Conheça o que o que os franceses entendem por uma agricultura razoável e que pode, ou não, ser um passo rumo ao vinho realmente orgânico
por Arnaldo Grizzo
Quando falamos sobre uma vitivinicultura com menos uso de produtos químicos, geralmente questionamos os produtores se eles usam práticas orgânicas ou biodinâmicas. No entanto, na França, especialmente na Borgonha, há alguns que “se esquivam” dessa questão apelando para um termo que nem sempre é muito bem explicado.
Eles costumam dizer que aplicam a chamada “lutte raisonnée”, que numa tradução livre seria algo como “batalha racional” e que, no fundo, significa que eles tendem a evitar produtos químicos, mas, se (e quando) acharem necessário, utilizam.
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Acredita-se que o termo tenha surgido na década de 1950, pouco após o boom da disseminação do uso de produtos químicos nas lavouras europeias – vendidos em larga escala com o intuito de aumentar a produção em solos devastados pela guerra, além de garantir os rendimentos para agricultores que já haviam sofrido durante anos com os conflitos e teoricamente não poderiam ver suas plantações arrasadas novamente por pragas.
Até os anos 1940, a indústria de pesticidas, herbicidas e outros tantos produtos químicos para proteção de plantas alardeou seus benefícios e que tudo podia ser aplicado sem muito julgamento, contudo, logo as culturas mais delicadas, como a do vinho, perceberam os efeitos. E, assim, uma nova vertente passou a ser implementada.
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Pensou-se então que no que foi definido como “manejo racional de pragas agrícolas”, ou “agricultura racional”, ou seja, um sistema de produção agrícola cujo objetivo principal seria otimizar o resultado econômico e, ao mesmo tempo, limitar as quantidades de insumos (pesticidas e fertilizantes químicos) para limitar seu impacto sobre o meio ambiente.
Diz-se que isso também só foi possível, pois, na década de 1950, já haviam ferramentas que possibilitavam detectar limiares de infestação de pragas e, dessa forma, recomendar ou não o tratamento com químicos. Ao mesmo tempo, meios de controle biológico foram descobertos (ou redescobertos). Surgiu então a expressão “lutte raisonnée”, assim como “manejo integrado de pragas”, para descrever um tipo de controle de pragas que combina o controle biológico com meios de controle químico. Nascia então o que se chamou de “agricultura racional”.
Na esteira, o conceito de “proteção integrada” foi inventado pela Organização Internacional para o Controle Biológico e Integrado de Pragas e Plantas (OILB) na Europa Ocidental na década de 1970, junto com a criação do “Controle Integrado de Pragas” nos Estados Unidos.
Foi considerando todas as técnicas de produção e também a gestão da fazenda que nasceu a expressão “produção integrada”. Todas essas expressões refletiam o desejo de reorganizar as práticas e sistemas agrícolas da época.
Assim, acredita-se que a agricultura racional é um primeiro passo para a agricultura integrada, uma extensão do conceito de “produção integrada” definida pela OILB. O controle racional é, portanto, “uma fase de abordagem do controle integrado que consiste em um desenvolvimento progressivo do controle químico por meio do uso de limites de tolerância econômica e do uso racional de produtos específicos”.
Mas, voltemos ao termo lutte raisonnée. Ele também costuma ser traduzido como “cultura sustentável” e seria, de alguma forma, um compromisso entre os métodos de controle de pragas com mais flexibilidade e a possibilidade de usar alguns produtos químicos e pesticidas, mas com menos frequência e menos agressividade do que os ditos “produtores convencionais”.
Diz-se que, se praticado com consciência, esse método se assemelha bastante à cultura orgânica em muitos aspectos, exceto pelo uso, mesmo que mínimo, de produtos químicos. E em comparação com a cultura orgânica ou a cultura biodinâmica, os produtores que usam o conceito de lutte raisonnée não estão sujeitos a nenhum sistema de controle de organizações certificadas ou a quaisquer limites previamente acordados ao que é permitido fazer em seus vinhedos.
Sendo assim, por ser menos restritivo, os produtores dizem que se beneficiam de mais liberdade e flexibilidade, o que resulta em tirar o melhor de ambos os conceitos e adaptá-los às necessidades das vinhas, dependendo do tipo e da fertilidade do solo, do clima e microclima, exposição, topografia e geografia das vinhas, mas também o tipo de uva. Mas quem determina o que é “razoável”?
Segundo o Domaine Ponsot, um dos mais reputados produtores da Borgonha, a lutte raisonnée seria o “primeiro passo antes da viticultura orgânica propriamente dita”. Em oposição à agricultura tradicional (altos rendimentos, tratamentos e produtos químicos colocados em abundância preventivamente para evitar doenças e pragas), esse manejo da viticultura usa de forma limitada e cuidadosa os tratamentos com produtos químicos e se pauta por algumas restrições também em outras áreas como gestão de resíduos, preservação do meio ambiente, fertilização e sustentabilidade em geral.
Acredita-se que os produtores que adotam o método de lutte raisonnée primeiro experimentam para medir os efeitos durante um curto período de tempo (cerca de dois ou três anos) e, se ficam satisfeitos, muitas vezes optam por um caminho orgânico ou biodinâmico. Mas a maioria não quer necessariamente ser certificada.
Outros, contudo, sequer conseguem. Mesmo que seu vinhedo seja totalmente orgânico ou biodinâmico, mas os vinhedos do seu vizinho não sejam, você provavelmente nunca será capaz de receber o certificado. Se seu vizinho usa agrotóxicos e herbicidas, o vento pode soprar alguns produtos químicos em seu vinhedo e, dependendo do terreno, os produtos químicos absorvidos pelo solo podem ser drenados e afetar seu solo também.
Além das taxas de administração, passar para o orgânico, com certificado, não é tão simples, pois pesticidas e fertilizantes químicos são proibidos. Essa agricultura prima pelo equilíbrio biológico na natureza. Os viticultores orgânicos, também conhecidos como agrobiólogos, obrigam-se a usar produtos sem moléculas químicas sintéticas.
Para o cultivo da videira, utilizam matérias-primas de origem natural (cobre, enxofre, inseticidas de origem vegetal) e buscam promover a “competição” entre as espécies. Seu objetivo é favorecer a vida do solo, a sustentabilidade das espécies animais e vegetais favorecendo o ecossistema natural.
Segundo Ponsot, isso se traduz em: deixar crescer a erva que vai arejar o solo, alimentar as minhocas, competir com as vinhas que serão obrigadas a extrair mais profundamente os seus recursos num solo mais rico em sais minerais, mais representativo do terroir.
Já a biodinâmica pode ser dita como a agricultura orgânica levada ao extremo. O viticultor não só se preocupa em preservar ao máximo a natureza, mas também assume que ela se encontra em tal estado de degradação que o homem deve fazer de tudo para restabelecer o equilíbrio perdido, levando em conta a influência dos ritmos terrestres e cósmicos.
A vinha é considerada uma entidade viva com um equilíbrio natural a ser respeitado entre os quatro elementos: terra, água, ar e fogo, ou seja, o sol. A viticultura biodinâmica usa as posições das estrelas e planetas em conjunto com os ciclos das estações para determinar exatamente quando fazer quais tratamentos – todos completamente orgânicos e alguns bastante místicos, como um chifre de vaca cheio de esterco enterrado no solo.
O Domaine Ponsot se gaba de não se “delimitar” por nenhum dos três conceitos (racional, orgânico ou biodinâmico), aplicando o que considera o mais adequado dos três dependendo do vinhedo e situação.
“A intervenção humana é limitada e só se aplica aos cuidados de que a videira necessita, sem nunca procurar obrigá-la de forma alguma. Claro, só se pode trabalhar desta forma com pleno conhecimento dos fatos, e a tecnologia atual permite monitorar como nunca o estado do solo, da vegetação ou da maturidade. E não nos privamos disso, enfim, a longa tradição da nossa família nesta perspectiva de deixar a maior parte para a natureza hoje nos leva a um estado particularmente bom da nossa vinha. E cada intervenção da nossa parte é ditada pelas circunstâncias e exige bom senso, por um lado, e os produtos mais naturais, por outro. O que sempre fizemos é agora redescoberto pela maioria e a partir daí tivemos que inventar nomes para qualificar práticas conhecidas há várias centenas de anos”, questiona o domaine.
Mas há quem diga que o modelo de lutte raisonnée seja um pouco cinzento demais e abra espaço para intervenções não tão “naturais” quanto alguns viticultores gostam de propagar. “Em termos de respeito ao meio ambiente, falamos de lutte raisonnée, um conceito com contornos indefinidos, enquanto temos os meios e o conhecimento para ir muito mais longe”, diz Grégory Patriat, da Maison Boisset. Segundo ele, o uso de agrotóxicos e fertilizantes foi revisado para baixo ao longo dos anos e vários hectares tornaram-se orgânicos em sua empresa.
Já alsaciano Olivier Humbrecht, do domaine Zind-Humbrecht, que prega a biodinâmica, acredita que a lutte raisonnée, muitas vezes, pode diferir pouco da agricultura convencional. “A questão é realmente técnica. O ‘controle racional’ proíbe o uso de certas moléculas ou limita a quantidade delas. Hoje não há muita diferença entre a agricultura racional e a convencional. Por quê? Os produtos químicos estão muito caros. Pouco se fala sobre isso, mas é uma realidade. Não conheço ninguém que vá desperdiçá-los”, diz Humbrecht, que ainda pondera os que se dizem biológicos.
“No que diz respeito à agricultura biológica, a definição existe ao nível da União Europeia e ao nível de cada país. Basicamente, você não pode usar nenhum produto químico sintético. Mas, por outro lado, pode-se utilizar produtos de origem mineral como o cobre (NDLA presente na mistura bordalesa) e o enxofre. Esses produtos não são muito bons, nem para o solo, nem para o organismo. Devemos nos esforçar para limitá-los. A biodinâmica é uma cultura que é, antes de tudo, orgânica e que depois quer ir mais longe", completa.
Christophe Ehrhart, diretor do domaine Josmayer, também da Alsácia, pondera que, em determinadas situações e terroirs, a lutte raisonnée pode ser uma alternativa mais adequada do que passos mais “arriscados” em um primeiro momento.
“Devemos nos perguntar em qual estrutura científica aprovamos as coisas. Fizemos um teste em Champagne. Pegamos um lote de vinhas e dividimos em três partes. O primeiro foi cultivado em lutte raisonnée, o segundo em agricultura orgânica e o terceiro em biodinâmica. Os resultados foram os esperados. Lutte raisonnée: ótimo. Agricultura orgânica: problema. Biodinâmica: desastre. Mas do que estávamos falando? De um hectare de vinhas plantadas com clones produtivos, porta-enxertos vigorosos, capina total durante 20 anos, 60 unidades de nitrogênio a cada primavera, antibióticos, ou seja, tratamentos sistêmicos entrando pela seiva até as raízes... Se você pedir a uma planta como essa para se tornar biodinâmica da noite para o dia, é como pedir a um cara que usa heroína há 10 anos que mude para suco de cenoura”, compara.
Alexander Van Beek, gerente geral dos Châteaux Giscours e Du Tertre, em Bordeaux, tem uma visão semelhante. “Sempre trabalhamos com lutte raisonnée, mas concordo que, dependendo das safras, ser orgânico em Bordeaux pode ser um jogo complicado de jogar. Além disso, nossas propriedades são muito grandes. Ter uma visão do que está acontecendo, lote por lote, é muito diferente. Quando plantamos do zero, plantamos com uma filosofia biodinâmica. Mas se você fuma muito há 85 anos, não faz muito sentido parar de fumar abruptamente”, diz.
“Estamos em lutte raisonnée, certificado com o selo HVE3 (certificação do governo francês para “alto valor ambiental”). Temos procurado reduzir as doses dos produtos que utilizamos optando por sistemas de pulverização precisos. Sempre que possível, usamos produtos naturais como enxofre e cobre, mas não deixamos de usar outros tratamentos para doenças.
A certificação HVE é um passo para nós e, obviamente, gostaríamos de nos converter um dia para o orgânico. Mas realmente queremos pensar bem antes disso”, conta Guillaume Michel, do domaine Louis Michel, em Chablis, que complementa: “Na verdade, não resta muito o que mudar para poder ser orgânico, mas temos receio do míldio, principalmente devido à diminuição nas doses autorizadas de cobre. Eu entendo a necessidade de reduzir essas doses: estamos vendo isso nas nossas vinhas velhas, que já existiam na época dos meus avós (que usavam doses muito grandes de cobre), pois há muito menos vida nas vinhas. Mas hoje, os sistemas de pulverização são muito mais precisos. Se estivéssemos no Languedoc, já teríamos nos tornado orgânicos há muito tempo, mas aqui há uma forte pressão do míldio, que nos leva a pensar com cuidado, especialmente porque o sistema orgânico carece de flexibilidade”.
Enfim, ao evocar a lutte raisonnée, os produtores buscam mostrar que se preocupam com o meio ambiente, que não fazem uma agricultura “convencional”, que evitam tratamentos “a qualquer custo”, mas também que não abrem mão de cuidar de suas vinhas com os meios possíveis caso algo as ameace seriamente. A lutte raisonnée seria a evocação do uso da razão e do bom senso, mas, em um mundo de extremos como o que estamos vivendo, nem sempre acreditamos no bom senso, por mais bem intencionado que o produtor possa ser.
Ainda assim, com tantos meios tecnológicos à nossa volta, difícil acreditar que alguém, ainda hoje, corra o risco de “contaminar” seu vinhedo (e consequentemente o vinho) sem uma boa razão. No fundo, independentemente das nomenclaturas, seja orgânico, biodinâmico ou sustentável, o que mais importa é o vinho ser bom. Isso é ser razoável.