Antes adepta a variedades tradicionais, a Sicilia valoriza as uvas nativas e produz vinhos de diversos tipos
Gina De Azevedo Marques Publicado em 25/06/2019, às 12h00 - Atualizado às 18h10
Conta a mitologia grega que Baco, deus do vinho, é filho de Zeus com Perséfone, deusa do ciclo das colheitas
Uma das variantes da mitologia grega conta que Baco é siciliano. Filho incestuoso de Zeus, o rei dos deuses do Olímpo, com Perséfone, deusa do ciclo das colheitas. Ele teria sido concebido em uma gruta na Sicília, onde a sua avó, Deméter, deusa da fertilidade da terra, escondeu a belíssima filha para protegê-la dos desejos de outros deuses. Foi então que Zeus, transformou-se em serpente e conseguiu fecundá-la. Não é de se estranhar esta versão, porque a Sicília no VIII século antes de Cristo fazia parte da Magna Grécia e o mito de Baco, deus do vinho por excelência, está implicitamente ligado à origem desta terra.
Em 1860 foram encontradas videiras nativas que surgiram milhões de anos antes da presença do homem nesta ilha. Hoje, graças às condições ambientais favoráveis, a Sicília chega a produzir anualmente cerca de 400 milhões de litros de vinho. Sendo que nos últimos anos a quantidade tem diminuído para favorecer a qualidade, que evoluiu com a história e a ajuda da ciência.
"A mudança foi drástica. Nos anos 80, a Sicília produzia toneladas de uvas internacionais, como Chardonnay, Cabernet e Merlot, por exemplo. Nas últimas duas décadas, passamos a priorizar o nosso estilo original, valorizando o brand ''Made in Sicily''. Portanto, viva o vinho nativo! Obviamente de qualidade.", explica Dario Cartabellotta, diretor do Instituto Regional da Videira e do Vinho da Sicília (IRVV).
Leia também:
+ Os deuses do vinho; além de Baco
A revolução qualitativa do vinho siciliano aplica um principio antigo: o respeito da biodiversidade. O ambiente ao redor, o solo e o clima, ressaltam as características originais da bebida. A diferença é que hoje existem estudos científicos para aprimorar as qualidades do produto.
Em 2005, o IRVV junto com a Unidade Operativa de Biotecnologia italiana criou um banco de germoplasma para conservar e estudar os "genes" das melhores plantas. O objetivo da conservação genética é aprimorar a qualidade e também evitar que uma praga possa extinguir uma variedade nativa, como aconteceu no passado com o inseto filoxera que destruiu muitas vinhas européias.
Com uma posição geográfica estratégica no Mediterrâneo, a Sicília sofreu a influência de diversas dominações dos gregos, fenícios, cartagineses, romanos, árabes, bizantinos e normandos. Cada uma destas civilizações deixou traços na cultura siciliana, na arquitetura, nos costumes, na comida e no vinho.
A região siciliana, que inclui diversas ilhas, é dotada de microclimas exclusivos com características heterogêneas, cujas colheitas das uvas chegam a durar de julho a novembro, caso raro no mundo. Contando com estas vantagens, eles produzem vinhos de diversos tipos: doces, tintos, brancos. Cada um com a própria personalidade. Não é à toa que a Sicília conquistou o selo de certificação de qualidade européia com 22 vinhos DOC (Denominação de Origem Controlada) e um DOCG (Denominação de Origem Controlada e Garantida).
Na parte oriental da Sicília concentra-se a produção dos tintos, enquanto na ocidental dominam os vinhos brancos. Conhecido como o Príncipe da Viticultura Siciliana, o Nero D''Avola reina entre tintos da ilha. Com amplo e intenso aroma de frutas vermelhas, o vinho pode ser encontrado puro ou cortado com outras uvas. E sua origem vem dos tempos da dominação grega.
Quando combinado com a uva Frappato, exprime a variedade máxima: o Cerasuolo di Vittoria (o único DOCG), que com notas de cereja e romã é considerado o elixir dos deuses. Esta uva foi introduzida pelos espanhóis e é produzida no sudeste da ilha entre Ragusa, Siracusa e Vittoria.
Ainda na parte oriental, a imponência do Etna e suas constantes erupções criam um ambiente variado a 360°. O escuro solo vulcânico favorece os vinhos tintos, mas alguns brancos também são produzidos. O melhor deles é o Etna Bianco, com a uva Carricante, cujo aroma traz notas de pêssego e flores brancas.
Os vinhedos em torno ao Etna estão entre 350 a 1000 metros acima do nível do mar. Nesta área encontram-se variedades nativas de centenas de anos, como as uvas tintas Nerello Mascalese e a Nerello Cappuccio. Esta última quase foi extinta, mas hoje a produção foi recuperada. O resultado é um vinho de elevada graduação alcoólica (entre 13 e 14%) e destinado a um longo envelhecimento com notas de rosa e ciclâmen.
Nas ilhas Eólias, no nordeste da Sicília, tuteladas pela Unesco a "zona das sete pérolas do Mediterrâneo" é produzido um ótimo vinho doce: o Malvasia. Esta casta de uvas brancas foi trazida pelos gregos. A cor amarela dourada, com reflexos âmbar, e notas olfativas de damasco e mel transformam-no em vinho ideal para a meditação.
Já o Marsala, produzido no leste perto de Trapani, é um vinho licoroso com características diferentes. Sua história é o exemplo das diversas culturas que influenciaram a ilha. Em 1773 o comerciante inglês John Woodhouse no porto de Marsala degustou o vinho local e quis levar alguns barris para a Inglaterra. Para enfrentar a longa viagem de navio, foi adicionada aguardente de uva a fim de preservar as características e elevar o teor alcoólico. O resultado foi excelente.
Hoje o Marsala é um vinho único, mas com tipos que variam na cor, do âmbar ao dourado até o vermelho rubi, e no sabor seco ou doce. As uvas mais usadas são Grillo e Catarratto que também produzem vinhos brancos.
O Catarratto se caracteriza pela elevada acidez que influencia positivamente o aroma fresco com notas olfativas de flores brancas. Enquanto a uva Grillo, devido ao alto teor de açúcar, tem vocação para forte graduação alcoólica que chega a 16%, o que permite uma longa conservação.
Entre os brancos, a Inzolia (ou Ansonica) é a mais antiga uva nativa. A videira é muito resistente ao clima seco e, graças às características particulares das folhas, pede menor absorção de água. Os fermentados, de tonalidade amarela palha são leves e aromáticos com notas de flores brancas silvestres com graduação alcoólica média de 12,5%.
A influência antiga dos árabes deixou um marco na enogastronomia siciliana. Eles trouxeram a uva passa, denominada também Moscato de Alexandria ou Zibibbo, que é a essência do Passito da ilha de Pantelleria, que fica mais próxima da Tunísia do que da Itália. Trata-se de um vinho branco doce e aveludado, com notas de damasco, mel e tâmara, que pode ser tomado como aperitivo, mas é ideal para a sobremesa.
A colheita do Zibbibo é definida pelos italianos como heróica. O trabalho é longo e manual. Após colher os cachos, os camponeses os deixam secar em estufas protegidas da chuva. Só depois cada frutinha seca, que contém alto teor de açúcar, é separada uma a uma para se fazer um vinho que até Baco lamberia os beiços.
Veja também: