Entrevista

Jean-Charles Cazes revela como administrar um grande Château de Bordeaux

Os segredos das três decisões

por Por Christian Burgos

 Aos 42 anos, Jean-Charles Cazes controla um pequeno império. Sua responsabilidade é enorme, ainda mais levando consigo o mesmo nome do bisavô, que em 1939 assumiu o Château Lynch-Bages, dando início à saga da família na vitivinicultura em Bordeaux.

Se o ancestral era padeiro em Pauillac antes de resolver produzir vinhos, Jean-Charles, por sua vez, estudou economia e finanças antes de partir para a administração dos negócios da família. Mas sua paixão é o surfe, tanto que, dias antes desta entrevista concedida a ADEGA, ele estava nas ilhas Maldivas com amigos surfando. Porém, mesmo em Bordeaux, Jean-Charles se arrisca nas ondas do mascaret (macaréu ou pororoca – fenômeno causado pelo choque das águas do mar com um rio) do Gironde.

Com seus 20 e poucos anos, contudo, o francês era costumeiramente visto no litoral norte paulista, em Ubatuba, Maresias ou Guarujá, pegando suas ondas. Aliás, antes mesmo de morar no Brasil por dois anos, Jean-Charles já lidava bem com a língua portuguesa, pois a família de sua mãe, Thereza, esposa do lendário Jean-Michel Cazes, era de Portugal.

No entanto, para poder aproveitar seu tempo livre surfando, Jean-Charles precisa, antes de tomar algumas decisões importantes, cruciais para o desenrolar dos negócios da família, que atualmente não se restringem apenas ao mítico Château Lynch-Bages, em Pauillac, mas ao Château Ormes de Pez, em Saint-Estèphe, ao Château Villa Bel-Air, em Graves, ao Domaine des Sénéchaux, em Châteauneuf-du-Pape, ao Domaine L’Ostal Cazes, em Minervois, além dos projetos Roquette & Cazes (joint-venture com a família Roquette, no Douro) e Michel Lynch, e do hotel e restaurante Château Cordeillan-Bages, referência em estadia em Bordeaux.

Em bom português, Jean-Charles Cazes revela quais são essas decisões e os desafios de administrar um Château de Bordeaux.

Antes de assumir os negócios da família em 2006, você trabalhou um tempo no Brasil. Onde?                                                                                                                                                Trabalhei na parte financeira de uma empresa de autopeças francesa, Valeo. 

Isso não parece ter muito a ver com o mundo do vinho...                                                        Não tem nada a ver com vinho. É um mercado de custo, pressão, produções. Ao produzir vinho, estamos muito mais preocupados com a qualidade do que com os custos. Tentamos manter os custos em um nível razoável, mas o foco é o produto.

Era um castigo então?                                                                                                                      Não, treinamento. Fiz faculdade de economia e finanças e, na França, na minha época, você tinha que fazer serviço militar. Fui de uma das últimas gerações a passar por isso. Mas você podia substituir o serviço militar por uma estada mais longa em um país estrangeiro trabalhando para uma empresa francesa. Era um esquema chamado cooperação. Eu achei a Valeo, na época falava um pouco de português, pois minha mãe é portuguesa, e cheguei aqui em 1999. Comecei na Zona Norte de São Paulo, na Cantareira. Havia uma planta aqui e outra em Diadema. Adorei, mas adorei mesmo. O ambiente era legal, aprendi muitas coisas e mantive muitas amizades. Todos os anos venho me encontrar com a mesma turma. Na época, tinha 25 anos e fiquei até os 27. Foi a melhor época. Hoje volto sempre para o Brasil para trabalhar um pouco, mas mais para visitar os amigos. 

Como vê o mercado brasileiro?                                                                                                           O Brasil é um mercado importante, com dificuldade de penetração, mas os consumidores são internacionais, viajam bastante. Gostamos muito de receber os brasileiros que vão para a França. Meu pai veio para cá 30 anos atrás com amigos brasileiros, o músico Sérgio Mendes é um grande amigo, por exemplo. Desenvolvemos relações particulares com famílias, o que ajudou a divulgar a marca e ter visibilidade. O nosso hotel Cordeillan-Bages também se tornou muito conhecido.

Vocês investiram muito no turismo. De certo modo, foram pioneiros nesse quesito em Bordeaux?                                                                                                                                             Sim, meu pai achou que isso era importante muito cedo. Tinha que receber as pessoas direito, fazer as coisas com carinho. Quando ele chegou a Bordeaux nos anos 1970, ninguém viajava para ver vinhedos, era crise total, não vendíamos uma garrafa de vinho, a empresa estava indo a falência. Quando o mercado começou a se recuperar e as pessoas começaram a querer comprar e visitar, cada um que escrevia uma carta meu pai convidava para almoçar. Agora temos mais de 15 mil pessoas visitando a vinícola por ano. Chegou a um ponto em que minha mãe estava cansada de fazer a comida para todo mundo [risos]. Nos anos 1980, tivemos a oportunidade de comprar uma propriedade no vilarejo de Bages, ao lado de Lynch-Bages, e meu pai resolveu abri um hotel, que logo virou um Relais & Châteaux, com um restaurante duas estrelas. É um destino popular para quem quer visitar os vinhedos de Bordeaux.

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Qual seu papel nos negócios?                            Meu trabalho é fazer três coisas direito. Sou pago para tomar três decisões. Primeiro, escolher as datas da colheita. Geralmente confio no meu técnico, mas meu técnico precisa conversar comigo e explicar as coisas. Nunca tomei uma decisão contrária a meu técnico. A segunda, é estar envolvido no blend. Estou muito mais envolvido aí, pois não pode ser uma decisão apenas de técnicos. É uma decisão do dono, pois você vai definir não só o estilo do vinho que vai produzir, mas vai definir também o balance sheet: “Com isso você vai fazer o primeiro vinho; com isso vai fazer o segundo vinho e com isso vai fazer o terceiro vinho”. Dependendo de onde você coloca o limite, o negócio vai evoluir, se você faz mais primeiro vinho, vai ter mais lucro etc. Isso é uma decisão que tomamos com os técnicos, mas a última palavra é do dono. E a terceira decisão é a de preço de venda en primeur. É a decisão mais importante do ano e é puramente econômica. E nela estou sozinho. Resumindo, se tomo essas decisões bem, meus acionistas, minha família, podem dizer que faço um bom trabalho. O resto do tempo é um pouco de promoção, RH, orçamentos, vida normal de uma empresa.

Como toma a decisão dos preços?                                                                                                       É uma decisão da formalização do preço e do timing da divulgação desse preço. Você vai incorporando toda a informação que pode colher do mercado, vai conversando com os clientes, com as importadoras, que visitam durante o en primeur, discute muito com os negociantes de Bordeaux. É uma troca de informação muito importante durante um tempo. E conversa também com outros produtores, mas não com todos, mais com as afinidades que tem, amigos, tem alguns que você pode confiar mais do que outros. Há uma competição no mercado que faz com que você não possa conversar de todos os assuntos com todo mundo. Mas com os clientes e a “place de Bordeaux” é muita troca de informação. E você tem que cruzar a informação, pois, às vezes, um fala uma coisa e outro fala outra um pouco diferente. O preço é a resolução de uma equação com vários parâmetros. Você tem o preço do ano passado, o preço das safras de qualidade similar no mercado, o nível de estoque (se há muito, existe uma pressão para baixar os valores, ou para não subir), a crítica, tudo é uma soma que você tem que analisar e gerir.

Existe um benchmark de categorizar seu preço em relação a outro Château?                Não. Conheço quem funciona assim, mas acho super errado, pois você tem que atender o seu mercado, e o seu mercado é particular. Calcular o seu preço com referência a outro vai fazer com que você se equivoque. O mercado dos outros pode dar uma indicação do mercado geral, do ambiente, por isso o timing da saída é importante, pois você tem que ver o que está acontecendo e há uma ordem de saída não oficial: os pequenos primeiro, os Premier geralmente são os últimos, mas depende da dinâmica. A saída do preço de outros Châteaux pode dar uma indicação do mercado geral. 

O que acha do movimento de alguns Châteaux de guardar seus vinhos até o momento mais adequado e sair do sistema en primeur?                                                                        Posso entender as razões, mas acho que o mercado dos Grand Cru de Bordeaux é fundamentalmente um mercado de futuros, que tem uma dinâmica única durante dois meses e que funciona bem há muito tempo. O mundo inteiro só pensa em Bordeaux durante esse tempo. É uma rampa de lançamento espetacular. O DNA de Bordeaux é também um pouco especulativo. As pessoas gostam de saber que compraram esse vinho en primeur a 100 e agora está 150, 200. Isso ajuda a promover a marca. Continuamos com o pensamento que o produtor tem que focar na produção e não na especulação. Estocar vem com riscos e é o trabalho dos negociantes faz tempo. O que mudou agora é que o Château quer estar mais envolvido na distribuição, quer entender, e não só passar os vinhos para o outro. Acho que isso pode ser feito mantendo o sistema histórico de venda en primeur, que acho fundamental para a otimização dos números e difusão das marcas. Realmente, a única razão para esses Châteaux quererem guardar mais vinhos não é o consumidor, a ideia é a maximização das margens. Fazendo isso, o risco é diminuir a visibilidade dos seus vinhos. Ter uma distribuição forte e que dá lucro é também o melhor jeito de promover o seu vinho. No final do dia, o distribuidor está interessado em falar bem de um vinho que ele consegue achar, vender bem e fazer lucro. Se é um vinho que se vende mal, pois o preço do Château está sempre no limite, sem deixar margem para o distribuidor, é um vinho difícil de achar, aí ele vai se desinteressar.

Então essa seria uma dinâmica confortável para os produtores?                                     O poder está mais na mão do Château do que na do negociante. Nos anos 1970, o negociante de Bordeaux era um homem de poder. Quem estava no negócio controlava a produção. Com a evolução do mercado, as marcas ficaram fortes e os Châteaux recuperaram o controle. O Château tem mais legitimidade hoje para trabalhar com o negociante, pedir contas, dirigir, e, fazendo isso, você maximiza a promoção.

O consumidor anseia por uma relação direta com o produtor?                                            Sim, mas há uma ideia errada no mercado, que diz que, se você vai eliminando intermediários, vai diminuir o custo para o consumidor. Em Bordeaux, isso não é verdade. Lá há a distribuição mais eficiente que existe, mesmo sendo a com mais intermediários. Pois o Château vai vender o vinho para o negociante e o negociante vai trabalhar com uma margem de 15% en primeur. Se eu tivesse que fazer minha própria distribuição, não conseguiria chegar ao mesmo resultado. Seria 25%, 30%. Os negociantes estão competindo entre si, eles não têm exclusividade, então as margens ficam baixas. Com o sistema de Bordeaux, consigo uma distribuição capilar, para todos os mercados. Meu vinho está sendo vendido para mais de 70 países en primeur. Dificilmente conseguiria isso se tivesse que desenvolver minha própria força de venda.

Há muitos negociantes se tornando produtores?                                                                     Não tantos na verdade. A tentação foi mais dos produtores virarem negociantes. E isso dá resultados variáveis. Os negociantes não gostam de ver um produtor se tornar produtor e negociante, pois aí você vai competir com eles.

Vocês vendem bem no próprio Château?                                                                                  Vende pouco, pois nossa política não é de vender muito. Vende, mas nada a ver com cifras de Napa Valley, por exemplo, onde os produtores vendem 30 ou 40% da produção dessa forma. Para nós, é marginal. É importante ter uma loja, mas os preços não são melhores no Château. O importante é a degustação e a política de orientar nossos clientes para nossos distribuidores.

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O segundo e terceiro vinhos têm uma estrutura comercial diferente?                  O segundo vinho também está sendo vendido pelo mercado de negociantes e, para o o terceiro, temos uma empresa de destruição, pois é uma produção de volume menor. É um produto que apetece nossos clientes para os outros vinhos.

O segundo vinho é sempre uma oportunidade para os consumidores terem uma aproximação com o Château?                    Sim, com a propriedade, com o estilo de vinho que fazemos, com um vinho que vai ser consumido mais rápido, que não é preciso esperar 10 anos para abrir a garrafa, e é mais acessível.

Os estilos estão alinhados?                                                                                                               Sim, a ideia é sempre ter um irmãozinho do grande vinho.

E o terceiro?                                                                                                                                          Você tem que fazer um vinho que reflita as qualidades da denominação, por isso não tem nome, é só um Pauillac feito por Lynch-Bages. A ideia é fazer um vinho dentro dos parâmetros da denominação, um vinho generoso, geralmente mais encorpado, não tem toda a finesse do grande vinho, mas é agradável e é uma boa imagem da denominação.

Você assumiu Lynch-Bages em 2006 e, desde então, o estilo do vinho no mundo mudou bastante? Você mudou algo no estilo?                                                                                         Não. Acho que não precisava. O que quero fazer é sempre ser mais preciso, mantendo o mesmo estilo. Mais preciso nos cortes para fazer vinhos com taninos sempre muito mais definidos. Quero ganhar um pouco em definição no vinho. Para fazer isso, aumentei um pouco o percentual do segundo vinho e criei também o terceiro vinho, isso ajuda a fazer um primeiro muito mais definido.

Reduziu a quantidade do primeiro?                                                                                          Reduzi um pouco para chegar nesse resultado. Isso foi a estratégia para Lynch-Bages, pois fazíamos um vinho bom antes, e continuamos no mesmo estilo. As mudanças maiores foram no Blanc de Lynch-Bages, que é uma produção pequena. Mudei o estilo, pois queria um vinho mais fresco e aromático, então modificamos o processo para colher as uvas um pouco mais cedo, o processo de vinificação mudou totalmente, com fermentação a temperaturas bastante frias para manter aromas, tem menos barricas de carvalho novo, assim o estilo do branco evolui bastante. No tinto, não houve muitas mudanças. 

Essa mudança nos taninos não é significativa?                                                                              É significativa. Quando se assume a direção de uma propriedade como Lynch-Bages tem que ter uma ambição nova e tentar andar para a frente...

Você sente isso como uma obrigação?                                                                                Obrigação não, mas como um desejo. Acho normal sempre tentar fazer um melhor vinho que a geração passada. Até brinco com meu pai: “Está vendo, está muito melhor hoje” [risos]. Tenho a sorte de ser um negócio familiar e um ambiente que tenho que reportar para a família. Nem sempre é fácil, mas temos a mesma ideia do produto e da forma.

Hoje os vinhos que você participou da produção estão completando 10 anos. Como se sente?                                                                                                                                                          A primeira safra que assumi foi 2006, que foi um grande sucesso em Lynch-Bages. Acho que a qualidade está muito próxima de 2005. Talvez seja um vinho que vai durar mais que 2005. E ainda tive a sorte de ter duas safras excepcionais, 2009 e 2010. Isso foi importante para mim, pois vão ser safras que vão seguir por toda minha vida, são vinhos que vão envelhecer, eternos.

Mas houve safras difíceis, não?                                                                                                               A mais difícil foi 2013. Deu muito trabalho, desde o início até o final. E o que a salvou foi uma das dificuldades: o volume. A floração foi muito complicada, então o rendimento foi bem baixo. Como o verão foi difícil, com chuva, frio, isso não ajudou a amadurecer bem as uvas. Se houvesse mais uvas na planta, elas não iam conseguir amadurecer direito. O fato de ter poucas fez com que, sem serem uvas de grande concentração e potencial, ficassem boas, com estado sanitário bom, e conseguimos fazer um vinho bom. Não é das grandes safras, bem mais leve, mas hoje o vinho engarrafado é muito agradável, bebível agora, para tomar jovem. Uma safra muito difícil, talvez a mais difícil dos últimos 10 anos, tornou-se uma safra boa. Se fosse nos anos 1970, ia ser uma safra terrível.

Qual o estilo do vinho de Lynch-Bages?                                                                                       Acho que fazemos um vinho dentro do estilo de Pauillac, que são vinhos encorpados, com estrutura, com base de Cabernet Sauvignon importante – geralmente têm mais de 60%. Fazemos vinhos fieis a isso, mas com mais generosidade. É um Pauillac hedonista, que dá prazer quando relativamente jovem, mas que vai dar mais ainda para quem tiver paciência.

Quanto de paciência?                                                                                                                              Meu pai sempre avisou: “Não vai falar para ninguém que tem que guardar as garrafas por mais 10 anos, pois vendemos uma safra todo ano”. [risos] Mas precisa de uns cinco anos para chegar ao ponto, talvez sete ou oito anos para estar bem, em alguns casos, 15 anos. Meu amigo Anthony Barton, quando questionado sobre quando abrir seus vinhos, sempre diz: “Você tem uma difícil escolha entre o almoço de amanhã ou o jantar de amanhã” [risos].

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