O tenor italiano Andrea Bocelli, cuja família produz vinho na Toscana, mostra que, para ele, vinho e música estão intimamente ligados
por Por Alessandra Moneti
Andrea Bocelli é um dos nomes mais importantes da música lírica mundial dos últimos tempos. Apadrinhado por ninguém menos do que Luciano Pavarotti em seus primeiros anos de carreira, o tenor cego (perdeu a visão aos 12 anos devido a um glaucoma) logo se tornou um dos mais célebres cantores da Itália e seus concertos ajudaram a popularizar trechos de ópera mundo afora.
Bocelli ainda é conhecido por ser um dos artistas mais solícitos quando se trata de eventos de caridade para ajudar pessoas em todas as partes do planeta. Além de concertos beneficentes, ele ainda participa de diversos projetos, entre eles um que apoia o trabalho de presos como viticultores na ilha de Gorgona, na costa da Toscana.
Poucos, contudo, sabem que a família do tenor, natural de Lajatico, uma cidade toscana ao sudeste de Pisa, possui tradição na vitivinicultura. A propriedade de 120 hectares (apenas oito de vinhedos) é gerenciada por Alberto, irmão mais novo do tenor, e remonta a 1730, quando foi estabelecida por Bartolomeo Bocelli. Desde então, os Bocelli foram pessoas ligadas à terra.
Em 1930, Alcide, avô de Alberto e Andrea, modernizou e aumentou a produção. Seu filho, Alessandro, juntamente com sua esposa Edi, continuaram o trabalho, até passar a seus filhos. Entre as variedades plantadas estão Sangiovese, Canaiolo, Colorino, Malvasia, e Trebbiano, além de Cabernet Sauvignon. Eles produzem apenas seis rótulos diferentes. “Quando volto para a casa depois de longas viagens, o prazer que recebo de provar o vinho da minha terra é difícil de superar. Isso faz com que eu volte no tempo, às lembranças de meu pai, dele servindo o vinho quase que com um respeito religioso.
Daria tudo para que ele pudesse ver o que conquistamos nos últimos anos. Estou certo de que ele ficaria orgulhoso... Agora, é uma honra para mim ser o embaixador desses vinhos; e fazer isso com o mesmo zelo que tenho por minha voz”, confessa Bocelli.
A entrevista a seguir foi concedida à jornalista Alessandra Moneti e publicada originalmente na revista “Le Venezie”, editada pela Fundação Masi, da Agrícola Masi, tradicionalíssimo produtor de Amarone. A conversa ocorreu logo após a nomeação de Bocelli para o “Prêmio internacional Masi de Cultura do Vinho”, honraria dada desde 1991 às principais personalidades mundiais que contribuíram com a difusão da cultura do vinho. Bocelli recebeu o prêmio por “ter contribuído com sua respeitabilidade de artista de fama mundial, com a sua paixão de produtor e com a alegria de entusiasta a dar brilho ao vinho, difundindo a mensagem que ‘uma garrafa de vinho é, de fato, uma garrafa de felicidade'”.
A ópera e o vinho estão entre os símbolos italianos mais difundidos e apreciados no mundo. Onde você encontrou o maior interesse pelo bel canto e pelo mundo de Baco entre os mais jovens? A ópera é o paraíso da música: ela evoca emoções primárias, com uma intensidade a ponto de derrubar qualquer barreira cultural e geracional. O vinho, nesse sentido, encontra uma ligação com a ópera e é um dos grandes prazeres da vida – desde que não se faça uso, ou então abuso, como o que tornou infeliz o enganado Cássio da peça Otello de Shakespeare. Em geral, muito se fez no mundo para consolidar a cultura do “beber bem”, de beber responsavelmente. Mais muito se pode e se deve ainda fazer.
Se tivesse que descrever o vinho italiano com a linguagem universal da música, quais peças estariam na sua lista? O repertório inteiro dos grandes mestres – como Donizetti, Bellini, Verdi, Puccini e tantos outros – poderia encontrar uma correlação com o vinho. A escolha recairia sobre aquelas obras-primas do melodrama que fazem referência ao vinho: entre as mais célebres, o Brindisi de La Traviata de Giuseppe Verdi, ou o Brindisi da Cavalleria Rusticana de Pietro Mascagni. Para acompanhar a minha colheita, entre as músicas instrumentais, poderia imaginar o princípio ensolarado e alegre da Quarta de Mendelssohn, a sinfonia conhecida como Italiana, ou o segundo movimento da Sexta de Beethoven, a Pastoral. Gosto, porém, de associar às vinhas da família ainda as notas de um grande toscano, Pietro Mascagni: cuja pequena grande obra-prima de passagem e concentração é o Intermezzo instrumental da Cavalleria Rusticana.
Você trouxe para a Itália, este ano, um dos eventos beneficentes mais importantes do mundo: a “Celebrity Fight Night”. Entre os valores do mundo do vinho estão a solidariedade e a capacidade de fazer caridade? Creio que a solidariedade possa estar em toda a parte. O mundo do vinho, inclusive, pois implica um forte vínculo com a natureza, educando à percepção do peso do imponderável (por exemplo, o clima variável). Creio que isso seja um terreno particularmente fértil para cultivar um coração sensível, a ponto de nos recordarmos dos nossos irmãos menos favorecidos.
Você cantou para os prisioneiros do cárcere de Massa e recentemente se tornou um sócio no projeto de apoio para os detentos viticultores na ilha de Gorgona. Qual é sua ideia de agricultura social? Aristóteles dizia que a boa música pode “mudar o caráter moral da alma”. Nada mais verdadeiro. A música pode trazer consigo uma forte mensagem de paz e de irmandade. Quanto ao projeto que considerei apoiar, a pedido do amigo da família, Lamberto Frescobaldi, a iniciativa casava duas paixões minhas: a vinha, precisamente, mas também o arquipélago toscano. Gorgona, a ilha mais fascinante, a mais sofrida, merecia projetos visionários e empreendedores, que, com prazer, coloquei as mãos. Cada trabalho, quando é honesto, pode representar um marco importante no resgate social de um indivíduo.
Na história do empreendedorismo, um índice de sucesso são as tentativas de imitação. Até mesmo a sua vinícola em Pisa sofreu com tentativas de falsificação recentemente. Proteger um setor do risco de fraude é importante e necessário; mas ainda mais necessário seria agir – todos nós – na educação das novas gerações, procurando transmitir valores positivos, inspirando o bem.
Você tem lembranças particulares ligadas ao Amarone? É um grande vinho, não falta nunca na minha adega pessoal. É um daqueles vinhos importantes, pela gradação alcoólica e pelas sensações olfativas que traz. Imaginando um paralelo lírico, poderia relacioná-lo a uma Aida, ou a um Nabucco de Verdi. As memórias sobre isso são tantas. O Amarone é um vinho quente, aveludado, íntimo, singular como o ritual de convívio que traz cotidianamente uma família para o redor de uma mesa.
Você costuma beber algo antes ou depois dos concertos? A Arena de Verona é um dos templos mais célebres e amados do mundo. Antes de cantar, sempre e por toda parte, observo uma disciplina rígida de atleta e elimino, da minha dieta, o álcool. Depois do último aplauso acontece que, no camarim ou no hotel, com os meus amigos, levantamos uma taça do vinho genuíno de nossas vinhas. Cada vinho Bocelli tem o seu caráter, tem a sua história e está ligado a tantas recordações pessoais. Um vinho que tem a magia de lembrar o perfume de casa.