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Fermentação alcoólica é o que faz o vinho ser vinho mesmo. Entenda suas variações e o resultado que aparece na taça

por Marcel Miwa

DIvulgação

A fermentação pode ser considerada o processo chave na produção do vinho. Não existe vinho sem que ocorra a fermentação alcoólica do mosto de uvas e a própria lei 7678/88, que rege a produção de vinhos, em seu artigo 3º, caput, assim conceitua: "Vinho é a bebida obtida pela fermentação alcoólica do mosto simples de uva sã, fresca e madura." Portanto, vinho somente pode ser produzido a partir de uvas, não de outras frutas.

Quando nos referimos à fermentação (alcoólica) no vinho, devemos recordar de algumas aulas de química do colegial. Pela ação de enzimas liberadas pelas leveduras, em ambiente anaeróbico (sem oxigênio), os açúcares são transformados em álcool e gás carbônico, liberando também energia (calor).

O que também pode ser descrito pela equação: C6H12O6 a 2C2H5OH + 2CO2 Podemos verificar que cada molécula de açúcar (C6H12O6), glucose ou frutose, produz duas moléculas de etanol e duas de gás carbônico.

Outros alcoóis também são produzidos em quantidades menores e são responsáveis por oferecerem maior complexidade aromática e de sabor. Convertendo as unidades de medida, chega-se ao resultado que 17 gramas de açúcar por litro é capaz de produzir 1% de álcool pelo mesmo volume.

Esta conversão é particularmente útil para o enólogo checar como o amadurecimento (do açúcar) da uva na videira está se desenvolvendo e se chegou ao nível desejado.

Leveduras

As principais responsáveis pela fermentação são as leveduras. Estes fungos, assim como ocorre em diversas famílias de seres vivos, dividem-se em muitos gêneros e espécies. E cada espécie em várias cepas.

De forma análoga, poderíamos comparar com as uvas, em que vinífera seria o gênero, a Cabernet Sauvignon seria uma espécie e determinado clone de Cabernet seria a cepa. As leveduras são encontradas livremente na natureza e estão prontas a agir sobre os açúcares.

Para se produzir o vinho, algumas são desejáveis e outras não. Dentre as leveduras que agem no mosto, a Saccharomyces cerevisiae é a mais comum e é a mesma utilizada na produção de cervejas e na panificação.

Mas também podemos citar a Saccharomyces bayanus - normalmente associada à flor na produção de Jerez -, Brettanomyces (já citada no artigo sobre os defeitos no vinho na edição 42 de ADEGA), Candida, Pichia etc.

Bordeaux antes de Pasteur
Somente na segunda metade do século XIX, os mecanismos de fermentação foram compreendidos e detalhados por Louis Pasteur (após até a famosa classificação de Bordeaux de 1855). Desde então, muitos avanços foram feitos para se compreender e controlar seus mecanismos de atuação.

A maior presença da S. cerevisiae deve-se ao fato de ser mais resistente ao álcool e ao SO2. Outras espécies possuem menor tolerância a esses dois elementos, porém não podemos ignorar suas atuações e contribuições.

Cada espécie possui a própria série de enzimas que farão a "digestão" dos açúcares. Como se pode imaginar, cada uma liberará aromas e sabores únicos ao vinho, aumentando sua complexidade.

Genoma da levedura
Devemos lembrar que a principal levedura envolvida na produção de vinhos, a Saccharomyces cerevisiae, foi um dos primeiros organismos superiores a ter o genoma mapeado. Naturalmente, a ciência conseguiu desenvolver a mesma levedura com diferentes níveis de eficiência.

#Q#

As leveduras são organismos bastante versáteis, uma vez que conseguem sobreviver sem oxigênio (de acordo com a equação descrita anteriormente) e também em ambientes com oxigênio. Em ambiente aeróbico, elas atuam sobre os açúcares, porém o resultado é água e gás carbônico.

A prova de que as leveduras preferem essa situação é a grande velocidade que se reproduzem na presença de oxigênio. Eis também a explicação para razão de, em alguns casos, o enólogo iniciar a fermentação com os tanques abertos, com alguma influência de oxigênio.

Porém, antes, o enólogo se depara com a questão de utilizar leveduras naturais (indígenas) ou comerciais. Os produtores de vinhos biodinâmicos e naturais são adeptos da primeira opção.

Como cultivam as videiras em ambiente equilibrado, limpo de insumos químicos, acreditam que o equilíbrio também pode ser encontrado na flora microbiológica, que por sua vez faz parte da expressão do terroir. Do outro lado temos as leveduras comerciais.

Com elas, diminuem-se os riscos de a fermentação se estagnar, inibe-se a ação de leveduras selvagens indesejadas e, o mais polêmico, consegue-se, de certo modo, desenhar o vinho que se deseja produzir. Tanto que os nomes comerciais de alguns são Brunello di Montalcino, Montrachet, Champagne.

A famosa crítica de vinhos Jancis Robinson, em um de seus artigos no Financial Times, adverte seus leitores que na próxima taça que degustarem lembrarem- se que o caráter do vinho pode ser atribuído a um fator desconhecido tão influente quanto às próprias uvas - que consegue direcionar aromas, acidez, álcool, enfim, vários elementos que o degustador analisa numa prova.

Temperatura

Como já vimos, na fermentação alcoólica há também liberação de energia, em forma de calor. A temperatura atingida durante a fermentação atua como fator de influência no estilo do vinho. Em linhas gerais, em temperaturas mais altas de fermentação (cerca de 20o a 32oC) privilegia-se a extração de aromas e dos componentes de cor das cascas das uvas.

Enquanto que, em temperaturas mais baixas (por volta de 10o a 18oC), objetiva-se a retenção dos aromas voláteis do mosto. Essa é a principal razão para os vinhos brancos serem fermentados em temperaturas mais baixas e os tintos em mais altas.

Em países setentrionais, mais frios, o controle da temperatura é facilitado pelo clima local. Em condições climáticas mais quentes, ou em tanques de fermentação muito grandes - em que a temperatura ambiente não é suficiente para climatizar todo o mosto -, instalam- se cintas em volta do tanque, por onde circula um líquido refrigerante capaz de trocar calor com o mosto, tornando fácil o controle.

Interrupção da fermentação

A fermentação pode se interromper por diversas formas. A mais óbvia ocorre quando se esgotam os açúcares do mosto. A fermentação foi completa e não existem açúcares residuais. Nesse caso, não existe risco do vinho refermentar.

O aumento da temperatura também consegue cessar a atividade das leveduras. É o processo conhecido como pasteurização. O mosto é aquecido em temperatura próxima de 95oC por alguns segundos, matando-as.

Numa forma oposta, a redução da temperatura pode diminuir a atividade das leveduras até o ponto de cessá-las, perto de 5oC. No entanto, esse método não é definitivo e, uma vez que o mosto voltar a ser aquecido, as leveduras voltarão a agir. É o procedimento comumente utilizado no método de espumante Asti

A própria pressão do CO2 pode ser uma forma de se interromper a fermentação. O CO2 resultante da fermentação, caso retido no tanque até o ponto de 7 atmosferas, consegue cessar a atividade das leveduras. Porém, como no procedimento anterior, não é definitivo. Ao retornar às condições normais de pressão, as leveduras voltarão a atuar.

Outra maneira prática para se interromper a fermentação é filtrar o mosto. Filtros de membrana com poros minúsculos retêm as leveduras, deixando o mosto livre do risco de refermentação. Porém, ao custo de retirar também alguns compostos aromáticos do vinho.

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Um procedimento que vemos com certa facilidade é a fortificação. Com a adição de um destilado durante a fermentação, o teor alcoólico se eleva de forma que as leveduras não conseguem sobreviver. É o que vemos no Vinho do Porto, no Vinho Madeira e nos Vins Doux Naturels. Essa lista está longe de esgotar as hipóteses de interrupção da fermentação.

Temos também a aplicação de SO2, a acidez muito alta, o excesso de açúcares, a botrytis; fatores que talvez não consigam interromper por si só a fermentação, mas que dificultam a atuação das leveduras. O intuito é apenas mostrar as inúmeras possibilidades que o enólogo pode considerar ao se produzir um vinho.

Casos especiais

Chaptalização

Chaptalização é um método de enriquecimento do mosto com açúcar, seja de cana-de-açúcar, de beterraba etc. O desenvolvimento desse método é creditado a Jean-Antoine Chaptal, químico e ministro do Interior de Napoleão Bonaparte.

Com a adição de açúcar ao mosto, eleva-se o potencial alcoólico do vinho, que ganhará estrutura e textura. Porém, o conjunto deve conseguir acompanhar esse enriquecimento. Em países como Itália e Espanha, não se permite a aplicação desse processo, mas, em algumas regiões da França e no Brasil, permite-se até certos limites.

Espumante

Nos espumantes, podemos verificar um caso especial de fermentação. Na realidade, um caso de duas fermentações alcoólicas. Na primeira, produz-se o vinho tranquilo, seguindo a forma ordinária de produção (branco ou tinto). Na segunda fermentação é que o gás ficará retido, provocando a espumatização.

Isso pode se dar na própria garrafa (método tradicional) ou em tanques de fermentação pressurizados (método charmat). Para essa segunda etapa ocorrer, adiciona-se o chamado licor de tiragem, em que estão as leveduras, os açúcares e os nutrientes suficientes para gerar o perlage desejado.

Maceração carbônica

Este método é bastante utilizado na produção de vinhos de caráter mais frutado, para serem bebidos jovens, caso do Beaujolais. Para que esse método seja conduzido com sucesso, as uvas devem chegar inteiras (cachos inteiros) ao tanque de fermentação.

O tanque é preenchido com gás carbônico (daí o nome) e a fermentação inicialmente não ocorrerá por ação de leveduras; ela se dará de forma intracelular, por ação das enzimas presentes na própria uva até que se chegue ao teor de 3% de álcool.

Nesse ponto, os típicos aromas de banana e tutti frutti já foram liberados e, devido à alta temperatura (entre 30o e 35oC), a extração de cor foi beneficiada. A partir daí, o mosto estará pronto para continuar a fermentação alcoólica normal, sob a ação de leveduras.

Tokaji Eszencia

O excesso de açúcar, ao contrário do que se possa imaginar, pode dificultar e até inviabilizar a fermentação. Note o caso do Tokaji Eszencia. Este vinho de sobremesa húngaro pode facilmente conter mais que 500 gramas de açúcar por litro e acidez muito alta para equilibrar. A fermentação pode durar tranquilamente 10 anos (sim, 10!) para se chegar a meros 2 a 4% de álcool.

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