Maurício Salton conversa pela primeira vez com um veículo especializado após a polêmica do trabalho análogo à escravidão
por Christian Burgos
Maurício Salton conversa pela primeira vez com um veículo especializado após a polêmica do trabalho análogo à escravidão no Rio Grande do Sul, e da celebração do Termo de Ajuste de Conduta no valor de R$ 7 milhões. A conversa muito franca e longa e por isso alguns trechos foram editados para facilitar a compreensão e leitura.
ADEGA: Nas últimas três semanas vocês passaram por um período bastante conturbado. Eu queria que você explicasse em suas palavras o que foi que aconteceu.
Maurício: Bom, o período de safra é um período muito pontual dentro do nosso calendário. Ele não é um período linear. Então, depende do fluxo de uvas, se a colheita está saindo bem, se tem algum fator climático. E a gente contrata prestação de serviços para descarga de caminhões de uva. Já faz pelo menos três anos que a gente trabalha dessa maneira, e a gente também trabalha com mão de obra temporária. São duas situações que a gente acaba recorrendo durante o período de safra. Nesse caso, a gente contratou esse serviço de prestação de descarga de caminhões de uva junto a uma empresa que se chama Fênix. Uma empresa que tem sede em Bento, que atua há mais de dez anos prestando serviço não só para vinícolas, mas para a construção civil e para frigoríficos. É um calendário que eles possuem ao longo do exercício. Então, dependendo da demanda do ano, do momento do ano, eles atendem setores específicos.
E nesse caso a gente acabou recorrendo à empresa justamente para fazer esse serviço, que é pontual e importante para nós durante a safra. Nós contratamos cerca de 14 pessoas. No início foram cinco e, sabe aquela linearidade da safra não existe, seguimos o fluxo de uvas que a gente acaba recebendo. Então, basicamente a gente teve 14 pessoas contratadas durante esse período que nos atenderam com esse propósito. E na terça para quarta-feira de cinzas, a gente soube... E isso é muito sincero que eu coloco, a gente soube através da própria mídia, que houve uma investigação a partir do Ministério do Trabalho, Ministério Público do Trabalho, da Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal.
Eles fiscalizaram um alojamento, que era justamente dessa empresa, e que tinha situações degradantes aos trabalhadores. Isso nos pegou de surpresa. A gente recebeu aquela informação logo de noite e começamos a trabalhar, primeiro entendendo se era algo relacionado ao prestador que a gente tinha o contrato. E depois que se confirmou, a gente foi entendendo quais eram os próximos passos da nossa empresa. A gente trabalhou naquela ocasião até altas horas junto com nosso próprio jurídico. É claro, que a gente já tinha uma intenção clara de, no próximo dia já fazer uma notificação de resilição de contrato. Então a gente já faria uma rescisão contratual. Não foi nem suficiente, porque na hora que a gente foi para o escritório já tinha uma notificação por parte da empresa, que ela não nos prestaria mais serviços. E daí a gente procurou com pouca voz, sendo solidário e solícito, especialmente às entidades públicas, conscientizar que não houve maus tratos dentro das empresas. Não foi um trabalho exclusivo, recrutado pelas vinícolas. É uma empresa que oferece prestação de serviços para o mercado. A gente fez toda a parte contratual, atendemos todas as partes de treinamentos, as requisições de EPIs (equipamentos de proteção e segurança no trabalho). A gente cobrou os atestados de saúde ocupacional, e todas essas situações inerentes a uma contratação de serviços. A gente garantiu a salubridade, a gente olhou a alimentação dessa turma dentro das nossas dependências de trabalho. Mas a gente não fiscalizou o alojamento, as dependências desse terceiro, que foi aonde aconteceram esses apontamentos de maus tratos e situações relacionadas.
E eu coloco aqui sempre. E eu digo em voz alta que a gente não se omite. A gente falhou. A gente deveria ter sido mais diligente. A gente vai fazer melhor, a gente vai demonstrar o fazer melhor com ações.
ADEGA: A legislação exige essa fiscalização?
Maurício: Na parte de legislação, tu tens lá uma leitura que é a sua obrigação garantir a salubridade, alimentação... toda a situação que que envolve o trabalhador nas suas dependências, ou no local onde o trabalho será realizado. Depois a gente vai conversando com Ministério Público e entendendo que existe, sim, essa assunção de uma fiscalização de cadeia produtiva. Mas na nossa leitura era uma parte contratual, garantindo esses recolhimentos, toda essa parte básica que envolve uma contratação de serviços. E por ser uma empresa com sede em Bento Gonçalves, atuando há tantos anos, a gente acabou também confiando na boa fé dessa empresa. Eu coloquei em algumas situações; a gente não se omite de ter cometido essa falha. A gente, claro, deveria ter sido mais diligente a partir dessa leitura, de fiscalizar o alojamento, a alimentação... A gente tinha uma noção porque o pessoal fazia a refeição lá na própria empresa, né? Então tinha uma interação com os nossos colaboradores. A gente tem canal de denúncia anônima, 0800 e tudo. Então, por mais que a gente não tenha feito essa diligência, foi algo que nos pegou totalmente de surpresa. E tu sabe que Bento é uma cidade que não é gigante. A gente acostuma que as pessoas têm noção do que está acontecendo quando tem algo errado. Então realmente foi algo inesperado, totalmente de surpresa. E agora, claro, a gente faz um trabalho, muito mais diligente, com compromissos muito mais rigorosos, que foram acordados junto ao Ministério Público do Trabalho, e até junto a entidades que trabalharam conosco nessa plano de melhorias.
ADEGA: Você na quinta-feira passada firmou um TAC (Termo de Ajuste de Conduta) com o Ministério Público. Você pode descrever o que é isso e o que foi feito?
Maurício: Exatamente. Foi na quinta de noite. Foram várias audiências, essa última foi das 14h00 às 22h00. Foi uma audiência bem pesada, mas importante e necessária. E esse TAC, que é um termo de ajuste de conduta, nada mais é do que um plano de como que a gente pode inibir que situações assim possam voltar a ocorrer. Então a gente basicamente tem um alinhamento com o ministério, que nos auxiliam nessa formação de medidas mitigadoras, que vão desde uma parte ampla de prestação de serviços. O que a gente tem que exigir. O que a gente tem que fazer. Quando que a gente deve fiscalizar. O que a gente deve fiscalizar. Até uma situação ampliada, voltada também para a parte de produção de uvas junto aos produtores.
Como eu disse, esse prestador de serviço não atendeu. Ele é um prestador que existe no mercado. Ele oferece prestação de serviços nesse sentido, e ele ofereceu serviços também para outras empresas. Ele possuía mais de um alojamento na cidade que atendem diversos segmentos de mercado.
Então esse termo de acordo justamente traz esses compromissos. São essas medidas importantes, bem rigorosas, e que a gente atendeu com muita prontidão. Claro que existe nesse TAC também a reparação de danos, especialmente por conta de que o próprio dono da empresa prestadora de serviços não fez um acordo. Ele caminha por uma ação civil pública porque ele tem a intenção de, pelo menos nas declarações que ele faz publicamente... ele tem intenção de demonstrar que os fatos não aconteceram daquela maneira, mas isso não cabe a nós. Nossa parte, aqui é basicamente trabalhar melhorias da nossa empresa. Como eu disse, houve uma falha por nossa parte. A gente precisa ser mais diligente nesse aspecto. A gente vai ser mais diligente nesse aspecto. E a gente aceitou esse acordo voluntário com o Ministério Público do Trabalho. A gente não era obrigado a seguir com o TAC, mas a gente seguiu dessa maneira para demonstrar a boa fé das empresas, para demonstrar a nossa vontade de trazer o amparo para esses trabalhadores. Vontade de reescrever uma história que ficou muito pesada para as vinícolas. Então a gente procurou fazer através de todo esse movimento que foi muito colaborativo junto a administração pública, junto às suas entidades, justamente um desejo de reparo social e um desejo de melhorar daqui para frente.
ADEGA: Na minha opinião, a principal preocupação ou a preocupação inicial devia ser o amparo aos trabalhadores que passaram por essa situação degradante. Como é que isso se deu?
Maurício: Então, Christian, logo no segundo ou terceiro dia depois da fiscalização, o próprio Ministério Público entrou em contato com as empresas para ver se a gente poderia recolher as verbas trabalhistas para que os trabalhadores não ficassem sem seus rendimentos depois de uma rescisão contratual. As vinícolas prontamente acertaram esse contrato que tinham com a Fênix. Uma pessoa do Ministério Público ficou ao lado da contadora da empresa Fênix, e no momento em que as vinícolas fizeram o depósito, imediatamente conferiu que esse depósito foi repassado para os trabalhadores dentro das cláusulas contratuais dos encargos e todas as exigências trabalhistas. Isso nos trouxe muito conforto. Então, inicialmente, tivemos esse pagamento de verbas trabalhistas, que nada mais é do que a quitação salarial da parte de encargos e recolhimento de FGTS, enfim, todas as questões relacionadas. E nesse acordo, justamente com o TAC, uma reparação de danos individuais para os trabalhadores. De novo, não houve um movimento por parte do prestador de serviço, mas as empresas falaram "Não tem problema, a gente vai fazer a nossa parte, independente do papel que a gente seja, a gente tem que demonstrar a nossa boa fé, a nossa integridade. Então a gente dividiu esse acordo. Não fomos nós que desenhamos o acordo, mas basicamente essa distribuição de verbas que somou ste milhões de reais no TAC. Dois milhões é de um reparo a danos morais individuais desses trabalhadores, cujo pagamento vai ser agora. Até isso foi acordado, ele é praticamente imediato. Então essas pessoas além das suas verbas trabalhistas, já recebem essa questão indenizatória relacionadas à sua questão individual.
ADEGA: Dos 7 milhões, só 2 milhões vão para os trabalhadores? O que acontece com os outros 5 milhões?
Maurício: Os outros 5 milhões? Eles são destinados a fundos que vão ser oportunamente indicados pelo Ministério Público do Trabalho. São fundos sociais, entidades sociais que visam o desenvolvimento desses trabalhadores, de regiões. Mas por enquanto a gente não tem mais informações.
ADEGA: Mas isso não beneficia diretamente os trabalhadores.
Maurício: Não, não... Diretamente, justamente esses danos individuais. Então, essa separação que nos foi colocada.
ADEGA: OK. Uma das coisas que me intriga e eu acho que é importante deixar claro, é que todo o empresário/contratante é responsável sobre como os trabalhadores são tratados dentro do seu ambiente de trabalho, e depois ele é corresponsável por todas as questões trabalhistas que envolvem pagamento e outros direitos no caso de insolvência do contratado. Nesta situação, caso a Fenix não honre isso, como não fez, vocês têm a responsabilidade de cumprir com pagamento dos trabalhadores. É isso né?
Maurício: Nesse caso, Christian, o Ministério Público fez o bloqueio de contas desse prestador de serviço. Ele conseguiu fazer o congelamento de valores para ter essa garantia de pagamento de danos por conta do próprio empregador, que no caso é a Fênix. Então, nesse papel, pela empresa, e aqui novamente eu trago o esclarecimento não no papel de quem quer se eximir de situação. A gente tem um legado, a gente tem uma empresa, uma história. E se a gente falhou, a gente vai admitir essa falha, a gente vai trabalhar em cima dela, melhorar. E é esse o nosso papel, ser uma empresa cada vez melhor. Mas sim, existe esse bloqueio de valores e que foi promovido pelo Ministério Público. Existe uma ação em curso que vai definir a dimensão da culpa desse prestador de serviços. Mas independente disso, a gente já tem esse papel de fazer esses reparos aos trabalhadores. Então, essa questão dos danos individuais tem uma relação direta ao caso de nós termos contratado esses serviços.
ADEGA: Eu pergunto isso porque, como empresário, a gente tem que ser consciente e responsável sobre o que acontece nos nossos negócios e os riscos envolvidos nisso. Eu achei muito interessante a entrevista que Vanius Corte, gerente do Ministério do Trabalho de Caxias do Sul, deu para a Rádio Gaúcha. Onde eu compreendi que essa solidariedade se dá no âmbito das obrigações trabalhistas. Mas lendo o TAC tive a impressão de que este talvez tenha sido um acordo histórico, pois demonstra claramente uma interpretação de responsabilidade do contratante sobre toda cadeia produtiva e, num certo sentido, dentro de todos os males, isso que aconteceu amplia muito a responsabilidade dos empregadores. Agora está compreendido que os empregadores têm uma responsabilidade de participar da averiguação ponta a ponta. É assim que você vê também?
Maurício: Eu acho que esse TAC, sim, deixa claro o que a empresa deve fazer melhor, deve fazer mais. Talvez algumas situações que não são tão claras assim no aspecto dos dispositivos legais. E claro que ali trazem para nós situações que não eram exigências de legislação. Por exemplo, fazer uma auditoria junto aos nossos produtores para ver se a contratação por parte dos produtores atende à questão trabalhista, ou a questão de segurança dos trabalhadores. Esses produtores são micro-empresários, e todos têm a sua responsabilidade nesse papel. Agora a gente tem essa frente também de controle, de sensibilização, de conscientização. E eu acho que é ok, faz parte. Como eu disse, a gente tem que ser uma empresa mais propositiva, mais construtiva. Se a gente tem condições de oferecer algo mais para a sociedade, uma garantia, a gente vai assumir esse compromisso de maneira proativa, realmente de coração aberto. Porque o nosso maior interesse agora é preservar um legado que foi construído em 112 anos, com muito trabalho, muita dedicação, muita honestidade. E se não fosse por isso, a gente não teria chegado até aqui. Então é uma dimensão maior de controle, sim, mas eu tenho certeza que é algo que vai fazer d empresa também ser um protagonista ainda maior em coibir situações semelhantes.
A gente não era obrigado a seguir com o TAC, mas a gente seguiu dessa maneira para demonstrar a boa fé das empresas, para demonstrar a nossa vontade de trazer o amparo para esses trabalhadores.
ADEGA: Eu vi que deu bastante confusão de interpretação na carta aberta da Salton o trecho que diz que a celebração do termo não significa e não deve ser interpretada como uma assunção de culpa. Isso foi retirado do Termo de Ajustamento de Conduta elaborado com o Ministério Público. Quem fala isso são vocês ou é o Ministério Público do Trabalho?
Maurício: Exatamente. Christian, a gente fica muito receoso num primeiro momento, em levar algumas informações que possam ser de alguma maneira equivocadas. Mas de fato é essa situação, o acordo foi lavrado e essa frase não fomos nós que escrevemos. A gente esteve lá, nessa ação voluntária, uma intenção genuína de fechar um acordo, até para trazer esse amparo para os trabalhadores. Essa era a nossa grande preocupação, né? Mas sim, essa cláusula foi uma cláusula de fechamento que foi escrita pelo Ministério Público do Trabalho. Não fomos nós, vinícolas, que lançamos por conta, uma isenção de compromisso. Então ficou registrado e eu acho que mencionaste também uma entrevista do Vanius, que é do Ministério do Trabalho. Ele fez uma coletiva de imprensa, e seus agentes também tentaram esclarecer um pouquinho na alguns fatos ocasião, e o Vanius usou uma palavra que foi interessante. Ele falou "vocês não podem demonizar as empresas que contrataram os serviços, né?". Claro que existe aqui um ponto que é um compromisso de conhecer melhor a estrutura do seu prestador de serviços, do alojamento. Claro, e concordo. A gente não está se esquivando de responsabilidades, mas ele tentou trazer também um pouco de que não se poderia demonizar as vinícolas, até porque não fomos. Nós que contratamos o serviço da Fênix e os maus tratos aconteceram sem nosso conhecimento. Mas aparentemente a gente acabou sendo alvo de pedras.
ADEGA: Vocês pagavam menos por esses trabalhadores?
Maurício: Não Christian, a gente tinha um contrato com valores mensais que chegavam a R$ 6.500, onde incluíam a parte de transporte, de alimentação, dos rendimentos e dos encargos relacionados, né? Então, toda essa situação que envolve uma contratação de serviços, a gente foi bastante diligente. Eu não vou assumir uma culpa nesse sentido, porque a nossa falha foi não ter analisado o alojamento nas dependências do terceiro. O transporte desses trabalhadores à empresa era oferecido pelo próprio prestador de serviços. Não éramos nós que íamos buscar no alojamento e levar de volta. Eles chegavam já com uniforme, acessavam a nossa portaria, se fazia o registro desses trabalhadores, se garantia que eles estavam com os EPIs...
ADEGA: Então vocês pagavam para Fenix R$ 6.500 por trabalhadores, por mês?
Maurício: Exatamente. Você tem uma noção, a safra de uva é efêmera. A gente (sic) tem num caderninho onde ela dura de janeiro a março, mas ele é um caderninho em que não está relacionado vários fatores climáticos. Você pode ter um excesso de chuva, que pode desencadear alguma questão de sanidade do vinhedo. Ou a gente pode ter uma questão de uma seca que pode causar um estresse hídrico da planta. Isso tudo são fatores que mudam a linearidade de uma colheita. Então, é muito difícil que a gente fizesse todo um planejamento, organizar a maneira de trabalhar diferente para a safra. Então a gente também trabalha com uma frente de mão de obra temporária. Essas pessoas, desempenham outras funções dentro da empresa durante o período de safra. E essas ficam nas próprias casas da Salton. Possuímos essas casas, e é uma caminhada de 100 metros, porque as casas ficam muito próximas da vinícola. A alimentação acontece junto com todo mundo. Sempre almoçamos juntos no refeitório, então são situações um pouco diferentes. Mas nesse caso a gente também recebeu a fiscalização. E recebemos um relatório positivo das condições de alojamento que a gente oferecia.
ADEGA: Eu já participei de colheitas em outros lugares do mundo. Obviamente que não por 30 dias ou 90 dias, mas eu encontrei muita gente nesse processo de colheita. E tinha gente aposentada, e tinha muito estudante, sobretudo na Europa, que queriam fazer um dinheiro extra para depois poder viajar e curtir um pouco mais a vida. É claro, que infelizmente, também encontramos trabalhadores que vêm de áreas da Europa com menos emprego ou menos possibilidade. As pessoas têm dificuldade de compreender que em uma parte do ano a vinícola fica praticamente parada, e na colheita tudo acontece de forma muito caótica. Caótica não quer dizer que não seja organizada, mas enfim, é muita coisa acontecendo, e muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. Isso demanda um contingente extra de pessoas. Porque você não pode falar eu vou colher essa parte do vinhedo agora e aquela outra espera um pouquinho para amadurecer. Tudo acontece ao mesmo tempo! E isso acontece também em outras culturas, quer seja de frutas, quer seja do café ou legumes. É um período dos mais interessantes, onde você vê como as coisas dentro de uma vinícola, seja grande ou seja pequena. E aí entra a questão que os pequenos também sofrem com a necessidade de captar mão de obra extra para realização da colheita. E eu acredito que dificilmente vão poder ter o mesmo comportamento burocrático de uma empresa grande como vocês. Eu não sei como isso vai afetá-los. Aliás, o que aconteceu não afetou só as três empresas. Isso acabou reverberando também em toda a cadeia, inclusive no turismo da região. Isso foi muito triste de ver. Eu queria agora saber como vocês sentiram isso. Eu confesso que quando eu li sobre o caso pela primeira vez pensei "eu conheço eles, eu conheço a família..." Você entrou para trabalhar na vinícola em 2005 e foi o ano em que eu lancei ADEGA, 18 anos atrás. Eu tive a oportunidade de conviver com vocês como empresa e como família dezenas de vezes. Eu esperava que quem tivesse tido essa mesma oportunidade de convivência pensasse “isso não é possível, preciso apurar isso..." Seria uma decepção enorme saber que vocês estariam escravizando as pessoas para colher uva e fazer vinho economizando dinheiro. Mas essa foi a imagem que se propagou? Como é que vocês se sentiram com isso?
Maurício: Eu que tenho que até me segurar um pouquinho pra não emocionar... (Mauricio tenta conter as lágrimas) Mas, caiu o nosso chão, né Christian? Porque a gente sabe a trajetória da empresa... (pausa para respirar) A gente sempre foi uma empresa muito equilibrada e tu teve a oportunidade de conversar conosco sobre diversas iniciativas que sequer são relacionadas a uma questão de lado econômico da empresa. Porque a gente sempre acreditou no equilíbrio. A gente tem que manter bons relacionamentos... (nova pausa para respirar) a gente tem que manter o ambiente de trabalho onde as pessoas se sintam motivadas em seguir com a gente. A gente precisa mostrar que a gente pode ser mais do que simplesmente um negócio que gera emprego, que gera imposto. A gente pode fazer a diferença. Então a gente buscou pautas climáticas. A gente buscou pautas ambientais, a gente divulgou há pouco tempo, de um animal que estava em extinção, o gato Palheiro. Não tem nada a ver com plantar uva. Não tem nada a ver com fazer dinheiro em cima de vinho. A gente quer ser melhor. Então, trouxe aqui exemplos. A empresa sempre fez diversas ações sociais junto à cidade, no contexto de onde a gente está atuando. E isso caiu. Caiu no nosso chão... Sabe? A gente foi à lona pra dizer a verdade. Então tem sido um trabalho de resgate. E eu coloco aqui sempre. E eu digo em voz alta que a gente não se omite. A gente falhou. A gente deveria ter sido mais diligente. A gente vai fazer melhor, a gente vai demonstrar o fazer melhor com ações. O nosso compromisso, que a gente firmou com parceiros, que a gente firmou com o Ministério Público do Trabalho. Eu digo pra turma que a confiança na nossa história, na nossa trajetória, ela vai ser demonstrada (nova pausa para se recompor) daqui pra frente. Se a gente honrar com esses compromissos, com essas ações, demonstrando que a gente entendeu a gravidade da situação, e a gente entendeu. Mas é uma situação muito difícil para uma empresa que atua há 112 anos, e com valores muito positivos. A gente escutou muita coisa torta, muita coisa maldosa, muita história sobre a empresa... muito desenho... Sabe situações assim que não consegue entender... É maldade, é maldade sendo representada às vezes em palavras ou em desenhos. E que a gente sabe que que não condizem com a nossa essência. E quem nos conhece tem total segurança em representar isto. Tanto é que a gente teve um apoio de diversas frentes, muitas frentes mesmo... de todos os nossos fornecedores, de clientes nossos, através da ABRAS, ABAD, enfim, todas as associações relacionadas, a própria ABRAB. Todos nos apoiaram, porque conhecem a empresa e sabem que você não pode justamente... Vou parafrasear o Ministério do Trabalho, demonizar as empresas porque cometeram uma falha em não ser mais diligentes junto as dependências de um terceiro. Mas isso não significa que a gente é maldoso, que a empresa teve más intenções, que ela olhou para o lado econômico, para tentar garantir uma economia. Não é verdade isso! Não é verdade! O nosso interesse é a sustentabilidade do negócio. A gente quer que a empresa continue por mais 100 anos, e não vai ser o resultado de um ano que vai mudar isso. A gente teve anos bons, a gente teve anos ruins, a gente errou em decisões anteriores, a gente acertou. Isso faz parte do jogo, né? O que a gente sempre espera é que a gente construiu com um legado que é positivo, e valorizado por muitas pessoas... que ele tenha uma perenidade. Então uma questão econômica é importante... é Importante equilíbrio econômico da empresa para o negócio. A gente tem que estar robusto e sustentável nesse aspecto. Mas não é só isso. E nunca foi só isso pra gente, né? A gente sempre foi uma empresa equilibrada e é nisso que a gente acredita. Então caiu nosso chão, mas a gente segue. Vamos lá, reunindo forças com muito apoio.
ADEGA: Quantas famílias sua empresa representa hoje entre funcionários diretos e produtores de quem vocês compram uva para elaboração dos vinhos?
Maurício: A nossa família estendida é de quase duas mil pessoas, entre colaboradores, produtores de uva, entre representantes comerciais da empresa, entre acionistas... Então é uma extensão muito grande. E essas pessoas... elas dependem da empresa. Dependem. São pessoas que seu provento, vêm da empresa, do sucesso da empresa. É uma cadeia que funciona nesse sentido. Hoje está tendo uma convenção agora às dez horas, com todos os nossos fornecedores. A gente faz todo ano uma apresentação dos resultados, sempre muito transparente, do nosso planejamento, das nossas ações. A gente fala das pautas. A gente tem um projeto que é anual da empresa, que é o legado social. Ele acontece sempre no aniversário da empresa. A gente reúne o apoio dos nossos parceiros e a gente reverte sempre para a comunidade. A gente faz pesquisas com a comunidade para entender áreas de vulnerabilidade onde a gente pode direcionar o recurso. Então vai desde a educação, segurança pública... A gente vai direcionando isso. Então essa apresentação que a gente faz com os nossos parceiros transcende o lado operacional. A gente conversa sobre coisas que a gente pode melhorar.
ADEGA: Eu vou falar até uma coisa engraçada. A gente teve uma conversa no começo do ano passado em que você queria me mostrar o projeto de ESG de vocês. Foi a primeira empresa de vinhos aqui no Brasil a querer conversar com a revista ADEGA sobre isso. Eu queria falar de vinhos e você queria falar de ESG. E depois, eu gostei tanto que te convidei pra participar do painel de sustentabilidade lá na ProWine no fim do ano. E isso me causou problema, porque eu falei que você tinha dez minutos para falar e você falou por 35 minutos porque tinha uma sequência enorme de slides, tanta coisa pra compartilhar...
Maurício: O material é muito grande... (e Maurício relaxa e dá um sorriso pela primeira vez na conversa)
ADEGA: Muito grande! Mas foi que foi bastante positivo. E eu confesso que, como alguém que trabalha na imprensa... fiquei chocado com o que aconteceu, e de ver como a história ou como a narrativa saiu do controle. Como o julgamento veio antes de qualquer apuração. E o que se passa com a sociedade no Brasil e no mundo. Tirando os aproveitadores, eu acredito que a sociedade se indigna e tenta mudar o Brasil para o bem. E nesse afã a primeira coisa que faz é acusar, demonizar, como você falou. Isso para mim serviu como ser humano também. Porque isso deve acontecer em julgamentos que eu faço sobre gente que eu não conheço. Em segundo lugar, confesso que me deu um pouco de receio de entrar neste tema como imprensa, como jornalismo. A tentação é esperar um pouco. Não entrar no meio do fogo cruzado. Aguardar para ver mais coisas... Mas como disse meu amigo Adalberto Piotto "como imprensa, você tem uma obrigação de fazer" Infelizmente estou vendo a imprensa mimetizando o comportamento das redes sociais. Mas daí quando eu vi o trabalho que a Rádio Gaúcha fez, e o trabalho que o Valor Econômico fez, me deu um pouco mais de esperança. E depois quando eu vi as imagens daquele espetáculo revoltante de manifestantes atacando a sua loja em São Paulo, eu pensei "a que ponto que a sociedade brasileira tá chegando. Isso é uma doença. Isso não é mais um vício, é uma doença social que a gente está vivendo". E você foi alvo. Você, a Luciana, toda a família, todos os funcionários que foram hostilizados sem encontrar oportunidade para falar em território sem julgamento prévio... Hoje você tem essa experiência? Como é que as pessoas podem e devem reagir numa situação dessas?
Maurício: A gente entendeu que num primeiro momento deveria atender as autoridades públicas em termos de esclarecimento. Então, a gente respeitou. Foi doloroso para nós, mas foi muito mais doloroso para os trabalhadores. Não há dúvida alguma. Mas a gente tinha que esclarecer primeiro com a administração pública. Eles que estavam fazendo uma averiguação de documentação, queriam entender a situação. Então a gente teve que respeitar uma questão de processo, né? E agora a gente tem, talvez, algum conforto para falar um pouco mais. Para tentar esclarecer com muito cuidado para que a gente não tire o nosso time de campo. A gente tem um papel nisso, como eu disse a gente teve uma falha, a gente vai trabalhar em cima disso, Mas, ao mesmo tempo a gente precisa ter a oportunidade de esclarecer um pouquinho. Porque as situações não foram assim como muitas vezes foram faladas. Então a gente está tendo esse momento agora de conversar, procurar esclarecer, demonstrando uma disposição das empresas em contribuir, em colaborar e amparar esses trabalhadores. E foi o que a gente fez, foi a nossa iniciativa. Tanto que eu acredito que tenha sido, dessas situações que são difíceis e pesados, uma das respostas mais rápidas que se teve até hoje em termos de TAC. Porque houve total colaboração das empresas. Nenhuma hesitou, sabe? Será que esse é o caminho? Será que a gente não deveria guardar? Não. A gente tem que demonstrar a nossa boa fé. A gente falhou, mas a gente não perdeu... não é terra arrasada do que a gente construiu até hoje. Então, essa etapa agora Christian, ela é muito delicada. A gente procura sempre demonstrar a nossa solidariedade aos trabalhadores, a sociedade, demostrar o nosso compromisso em melhorar, esclarecendo um pouco os fatos, mas não no sentido de se vitimizar, porque a gente não é vítima disso. A gente simplesmente precisa ter pontos de de esclarecimento que talvez elucidem melhor alguns pontos. E como disse, mudar essa história daqui para frente, com ações. Ações que vão falar muito mais do que as palavras. E é esse o nosso trabalho a partir de agora... assumir os compromissos, desempenhar esses compromissos, dando espaço para que o tempo e essas iniciativas trabalhem a favor das empresas, no sentido de demonstrar a integridade que nós, internamente, temos total certeza de que essas empresas possuem.
ADEGA: De qualquer forma, o prejuízo causado a vocês, não falo só de eventuais quedas de faturamento, mas o prejuízo de imagem... eu nem sei como avaliar isso.
Maurício: Exatamente. É uma situação reputacional importante na crise que a gente enfrenta. Mas assim Christian, a gente recebeu apoio de muita gente mesmo. Porque acho que nesse período a gente também demonstrou para as pessoas que nós somos pessoas do bem. Então eu acho que tem muita gente que acredita na empresa e sabe que essa é uma situação, que talvez traga uma má mancha para a nossa história, mas tem muita gente estendendo a mão para que a gente consiga se reerguer (Mauricio se emociona de novo)
ADEGA: Maurício, obrigado pela conversa. Vai lá pra sua convenção. Você tem muito a trabalhar.
Maurício: Obrigado pela oportunidade de crescer e pelo apoio. Eu sei que tu gosta bastante da gente.
ADEGA: Eu gosto mesmo. Agora não tenha dúvida que se visse que vocês estavam errados, eu estaria sendo muito duro com vocês. Eu conheço vocês e a forma como conduzem as coisas. Sobretudo essa nova geração de vocês, que assumiu a empresa em um dos melhores processos sucessórios que eu já vi acontecer numa empresa no setor vitivinícola aqui no Brasil.
Maurício: Obrigado. Bem… Valeu