Por séculos as ordens monásticas foram responsáveis pela preservação da cultura do vinho e ainda transformaram seu consumo e produção
Arnaldo Grizzo Publicado em 28/02/2024, às 11h00
Há quem acredite que a vitivinicultura só sobreviveu à Idade Media graças aos monges católicos. Foram os frades dos mosteiros europeus que estudaram, mantiveram e compilaram o conhecimento adquirido sobre a produção de vinho durante os séculos passados.
Foi com a determinação deles que a vitivinicultura evoluiu em uma época em que a cultura da vinha não era a mais valorizada. Acredita-se que a história do monaquismo cristão começou no século III com monges herméticos que viviam vidas solitárias em regiões desérticas ou simplesmente distantes dos povoados.
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Todavia, uma figura foi fundamental para que as ordens monásticas se estabelecessem: São Bento de Núrsia. A Ordem Beneditina, criada no século VI, foi inspirada nos ensinamentos desse famoso monge que, no início daquele século, graças à sua fama, passou a reunir discípulos e criar pequenos mosteiros.
Naqueles anos, ele escreveu uma obra fundamental, sua Regula Monasteriorum, ou “as regras da vida no monastério”, que ditava não somente como os monges deviam viver, mas até mesmo como deveriam ser as estruturas dos prédios monasteriais. Contudo, para a posteridade, seu mote fundamental foi: “Ora et Labora”, trabalho e oração.
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O cultivo da vinha sempre foi uma necessidade da vida monástica. O vinho era visto como medicamento, usado para desinfetar feridas e consumido como tônico para enfermidades. Também era um alimento e fazia parte da vida diária – não apenas dos monges, mas também dos peregrinos, estudantes e doentes.
O excedente de produção poderia ser vendido para ajudar a financiar a manutenção dos mosteiros. E acima disso tudo, o vinho faz parte da eucaristia, o rito cotidiano sagrado da Igreja Católica em que ocorre a chamada transubstanciação, a transformação do pão e do vinho no corpo e sangue de Cristo. Vale lembrar que o vinho é várias vezes mencionado na bíblia e Jesus é citado como a “Videira Viva” ou “Verdadeira”.
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As ordens beneditinas logo se espalharam e cresceram. A abadia de Cluny na Borgonha, fundada no século X, tornou-se uma das principais referências para todos os mosteiros beneditinos na Europa.
Na França, foram estabelecidas abadias no Loire e em Champagne, bem como no Rhône e em Bordeaux. Na Borgonha, os monges foram os primeiros a identificar e cultivar alguns dos principais vinhedos da região e esse conhecimento sobre a viticultura se espalhou pela Alemanha, Itália, Portugal, Espanha etc. Seus vinhos passaram a estar presentes nas mesas dos nobres e reis.
Durante um longo período, as terras eram trabalhadas no sistema de métayage, em que os trabalhadores cuidavam das fazendas em troca de uma parte da colheita. Com o tempo, os locais que produziam os melhores vinhos foram mapeados, alguns até mesmo murados (Clos).
Os monges da Abadia de Saint-Vivant, por exemplo, foram responsáveis pela limpeza da floresta e pela plantação de vinhas em Vosne – local onde hoje há, entre outros, o vinhedo Grand Cru de Romanée-Saint-Vivant.
No entanto, talvez a grande evolução tenha ocorrido a partir da fundação da Abadia de Cister, em Saint-Nicolas-lès-Cîteaux, não muito distante de Nuits-Saint-Georges, também na Borgonha. Ela foi criada em 1098 por Robert de Molesme, um dos precursores da reforma cisterciense dentro da ordem beneditina. Na época, a Abadia de Cluny era uma das maiores proprietárias de vinhedos da Europa (graças às extensas doações de terras e também dinheiro feitas pelos nobres para expiar pecados). Na visão de Molesme e seus seguidores, a ordem estaria em decadência devido ao enriquecimento e à corrupção do clero, portanto, era preciso uma interpretação mais rígida da Regra de São Bento.
Ocorreu então um retorno ao verdadeiro ascetismo, enfatizando o trabalho manual, que ajudou os cistercienses a se tornarem a ordem monástica mais influente na produção de vinho. Alguns acreditam que eles foram os primeiros a cultivarem Chardonnay na Borgonha, por exemplo.
A influência decisiva das ordens monásticas, especialmente as ramificações beneditinas, perduraram até a Revolução Francesa, quando suas terras passaram a ser confiscadas pelo governo.
Outro nome que marcou a vida monástica até hoje foi o de São Francisco de Assis, um frade católico que nasceu em Assis, na Itália, por volta de 1181. Ele teve imensa influência no estabelecimento de um novo tipo de ordem religiosa, que ficou conhecida como franciscanos.
Nos seus primeiros dias, os franciscanos eram frades errantes que faziam votos de pobreza. Mas, com o tempo, também começaram a adquirir propriedades e riqueza. Por exemplo, a pequena cidade de Santarcangelo di Romagna, perto de Rimini, tornou-se o centro de uma comunidade da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, um ramo dos franciscanos, e ali eles estabeleceram vinhedos e começaram a produzir vinhos. Diz-se também que eles teriam dado o nome Sangiovese à famosa casta italiana.
Mais tarde, outra ordem também desempenharia um papel crucial na vida monástica e vitivinícola: a Companhia de Jesus. Ela foi fundada em 1534 por Inácio de Loyola e, em meio às reformas protestantes, logo se transformou em um fenômeno que se tornaria um dos maiores grupos religiosos do mundo, com influência determinante não somente na Igreja Católica, mas em nações e impérios europeus.
Os jesuítas formaram uma presença omnipresente, inclusive na expansão às Índias. Eles seguiram em missões evangelizadoras para a Ásia, África e também ao Novo Mundo.
Na América, a área mais famosa controlada pelos jesuítas ficava no Paraguai, junto com parte da Argentina e do Brasil. Consistia em 32 missões espalhadas por uma região maior que o atual Paraguai, que ficou sob seu domínio do século XVII até meados do século XVIII e, com isso, eles influenciaram enormemente a cultura do vinho dos três países. No sopé do extremo leste dos Andes, por exemplo, esses missionários católicos desenvolveram os primeiros grandes vinhedos e vinícolas da Argentina.
Já os franciscanos tiveram influência mais marcante na região do norte do México. Em 1626, os missionários franciscanos plantaram o primeiro vinhedo no Novo México, em Socorro, às margens do Rio Grande. Eles também foram os primeiros a introduzir o cultivo da uva e a vinificação na região, hoje oeste do estado do Texas, quando lá chegaram na década de 1660. A uva Mission, sendo bastante resistente a doenças, foi a uva preferida dos franciscanos da Califórnia ao Chile.
Talvez o principal legado dos franciscanos em termos de viticultura do Novo Mundo tenha ocorrido na Califórnia graças ao padre espanhol Junipero Serra. Na década de 1760, ele liderou uma missão franciscana ao norte de Baja, perto do sul da Califórnia, e estabeleceu diversas ordens de San Diego até São Francisco para converter os nativos.
Num desses assentamentos, a missão San Juan Capistrano, Serra e seus companheiros franciscanos plantaram os primeiros vinhedos de vinhas europeias na Califórnia no final da década de 1770. Serra foi beatificado pelo Vaticano em 1988 e foi denominado “o Apóstolo da Califórnia”, também chamado de fundador do vinho californiano.
Os franciscanos, aliás, assumiram muitas das terras e vinícolas das missões jesuíticas no fina do século XVIII, época em que a Companhia de Jesus vinha sendo expulsa de seus assentamentos na América e chegou a ter sua ordem abolida em 1773 pelo Papa Clemente XIV. Anos mais tarde, porém, a ordem foi restabelecida e passou novamente a expandir-se, chegando à Austrália, onde foram os primeiros a cultivas vinhas em Clare Valley, por exemplo.