Sauternes são vinhos elaborados com uvas atacadas por um fungo que enobrece o sabor de seu fermentado
Marcelo Copello Publicado em 25/08/2008, às 13h01 - Atualizado em 20/07/2024, às 12h00
Quando escrevi O Diário de um Náufrago em um Mar de Vinho, dizia na epígrafe: "Château d'Yquem é meu maior sonho de consumo depois da Isabella Roselinni". No original é completada com: "prefiro ser politicamente incorreto a perder uma boa frase".
Passados exatos dez anos, minha musa amadureceu com muito charme e o Château d'Yquem continua sendo melhor dentre os Sauternes e o maior vinho branco doce do mundo.
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Os Sauternes são vinhos raros e caros, ditos "vinhos de meditação", elaborados por meio de um processo fascinante e totalmente natural. A principal razão do fascínio e do sucesso deste néctar chama-se Botrytis cinerea, um fungo que ataca os cachos de uva fazendo com que apodreçam. É, contudo, uma podridão benigna, conhecida como "podridão nobre".
O Botrytis Cinerea acorre naturalmente, não pode ser provocado. O fungo faz microfuros na casca da uva secando-a e concentrando açúcar, aroma e sabor. Ao mesmo tempo o Botrytis Cinerea provoca transformações químicas nas uvas: aumenta muito a concentração de ácido tartárico e açúcar, aumenta o teor pectina e estimula a produção de glicerol, que dá viscosidade e altera muito o aroma dos vinhos.
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A expressão máxima dos vinhos botrytizados acontece na região de Sauternes e lá o fungo ocorre graças ao encontro das águas dos rios Garonne e Ciron. A diferença de temperaturas das águas, sendo que as do Ciron são bem mais frias, provoca um excesso de umidade enevoando. Este santo mofo também se manifesta em outros países e regiões, como na húngara de Tokaji, Alsacia, Alemanha, Austrália e esporadicamente em outros cantos do planeta.
A colheita só é feita após (e quando) o fungo atacar, o que pode ser em setembro ou em alguns anos chegando novembro, com as uvas quase congelando. O momento ideal para a colheita deve ser escolhido com cuidado, se muito cedo, não haverá o Botrytis cinerea, se tarde, as uvas apodrecerão de verdade ou congelarão. Além disso, a colheita é muito delicada, seletiva e caríssima, pois o mesmo cacho pode conter uvas sãs, botrytizadas e estragadas.
Não se sabe ao certo como e quando os vinhos da região começaram a ser produzidos com o nobre fungo, mas registros do século XV já fazem menção a vinhos doces em Sauternes. A fama, no entanto, só veio no século XVIII, quando o presidente americano e notório amante dos vinhos Thomas Jefferson visitou o Château d´Yquem e escreveu: "este é o melhor vinho branco da França". Não muito tempo depois o d´Yquem viria a receber o posto mais alto na famosa classificação de 1855 dos vinhos de Bordeaux.
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Hoje, a Appellation d'origine contrôlée (AOC) Sauternes engloba cinco comunas no distrito de Graves (parte sul de Bordeaux): Sauternes, Barsac, Preignac, Bommes e Fargues. Para um vinho aderir a esta denominação é necessário um teor de álcool mínimo de 13%, os vinhedos precisam ter 6 mil a 7.5 mil pés de vinha por hectare (em caso de solos argilo-calcários este numero cai para 5 mil), o rendimento máximo é de 25 hectolitros de vinho por hectare (hl/ha) e o mínimo de açúcar no mosto precisa ser de 221 gramas por litro. Os bons Sauternes, no entanto, podem chegar a render míseros 9 hl/ha, o que significa que cada pé de vinha dá apenas uma taça do fermantado. Em um vinho normal este valor fica em torno de uma garrafa por planta.
O Sauternes é 90% natureza e trabalho delicado nos vinhedos. A elaboração é simples e tradicional. Ali ainda existe equipamento rústico, a antiga prensa, mas excelentes barricas novas do melhor carvalho. Os bons Sauternes amadurecem em barricas de um a três anos.
As castas autorizadas na região são Sémillon, Sauvignon Blanc e Muscadelle. A primeira é a espinha dorsal dos Sauternes, dá o corpo, a longevidade e é a mais suscetível à podridão nobre. A Sémillon geralmente domina os cortes dos Sauternes mais importantes e de guarda. A Sauvignon Blanc entra com a intensidade aromática e o frescor, por sua maior acidez, e forma um perfeito equilíbrio com a Sémillon. A Muscadelle não é utilizada por muitos produtores e, quando aparece, raramente passa dos 5% na composição de um vinho. Trata-se de uma casta muito perfumada, um belo enfeite para os Sauternes mais joviais, mas estes aromas se perdem ao longo dos anos, o que a torna pouco cotada para vinhos de guarda. Além disso, a Muscadelle é de difícil cultivo, exigindo trabalho extra dos viticultores.
Um bom Sauternes pode ter sua colheita feita em várias fases. Em setembro, o Botrytis cinerea ataca parcialmente a Sauvignon Blanc e algumas uvas são colhidas. Depois de duas semanas, um outro fungo, a "podridão cinza" (maligna) costuma atacar e algumas uvas precisam ser eliminadas. Em outubro, ocorre outro ataque do Botrytis cinerea, desta vez na Sémilllon e no restante da Sauvignon Blanc e uma última colheita seletiva acontece lentamente, podendo durar três semanas.
O resultado é um vinho luxuriante: dourado, bastante doce, aveludado, concentrado, alcoólico (entre 13% e 17%) e diferente de tudo. Os bons exemplares vivem 50 anos ou mais na garrafa e os Grand Crus podem varar um século.
Não por acaso, em 1986, uma garrafa de Château d´Yquem 1784 alcançou o valor recorde de 36 mil libras em um leilão na londrina Christie´s. O recipiente de 750ml fez parte da coleção pessoal do já citado presidente Thomas Jefferson.
Em 1855, por ocasião da famosa Exposição Universal de Paris, os vinhos de algumas regiões de Bordeaux foram classificados em categorias de acordo com seu preço e prestígio na época. A classificação de Sauternes foi a seguinte:
Premiers Crus Chateau Climens Chateau Coutet Chateau Guiraud Clos Haut-Peyraguey Chateau Lafaurie-Peyraguey Chateau Rabaud-Promis Chateau de Rayne-Vigneau Chateau Rieussec Chateau Sigalas-Rabaud Chateau Suduiraut Chateau La Tour-Blanche Chateau Sigalas-Rabaud Chateau Suduiraut Chateau La Tour-Blanche |
Deuxièmes Crus Chateau d'Arche Chateau Broustet Chateau Caillou Chateau Doisy-Daëne Chateau Doisy-Dubroca Chateau Doisy-Védrines Chateau Filhot Chateau Lamothe Chateau Lamothe-Guignard Chateau de Malle Chateau de Myrat Chateau Nairac Chateau Romer du Hayot Chateau Suau |