O ato de saborear

por Waldemar Magaldi Filho*

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Deixar-se afetar pelo vinho é uma experiência emocionante de morte e nascimento

Toda forma de vida depende constantemente das trocas. Uma ínfima célula isolada na forma de um ser unicelular ou pertencente a estruturas vitais mais complexas pode ser considerada a menor unidade de consciência que existe, em função dos intercâmbios que opera produzindo influências mútuas. Porque, instintivamente, toda célula está capacitada para trocar elementos químicos em busca da manutenção e evolução da vitalidade, por meio de contínuo reconhecimento seletivo, atrativo ou repulsivo, dos sabores das diferentes substâncias.

Na medida em que os seres ficam mais complexos, a consciência instintiva vai dando espaço para a inteligência, a capacidade de reflexão, de abstração e de simbolização. Com essas novas ferramentas a imaginação e a criatividade passam a influenciar na lógica biológica, muitas vezes impedindo o processo natural de reação aos sabores. Essas mudanças, devido ao medo e a ilusão do controle, podem desembocar na depressão que é a interdição ao ato de saborear a diversidade da vida com apetite e disposição. O depressivo é aquele que perdeu o prazer e, quando muito, apenas lida com sua fome para suprimir o sentimento de falta e de vazio, assumindo atitudes compulsivas e ou obsessivas, defendendo-se do desânimo.

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Por isso, quanto mais capacidade de saborear as experiências existenciais, obviamente com ética e respeito a simesmo e aos demais, a vida será mais plena de diversão e entreterimento. Divertir-se é poder lidar com o diverso e toda pluralidade sem preconceitos ou preparos, entreter-se equivale a estar entre essa diversidade com alegria, amor e coragem para enfrentar o medo. Cada experiência também pode ser chamada de afeto, vivência, experimentação ou teste. Como o ser humano é uma espécie de processador dedicado em transformar qualquer tipo de afeto, consciente ou não, em emoções, tudo que saboreamos inevitavelmente produzirá julgamentos seletivos com tonalidade emocional. Então, a emoção é o resultado do julgamento, consciente ou não, dos afetos ou experiências, igualmente conscientes ou não, que sofremos ao longo da vida. Cada emoção é única e subjetiva, pois cada indivíduo a processa de acordo com seu tipo e função psicológica dominante, da sua memória e de seus complexos, advindos da soma e registro, traumático ou não, de todos os afetos e suas conseqüentes emoções.

As experiências humanas acontecem num dinamismo que vai além dos cinco sentidos, que representam apenas a quarta parte de toda capacidade vital de julgamento, chamados de função sensação ou percepção. Essa função nos coloca na dimensão espacial possibilitando quantificações que podem ser extremamente refinadas. Porém, esses tipos de referências só vão contribuir para outros indivíduos identificados neste dinamismo, mas não podemos esquecer das outras três funções de julgamento representadas pelo pensamento, sentimento e intuição.

A função pensamento irá contribuir com o julgamento qualitativo, colocando tempo e lógica aos experimentos. O sentimento, por sua vez, nos dá a capacidade de atribuir valores, aumentando ou diminuindo a energia e, consequentemente, a sinergia da experiência. E por fim a função intuição nos dará uma apreensão situacional e global da experiência, permitindo-nos captar os movimentos, as dinâmicas e as tendências.

Por isso, para um experimentador oficial o mais importante é a sua integralidade, ou seja, a capacidade de poder contemplar todas as formas de julgamento para socializar a resultante emocional de suas experiências por meio de julgamentos quantitativos, qualitativos, valorativos e situacionais, respectivamente advindos das funções: sensação, pensamento, sentimento e intuição. Reiterando que bons degustadores e conhecedores de vinhos devem situar-se entre a enologia e a enofilia, ou seja, entre as funções sensação e pensamento ou sentimento e intuição. Quanto mais o experimentador pender para o enólogo ele valorizará os julgamentos quantitativos e qualitativos do vinho. Da mesma forma, quanto mais ele se afinar com o enófilo, priorizará os valores subjetivos e energéticos da degustação, além da percepção dos movimentos que a experiência produziu. Ambos são interessantes, porém o mais completo é aquele que consegue transitar pelas quatro funções psicológicas sugeridas por C. G. Jung, grande pensador da natureza humana.

Experimentar e se deixar afetar pelo vinho em todas as suas instâncias é uma experiência emocionante de morte e nascimento, ou seja, de vida em toda sua plenitude. E só um indivíduo íntegro e corajoso poderá se entreter e divertirse com todos os tipos de estímulos que um bom vinho poderá lhe proporcionar, pois ele contém além da infinidade de substâncias estimulantes, sua história, com toda rede implicativa do plantar ao colher, do preparar ao servir, até desembocar no momento da degustação, onde o ambiente, o clima, a comida, o som, os acompanhantes e, principalmente, o estado de ânimo do degustador contribuirão para o resultado vetorial da emoção e julgamentos despertados por aquele vinho. E como já diziam os físicos do início do século XX: "não existe nenhum tipo de experiência livre da interferência do experimentador", no caso do paladar isso é muito mais verdadeiro ainda! Então, para conhecer um vinho por intermédio de um outro indivíduo nos resta apenas buscar empatia com os relatos do experimentador, pois certamente existirá um que falará especialmente a você, por estar provavelmente em sintonia com a sua função e tipo psicológico.

Concluo afirmando que a vida é um contínuo convite ao sabor das trocas em busca de experiências integrais produtoras de emoções. E quão mais significativa for a experiência, mais intenso será o registro do afeto. Por isso, quanto mais coração mais decoração e mais lembranças para serem comemoradas - memoradas com os outros - futuramente. Portanto, viva e vivam as experiências saborosas, atrativas ou repulsivas, produtoras de julgamentos, emoções e mais vida!

*Waldemar Magaldi Filho (magaldi@facis. edu.br) é psicólogo, especialista em Psicologia Junguiana, Psicossomática e Homeopatia. Autor do livro: "DINHEIRO, SAÚDE E SAGRADO - interfaces culturais, econômicas e religiosas à luz da psicologia analítica". Mestre e doutor em Ciências da Religião, que atuou tanto no meio corporativo de empresas multinacionais quanto no comércio varejista. Atualmente, atende clientes em seu consultório, apresenta palestras em empresas, coordena e ministra aulas nos cursos de Psicologia Junguiana e Psicossomática da FACIS - Faculdade de Ciências da Saúde de São Paulo.

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