Um guia para harmonizar um dos mais clássicos encontros na mesa. Colocamos em prova mais de 20 tipos de queijos
por Carlos Cordeiro
Relação entre queijo e vinho é mais próxima do que se imagina e combiná-los na mesa é sempre um momento especial |
Um produto com mais de 4 mil anos de história. Extremamente dependente do terroir no qual é produzido. Passa por um processo de fermentação e, posteriormente, de guarda para envelhecimento ou maturação. É o resultado final de um ciclo que se inicia no campo, envolve a seleção rigorosa da matéria-prima, demanda muito acompanhamento, conhecimento e arte, passa pela azienda e culmina na nossa satisfação sensorial. Muitas das regiões produtoras recebem identificação de procedência, como DOC, AOC etc. Existe em diversidade suficiente para que se torne quase impossível provarmos todos, o que é mais motivo de satisfação do que de lamento. Se você pensou no vinho, está enganado, aqui falamos é de queijo.
A afinidade entre queijos e vinhos é tanta que não podemos estranhar estarem sempre juntos e, se não são produtos irmãos, podemos, no mínimo, dizer que são primos. E, como todo relacionamento em família, requer carinho e atenção.
O queijo, de maneira bastante genérica, resulta da ação de bactérias lácteas sobre o leite, transformando a lactose em ácido láctico. Adiciona-se o coalho para que a proteína e a gordura do leite se liguem e se separem do soro. A coalhada, posteriormente, é apartada do soro, moldada e passa por um processo de maturação. Evidentemente, cada queijo possui algumas especificidades no processo produtivo, com a descrição anterior servindo apenas como uma referência.
Assim como no vinho, o terroir também tem muita influência nos sabores do queijo |
A matéria-prima do queijo é o leite, que pode vir de vacas, ovelhas e cabras, mas também de búfalas, antílopes, bisontes, camelas etc. A maioria pertencente à família dos bovídeos. Assim como o vinho, o produto final é muito dependente do terroir no qual é produzido. O relevo é o primeiro dos fatores. Enquanto regiões mais montanhosas facilitam a criação de cabras, vales e planícies são mais favoráveis às vacas e ovelhas. A pastagem dos animais é resultado do solo e do clima da região e serão integrantes do sabor final do leite, que poderá ser impregnado com sabores herbáceos e minerais. Finalmente, o microclima da queijaria propicia o desenvolvimento de diferentes tipos de bolores e bactérias que ajudarão a composição do caráter final do produto.
Enquanto o queijeiro tem papel fundamental na decisão do queijo a ser produzido, conduzindo o processo desde a seleção, refinamento (eventualmente pasteurização) do leite até a escolha da cultura de bactérias lácticas e do coalho, da forma de moldagem e salgadura, o affineur assume a maturação do queijo.
Queijos de massa mole como o Brie podem combinar bem com espumantes |
A extraordinária diversidade de queijos abre possibilidade para harmonizações diversas. Mas por onde começar? Agrupar alguns queijos por afinidade é um bom primeiro passo. Para isso, tomamos emprestado o sistema de identificação adotado por Juliet Harbutt, organizadora de "O Livro do Queijo" (Editora Globo, 2010). O livro é uma referência indispensável para os apreciadores do tema e serviu de fonte inesgotável de consulta.
São identificados sete tipos de queijo: fresco, fresco curado, branco mole, semimole, duro, azul e temperado. A partir das breves descrições a seguir será muito mais fácil para o leitor enquadrar os queijos de sua preferência em uma dessas categorias e, em função disso, buscar o vinho que melhor se adapte às características do queijo e, claro, ao seu gosto pessoal.
Os queijos frescos possuem alto teor de umidade, usualmente são bastante suaves e acidulados, por vezes até cítricos. O frescor e suavidade dos queijos desse grupo permitem a percepção das nuances e sutilezas do leite, o que em queijos mais fortes e envelhecidos é sobrepujado por sabores secundários. Nesse grupo estão, por exemplo, a mozarela de búfala, a ricota, o mascarpone e o feta.
Os queijos frescos curados não são tão usuais no Brasil. Geralmente possuem uma casca fina e enrugada composta por bolores. Os queijos produzidos com leite de cabra são mais firmes e desenvolvem bolores de sabor mais marcante. Podem ser recobertos com ervas, temperos ou cinzas. Os exemplares mais famosos vêm do vale do Loire, como o Valençay e o Clochette.
Os queijos brancos moles, apesar da origem europeia, já se incorporaram aos nossos hábitos. Ninguém mais estranha um Brie ou um Camembert, seja como aperitivo, em uma tábua de degustação ou na composição de um prato. O interior do queijo é cremoso e contido por uma fina camada de bolor branca e aveludada. Os sabores invariavelmente remetem aos cogumelos.
Os queijos semimoles englobam maior diversidade entre seus componentes. Todos têm as cascas lavadas com salmoura para evitar o desenvolvimento de bolores. A variação ocorre em função da quantidade de vezes que a casca é lavada. Aqueles que recebem pouca salmoura acabam desenvolvendo uma casca seca e permitem uma maturação mais lenta. Já os que recebem maior volume de salmoura desenvolvem uma casca mole e pegajosa e, usualmente, são mais cremosos. Entre os mais destacados nessa categoria estão o Edam, o Asiago e o Taleggio.
SAIBA MONTAR SUA TÁBUA DE QUEIJOS |
Os queijos duros são facilmente reconhecíveis e fazem parte do nosso dia-a-dia desde as primeiras macarronadas com queijo ralado. As cascas podem tanto ser lustrosas quanto ásperas em função do tratamento dado durante o processo de prensagem. Com a maturação, os queijos adquirem sabores mais marcantes e complexos. A textura é geralmente granulada e pode dar uma sensação crocante como de pequenos cristais (especialmente os de longa maturação).
Os queijos azuis assustam muita gente. O impacto visual do bolor é suficiente para espantar os menos aventurosos. Mas quando se supera esse primeiro impacto, a satisfação é garantida. Possuem como traço comum um sabor discretamente metálico e picante (sem ser, de fato, apimentado). A textura é geralmente úmida, para favorecer o desenvolvimento do bolor. O teor de sal é usualmente superior ao dos demais queijos.
Vinhos potentes italianos harmonizam sobremaneira com queijos duros de sabor mais forte |
Desenvolve sabores herbáceos e de caramelo. Os maiores representantes desse grupo são o Roquefort, o Gorgonzola e o Stilton.
Os queijos temperados se apresentam em diversas formas, que variam desde os defumados até aqueles que incorporam especiarias como ervas, nozes, cravo, frutas secas etc. Ainda é uma categoria pouco usual para o nosso consumidor, não havendo representantes mais destacados.
Nunca é demais lembrarmos que cada queijo, assim como cada vinho, possui características particulares que podem variar não apenas dentro dos grupos, mas mesmo entre dois queijos do mesmo tipo de produtores diferentes. Além disso, as preferências pessoais devem ser sempre seguidas. Portanto, como toda sugestão de harmonização, o melhor caminho é recorrer aos testes empíricos e não adotar as recomendações dogmaticamente.
Como guia, podemos sugerir que os queijos frescos e os frescos curados sejam harmonizados com vinhos brancos leves, frutados e refrescantes, com acidez elevada (para equilibrar com a acidez dos queijos), como os Sauvignon Blanc, Albariño e Muscadet ou espumantes.
Os brancos moles também são acompanhamento perfeito para os espumantes, sobretudo Champagne, seja pelo equilíbrio na acidez, seja pelo enfrentamento do sal moderado do queijo pela efervescência do vinho, mas aceitam parcerias vencedoras com Riesling e Gewürztraminer. A remissão a cogumelos, usual nos queijos desse grupo, abre espaço para os Pinot Noir frutados e com taninos macios.
Um traço marcante dos queijos semimoles é uma doçura discreta, o que cria o pano de fundo perfeito para os brancos aromáticos, principalmente os Gewürztraminer e os Riesling, mas também Vermentino, Arneis, Grüner Veltliner e mesmo Torrontés. Entre os tintos, os leves e frutados como Pinot Noir, Beaujolais, Barbera e Dolcetto são opção para quem não abre mão de algum tanino.
Os queijos duros têm sabores mais fortes e complexos e, agora sim, os tintos encorpados entram em cena. Nesses queijos, a acidez é atenuada pelo tempo, o que evita a disputa com os taninos dos tintos. Assim como presença do sal não é suficiente para o conflito. É preciso corpo para enfrentar a riqueza dos queijos duros. As opções se iniciam com os clássicos italianos, Chianti, Brunello, Barolo e Barbaresco e seguem pela França com os vinhos do Rhône e de Bordeaux. Entre os queijos duros mais tradicionais estão o Parmigiano Reggiano, o Grana Padano, o Pecorino e o Cheddar maturado.
O sal dos queijos azuis se aproxima do limite para os vinhos tintos. Alguns dos tintos encorpados citados no grupo anterior, sobretudo os Barolos e Barbarescos, podem enfrentar os queijos azuis, mas, certamente, não produzirão a mesma satisfação que os vinhos doces. O contraste do salgado com o doce, mais o traço de caramelo dos queijos, resulta em harmonizações clássicas. As particularidades de cada queijo azul conduzem a uma linha sutilmente diferente entre os doces. Assim, o Stilton é imbatível com um Porto Vintage, o Roquefort com um Sauternes e o gorgonzola com um Porto Tawny.
Uma seleção de vários tipos de queijo vai pedir diferentes tipos de vinho |
Selecionamos 20 queijos que podem ser encontrados nos grandes centros e com perfil mais adequado para um evento de "Queijos & Vinhos". Nesse sentido, não utilizamos os queijos frescos e os frescos curados, e elegemos apenas uma amostra do grupo dos queijos temperados. Entre os 20 tipos, apenas o Pecorino e o Roquefort são produzidos com leite de ovelha. Os demais são feitos com leite de vaca. Os selecionados foram:
Queijos Branco Moles: Brie (França) e Camembert (França)
Queijos Semimoles: Asiago (Itália), Appenzeller (Suíça), Edam (Holanda), Gouda (Holanda), Masdam (Holanda) e Munster (França)
Queijos Duros: Emmenthal (Suíça), Gruyère (França), Prima Donna (Holanda), Grana Padano (Itália), Parmigiano Reggiano (Itália), Pecorino (Itália) e Aged Cheddar (Inglaterra)
Queijos Azuis: Bleu d'Auvergne (França), Gorgonzola (Itália), Roquefort (França) e Stilton (Inglaterra)
Queijos Temperados: Tilsit com sementes de cominho (Alemanha)
Colocamos à prova as recomendações clássicas utilizando seis vinhos que, pela diversidade de características, abrangem boa parte do espectro de harmonizações possíveis com queijos. Os selecionados foram:
Champagne Pol Roger Brut Reserve - Não se pode esperar menos do que perfeição de um produtor de Champagne como Pol Roger. Exemplar muito acima da média para um non vintage. Encorpado e com acidez marcada. Destaque para cogumelos e nozes no nariz. Com final amanteigado, quase cremoso.
Queijos azuis são ótima companhia para Tawny |
Selbach-Oster Riesling Zeltinger Sonnenuhr Kabinett Trocken 2007 - atende com sobras a expectativa de acidez, perfeitamente equilibrada com o álcool e o corpo. No nariz, o destaque são as stone fruits, como pêssego e nectarina.
Domaine Martin Schaetzel Gewürztraminer Cuvée Réserve 2009 - uma explosão de aromas de frutas brancas e flores, sobretudo de laranjeira. A leve doçura e acidez totalmente integrada garantem a harmonização no nível pretendido.
Domaine Pierre Labet Beaune Clos du Dessus des Marconnets 2006 - cerejas e framboesas dão um toque quase doce. Taninos, álcool e acidez perfeitamente equilibrados, o que torna cada um deles discreto e facilita gostar desse vinho.
Oreno 2006 Tenuta Sette Ponti - um monstro de frutas negras. Taninos extremamente macios dão estrutura e equilíbrio a este maravilhoso super toscano. O final dura eternamente.
Burmester 10 Years Old Porto Tawny - frutas secas, sobretudo figos, tâmaras e passas, e caramelo tostado. O volume de açúcar não é excessivo, e os 20% de álcool passam quase despercebidos. Vinho versátil, abre e fecha refeições, não se intimida com pratos ricos com foie gras, amêndoas ou nozes e, além dos queijos azuis, cai muito bem com sobremesas de chocolate amargo.
A maioria das expectativas se confirmou. O Champagne foi perfeito com os queijos brancos moles. O Riesling e o Gewürztraminer se deram muito bem com os semimoles, assim como o Pinot Noir. O Oreno obteve as melhores respostas dos queijos duros, enquanto o Porto Tawny se deu bem com os quatro azuis.
Mas houve algumas surpresas positivas: o Pol Roger foi maravilhoso com o Appenzeller, destacando a leve doçura do queijo, enquanto aquele sabor característico das leveduras do vinho trazia à tona os toques de nozes. Entre o Pol Roger e o Cheddar, a ponte se deu através da acidez residual do queijo e das mesmas nozes. O Cheddar surpreendeu, também, com o Pinot Noir.
O sabor intenso do queijo não sobrepujou o vinho, pelo contrário, conteve-se e criou na boca um palco perfeito para o vinho. Finalmente, o Porto agradou com praticamente todos os queijos. Equilibrou-se com a doçura dos semimoles, fez liga por contraste com o sal dos duros e arrebentou com os azuis.
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