À frente de seu tempo

Adriano Ramos Pinto celebra sua presença histórica no mercado brasileiro com uma degustação inédita de vinhos de três séculos diferentes

por Christian Burgos

Há coisas que estão tão intrinsecamente ligadas que acabam por se misturar, por se confundirem umas com as outras. Durante muitos anos, o nome Adriano Ramos Pinto foi sinônimo de Vinho do Porto no Brasil. Até hoje, na verdade, muita gente ainda diz que vai beber um "Adriano" ou um "Ramos Pinto", tamanha a ligação que essa empresa fundada em 1880 criou com o mercado brasileiro desde seu início.

A história desta casa que revolucionou a região do Douro e, por consequência, o Vinho do Porto, é extraordinária e foi contada à ADEGA com a paixão de quem carrega esse espírito empreendedor no sangue, Jorge Rosas, bisneto de António Ramos Pinto, irmão e sócio de Adriano, e filho de José Ramos Pinto Rosas, considerado o "Papa do Douro" ou então o "Profeta do Vinho do Porto". Pertencente à quinta geração de uma família de produtores de vinho, Jorge Rosas faz questão de transmitir os valores que alicerçaram a empresa desde sua origem até os dias de hoje - quando ela pertence ao Grupo Roederer, da poderosa casa de Champagne Louis Roederer, que a adquiriu em 1990, quando os herdeiros de Adriano e António decidiram vendê-la.

Ele, hoje diretor de exportação da empresa, seguiu o caminho do vinho naturalmente. "Isso é natural quando se vive em meio aos vinhos. É como um vírus", conta o executivo, que continuou trabalhando na Ramos Pinto mesmo após sua venda, que foi pensada para que não caísse em mãos de grupos multinacionais que a descaracterizariam, perdendo sua filosofia. Com uma gestão "totalmente autônoma em relação à Roederer", esta casa de Vinho do Porto segue sendo pioneira no que diz respeito ao produto que faz e às questões vitivinícolas da região onde está inserida, o Douro. Além disso, eles estão sempre de olho no mercado que os tornou uma lenda: o Brasil.

#Q#
Degustação histórica contou com vinhos de 2007, 1983, 1970, 1952, 1934, 1924 e 1884, compreendendo três séculos

Uma degustação histórica - três século
Sendo assim, em abril deste ano, Jorge Rosas veio ao Brasil para promover um evento histórico, uma degustação na qual seriam provados Vinhos do Porto de Adriano Ramos Pinto de três séculos diferentes. Foram selecionados e trazidos especialmente para o Brasil os Vintages 2007, 1983, 1970, 1952, 1934, 1924 e 1884.

Esta prova ímpar, que teve lugares extremamente restritos, certamente foi o maior evento do Vinho do Porto no ano e, talvez, da história recente deste vinho no Brasil. ADEGA teve o privilégio de degustar essas raridades e traz algumas delas avaliadas. Assim, pudemos provar um pouco da filosofia "engarrafada" da Adriano Ramos Pinto, o que o levou a ter a primazia do mercado brasileiro em uma época que a concorrência era feroz e quase ninguém pensava em marketing para divulgar seus produtores e ganhar market share.

Visionário
E Adriano Ramos Pinto obviamente era uma pessoa à frente de seu tempo. "Ele começou a trabalhando em outra empresa de Vinho do Porto, mas, cedo, aos 21 anos, disse: 'Posso fazer muito melhor do que eles'", afirma Rosas. Adriano, então, fundou sua empresa com a ideia de vender para o Brasil vinhos de qualidade e não de massa como, até então, eram os Porto para cá enviados.

Qual a grande sacada de Adriano naquela época? Vender seu vinho duas vezes mais caro do que o preço médio praticado aqui. Apesar da lógica meio estranha, ela funcionou especialmente devido à sua estratégia de marketing que envolvia belíssimos e ousados cartazes de estilo Belle Époque, brindes originais que vinham junto com as caixas e, por último, mas não menos importante, qualidade.

Enquanto boa parte dos Vinhos do Porto chegavam em terras brasileiras à granel em pipas, Adriano já se preocupava em engarrafar seus produtos. "Ele ficou 10, 15 anos vendendo vinho duas ou três vezes mais caro e acabou conquistando 50% do mercado do Brasil e de toda a América do Sul. Ele nunca esperou vender tanto", conta Rosas.

#Q#

Para alavancar as vendas, Adriano "apelou" para um marketing agressivo para a época. "Ele tinha duas filhas que moravam em Paris e lá ele mandava fazer esses cartazes Belle Époque. E ele tinha entendido muito cedo que o erotismo ajudava a vender, apesar de o Brasil ser um mercado extremamente tradicional e puritano", lembra Rosas. Os cartazes eram mesmo provocativos, alguns polêmicos ou chocantes, quase sempre com imagens de mulheres com seios desnudos e com uma palavra recorrente: tentação.

"Tudo sempre girava em volta da tentação. Há um cartaz em que o próprio Adriano Ramos Pinto está com um cálice de vinho e, atrás, há uma menina. Lá está dito: 'tentação' e você não sabe o que é tentação. Se é o copo de vinho ou a menina que está atrás dele. Embora venha de uma família católica, alguns quadros brincavam com a religião. Tem até um dos três reis magos com mulheres desnudas oferecendo o vinho de Ramos Pinto. Era um escândalo para a sociedade na época", atesta o herdeiro, que lembra de mais um cartaz polêmico: "Há um em que um negro está abraçado com uma senhora branca com os dizeres: 'Ramos Pinto, melhor que vatapá', ou algo do gênero. Ele fazia isso numa época que ainda havia escravatura no Brasil. Ele era um homem genial. Em 10 anos ficou milionário".

fotos: Norio Ito
Jorge Rosas recordou as inovações de seu pai e seu bisavô, dois grandes personagens do Vinho do Porto

ESTÁTUA RAMOS PINTO
Durante a conversa, Jorge Rosas lembrou de mais um fato curioso envolvendo seu bisavô. No início do século XX, a cidade do Rio de Janeiro passava por diversas mudanças urbanísticas promovidas pelo presidente Rodrigues Alves. Assim, Adriano Ramos Pinto resolveu oferecer à cidade uma obra inspirada na "Fontaine de Jouvence", do artista francês Eugéne Thivier, em que o deus do amor, Eros, aparece no topo com diversas mulheres tentando alcançá-lo.

Na época, o prefeito considerou a obra ousada e pediu para que algumas partes pudicas das donzelas fossem cobertas. Mesmo contrariado, o escultor aceitou fazer as modificações para que a obra fosse inaugurada em 1906, na Glória, com a presença de grande parte da sociedade carioca. "Quando tiraram o pano, mostraram as mulheres que estavam cobertas e cobriram as que estavam desnudas para não chocar as pessoas", conta Rosas. Anos mais tarde, a fonte foi transferida para a entrada do túnel do Leme, onde se encontra até hoje, mas já um pouco desfigurada e vandalizada.

#Q#

Tudo pelo Brasil
Jorge Rosas lembra ainda que uma das inovações que a Ramos Pinto trouxe ao Vinho do Porto e que se transformou em um grande sucesso deve-se ao mercado brasileiro: o LBV - Late Bottled Vintage. "O Vintage não se adequou ao mercado brasileiro, pois tinha muito corpo, era muito tânico. E nosso principal mercado nos anos de 1920 era o Brasil. Então, em vez de engarrafar os vinhos no segundo ano, como nos Vintage, engarrafava no quarto ano para que o vinho arredondasse, evoluísse mais, e não fosse aquela bomba. Naquela época, os Vintage eram feitos com 40, 50 castas e, portanto, precisavam de muito tempo para estarem bebíveis", afirma Rosas. Assim, em 1927, a Ramos Pinto engarrafou o primeiro LBV de que se tem notícia.

Vínculo com o Brasil é natural, pois a intenção
desde o início era exportar para cá

A família sempre tomou a dianteira do Vinho do Porto e da região do Douro no decorrer de sua história. José Ramos Pinto Rosas tem grande parte na preservação da cultura do vinho da região, assim como também em sua modernização. "Existem mais de 100 castas no Douro. Então, em 1980, meu pai ordenou um estudo para definir as melhores. Ele começou a plantar blocos de uma só casta pela primeira vez na história da região. E também a vinificar separadamente. Ele selecionou 12 castas e pediu para meu primo, que estudava em Bordeaux, fazer um estudo científico para identifi car as melhores. E foram selecionadas cinco que hoje são ofi - cialmente recomendadas pelos organismos oficiais do Douro: Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Barroca, Tinto Cão e Tinta Roriz", conta Rosas.

O executivo da Ramos Pinto completa: "Vinho do Porto é a arte do blend. Ter várias variedades dá uma dimensão única aos nossos vinhos, dá mais complexidade. Isso é o que faz Portugal diferente: vinhas velhas e essa variedade de castas. Mas era preciso estudar, não se podia ter 50 castas numa vinha e não saber o que havia lá. Até porque elas têm fases de maturação diferentes. Há 50 anos, esperava-se que tudo ficasse muito maduro e se vinificava assim. Fomos os primeiros a fazer blocos e análise de maturação".

3 SÉCULOS DE PORTO
POR LUIZ GASTÃO BOLONHEZ

É mesmo para poucos poder apreciar vinhos com essa carga de história. Todos os vinhos estavam em perfeito estado de conservação, com o mais velho, o 1884, já bem evoluído, um pouco "cansado", mas ainda íntegro e firme, mesmo com mais de 120 anos de idade. O 1924 estava muito interessante e mais complexo que o 1934. O 1952 estava delicioso e cheio de vida. O 1970 foi o mais "borgonhês" de todos os vinhos do Porto que já degustei. Sua carga floral (rosas) estava impressionante com uma excelente carga de frutas vermelhas maduras. Muito elegante e sensual. O 1983, apesar de sua boa estrutura, não encantou. Em perfeito estado, com boa carga de frutas e boa boca, foi ofuscado pelos irmãos que estavam à mesa. O ultra jovem 2007 estava muito robusto, firme e potente. Um Porto que poderá evoluir por muito mais de 50 anos, como alguns de seus irmãos velhos que foram servidos. Uma das mais completas e impressionantes degustações verticais da história de nosso país. Confira as avaliações completas dos vinhos que mais se destacaram na seção Cave.

#Q#
fotos: Norio Ito

Mas a empresa não parou por aí e conduziu estudos de novos métodos de plantio na região, passando dos muros para os patamares e, posteriormente, ao da "vinha ao alto". Também fizeram seleção de porta-enxerto, estudos sobre irrigação no Douro Superior e, por fim, da adequação de alguns tipos de madeira com o vinho.

Filho de uma brasileira, Jorge Rosas dedica-se ao Vinho do Porto como seus antepassados e acredita na filosofia que o fundador da Ramos Pinto pregava: "Não existe vinho no planeta que necessite mais de intervenção do que o Vinho do Porto. E a qualidade não vem do ar, não cai do céu. Um bom vinho é caro, é muito caro, e você tem que investir. Meu pai dizia: 'Para ter bom vinhos, é preciso ter uvas'". Mas a qualidade acima de tudo significa usar o melhor da inovação e da tradição: "Todos nossos vinhos são feitos com uvas próprias. 30% dos nossos vinhos são pisados a pé, não apenas por ser uma tradição, mas porque acreditamos que é a melhor forma de se fazer".

AVALIAÇÃO DOS VINHOS
Ramos Pinto Porto Vintage 2007
Ramos Pinto Porto Vintage 1970
Ramos Pinto Porto Vintage 1924

palavras chave

Notícias relacionadas