto, então não tivemos que aprender sobre as uvas, tivemos que adaptar a vinificação do Porto para a mesa. No começo, nossos vinhos saiam parecidos com os do Porto ou então eram vinhos aguados, pois usávamos as últimas uvas a serem vindimadas. Era a pior colheita que a vinícola tinha, e elas eram usadas para testar os novos vinhos de mesa. No final, os britânicos gostaram do resultado, de um vinho cujo aroma correspondia ao do Porto, porém sem açúcar e álcool. 

Hoje em dia, os vinhos de mesa do Douro ganharam sua identidade, assim como os brancos do Douro também estão mostrando seu potencial. Antigamente um branco do Douro era oxidado, não tinha acidez. Na época, nos jantares, os tintos eram do Douro, mas os brancos eram de outros locais. Atualmente, não, já podemos começar e acabar uma refeição com vinhos do Douro.

Onde estão os berços dos seus vinhos?

Para os brancos, temos o Vale da Poupa. O Moscatel Galego é de Favaios. Temos um branco com barrica que se origina mais no Vale do Rio Torto. O Lacrau Tinto seria mais Vale do Pinhão. E os Crooked Vines, mais Rio Torto.

Existe um raio máximo dentro do qual você compra uvas?

Não me imponho esse limite. Por exemplo, no Vale da Poupa são biológicos e são uvas do Douro Superior. Procuro qualidade e sempre penso em um perfil de vinho que gostaria de criar.

E qual é o perfil de vinho que você gosta de criar?

Procura atender às demandas de seu importador, do seu mercado? No fundo, mercado e importador sempre falam a mesma língua. Então, os importadores falam: ‘Rui, preciso de um branco mais dourado’. Ou seja, crio um branco mais dourado não porque gosto, mas porque o importador precisa.

O gosto do mercado brasileiro é muito diferente do gosto de outros mercados?

Quando apresento um vinho do Douro no mercado brasileiro, não tenho de explicar muito. Os brasileiros sabem onde fica Portugal, sabem que Lisboa é a capital, que o Douro fica ao norte e que no Douro é o Porto. O mercado brasileiro conhece bem vinhos europeus e mais precisamente os portugueses. Gastamos mais tempo falando sobre nossa vinícola do que explicando onde é Portugal. 

Por provar de tudo um pouco, o brasileiro entende um vinho, ele pode provar um vinho ‘Coca-Cola’, como os chilenos que não precisam necessariamente de uma refeição, e também entendem vinhos do Velho Mundo com mais taninos, mais estruturados, como os do Douro. É um tipo de consumidor que tem propriedade para falar que um vinho não está muito bom ou deve ser guardado. Outros mercados são muito mais complicados.

"O Secret Spot não é um vinho de uma só vinha, não temos vinhedos próprios, temos contratos com vários produtores de uvas e agricultores que visitamos mensalmente"

Todo mundo, mesmo atendendo ao mercado, pensa em influenciar os consumidores na direção de seu próprio estilo pessoal como produtor. Como vê isso?

Nossa vinícola produz atualmente 85 mil garrafas de 14 vinhos diferentes. Gostaria de chegar a 150 mil, uma vinícola boutique. O Vale da Poupa produz metade da produção, é de lá que saem os vinhos mais baratos. Procuro sempre acidez e taninos nos vinhos.

Parto de um princípio que aprendi em casa, de que o vinho só é entendido com as refeições. Eu sei que em muitos mercados não é assim, e que infelizmente temos, muitas vezes, uma taça de vinho sem comida. Eu defendo que o lugar do vinho é à mesa.

Seu avô teve uma atuação importante no Brasil, não?

Meu avô, Adriano Ramos Pinto, fundou a vinícola Ramos Pinto. Na época, por não falar bem inglês, escolheu o Brasil para exportar seus vinhos. E, sim, fez grandes campanhas no país. Meu avô era um tanto ‘mulherengo’ e pintava quadros de mulheres seminuas. Ele até construiu uma fonte de mármore no Rio de Janeiro que está lá até hoje. Soube que mandaram tampar algumas partes da fonte, pois não era permitido na época partes íntimas expostas assim [risos].

Depois do estágio, você não teve uma ligação emocional para se manter na Ramos Pinto?

Se está me perguntando se gostaria de trabalhar na empresa de meu avô, sim, gostaria, mas, na época, todas as vagas estavam ocupadas e meu pai não demitiria alguém para me colocar.

Como se deu a venda da vinícola Ramos Pinto?

Ela foi vendida nos anos 1990, para duas sociedades portuguesas, que, passados dois anos, venderam todo o capital. Foi lá na vinícola Ramos Pinto, com o João, que aprendi que o vinho tem de ser uma ciência, mas também tem de ter seu lado de loucura, de poesia e de sentimento.

Para finalizar, fale um pouco sobre o Moscatel 40 anos?

Surgiu a oportunidade de alugar a adega em Favaios, e vimos algumas vinhas que tinham uvas Moscatéis. Eu só conhecia Favaios de passagem de carro. Em muitas conversas com os agricultores, descobri o que realmente era Favaios. Comecei a perceber que a vinha Moscatel, que se torna muito bem um vinho doce, e que em Portugal compete com o Martini, precisava de um vinho seco. E pensamos o que poderíamos fazer com essa uva. 

Tentamos fazer um vinho branco seco, sabendo que a maioria das pessoas associa a Moscatel a um vinho doce. Fomos os primeiros a lançar um vinho Moscatel seco. Mas também fomos os primeiros a produzir um Moscatel 40 anos. Pela legislação, é igual ao Vinho do Porto. Também engarrafamos um Moscatel Galego 10 anos. Pensamos em um vinho que combina com sobremesas.

“O projeto Secret Spot nos permite ter mais liberdade de criação do que se estivéssemos ligados a uma só propriedade”, admite Rui Cunha


Desses vinhos Moscatel, você comprou o lote já vinificado?

No caso do 40, sim, o Moscatel de 10 anos é parte comprada, parte vinificada por nós. E já estou guardando uma parte para se tornar 40 anos, para guardar para os meus netos e outra parte para os 10 anos. Adoraria fazer um espumante 100% Moscatel, mas este é um sonho que espero que fique em sonho porque não sei quem compraria um espumante de Moscatel feito em Portugal, e ele seria seco.

* Texto originalmente publicado em janeiro de 2019 e republicado após atualização.

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