Os três universos de Graves apresentam uma mistura natural de vinhos tintos, brancos e doces
Arnaldo Grizzo Publicado em 18/08/2023, às 12h00
Graves é o nome que os franceses dão à uma “mistura natural com granularidade contínua, de seixos, cascalhos e areia”, um tipo de solo formado por depósitos aluviais de eras passadas e que batizou uma vasta região ao redor da cidade de Bordeaux.
Graves é a terra de Châteaux famosos como Haut-Brion, La Mission Haut-Brion, Pape Clement, Yquem, Haut-Bailly, Olivier, entre outros, que produzem grandes vinhos, tanto tintos quanto brancos, e também doces, o que mostra a polivalência dessa região. Antes de mais nada, contudo, é importante entender sua história e suas divisões.
Nos tempos medievais, a faixa principal dos vinhedos de Bordeaux ficava ao redor da própria cidade e até cerca de dez quilômetros ao sul. Esta região ficaria conhecida como Graves de Bordeaux. Pouco a pouco, a área ao sul da comuna de La Brède (cerca de 25 quilômetros distante de Bordeaux) também foi plantada, até que os vinhedos se estenderam mais ao sul, chegando a Langon, ao redor de 50 quilômetros de distância do centro de Bordeaux.
No século XIX, havia cerca de 50 propriedades na comuna de Pessac e 100 em Mérignac, a oeste da cidade. Em 1875, a área cultivada com vinhas no norte de Graves era de 5.000 hectares. A maioria desses vinhedos, contudo, desapareceu com a expansão urbana desenfreada, que elevou os preços das terras. Muitas vinhas foram perdidas ou abandonadas.
Na década de 1930, a denominação Graves foi criada. Uma classificação das propriedades se seguiu em 1959 em meio a uma lista de 130 candidatos. Sem exceção, todas as propriedades classificadas ficavam ao norte de La Brède. O preço e a qualidade intrínseca dos vinhos foram usados como critérios de seleção. E curiosamente, alguns châteaux foram classificados por seu vinho branco, mas não por seus tintos.
As propriedades selecionadas foram: Haut-Brion, Bouscaut, Carbonnieux, Domaine de Chevalier, Couhins, Couhins-Lurton, Fieuzal, Haut-Bailly, La Mission Haut-Brion, La Tour Haut-Brion, Latour-Martillac, Laville Haut-Brion, Malartic-Lagravière, Olivier, Pape-Clément e Smith-Haut-Lafitte. Desses 16 châteaux, há oito brancos classificados e 13 tintos.
O fato de todas as propriedades classificadas estarem no norte da região complicou a relação com os produtores do sul, que se sentiram inferiorizados. Assim, em 1964, as propriedades do norte fundaram seu próprio sindicato, que uniu cerca de 60 produtores, deixando mais de 500 do sul de fora.
André Lurton foi uma das figuras centrais para a criação de uma nova denominação para a região norte. E, dessa forma, em 1980 foi feito um pedido formal ao INAO para a instauração da AOC Pessac-Léognan. Em 1984, as propriedades foram autorizadas a usar os nomes dos dois distritos de Pessac e Léognan nos rótulos e um decreto oficial criou a nova denominação em 1987. O sul de Graves, por sua vez, decidiu montar uma Maison du Vin, seu sindicato, em Podensac.
Com a nova AOC do norte, vinhas célebres foram reconstruídas. Como a área de vinhedo potencial – delimitada, mas não plantada – em Pessac-Léognan é bastante grande, foi possível criar novas propriedades e aumentar outras revivendo vinhedos históricos.
Produtores como Domaine de Chevalier e Château Olivier recuperaram excelentes parcelas, outrora parte das suas terras, mas abandonadas por razões econômicas há muito tempo. A maioria dos terroirs de alta qualidade agora são colocados em santuários, “zonas” intangíveis que não podem mais ser cobiçados pelo avanço imobiliário. Se em 1970 apenas 500 hectares de vinhedos restavam na região, hoje a superfície global ultrapassa 1.790 hectares em produção.
Não há um único produtor classificado entre os châteaux do sul de Graves, o que faz com que a fama dessa região seja comprometida. Mas isso não significa que os vinhos de Graves são de segunda categoria.
Historicamente, o sul de Graves era uma região focada basicamente em vinhos brancos. Mas o mercado de Bordeaux para brancos baratos, mesmo com o nome Graves no rótulo, sofreu e muitos vinhos tintos foram sendo produzidos em solos não adequados para videiras tintas.
Por não conseguirem cobrar os mesmos valores que seus vizinhos ao norte, durante muito tempo alguns produtores elaboraram vinhos mais leves e menos complexos para atender a um outro mercado, mas isso vem mudando nos últimos anos com investimentos de produtores importantes da região.
Cabernet Sauvignon, Merlot, Cabernet Franc, Petit Verdot e Cot (Malbec) são as tintas autorizadas, enquanto Sauvignon Blanc, Sémillon, Muscadelle e Sauvignon Gris são as brancas usadas no sul. No norte, na AOC Pessac-Léognan, pode-se acrescentar ainda Carménère às tintas, e não se pode usar Sauvignon Gris nas brancas.
Graves, como um todo, é uma região onde podem ser produzidos vinhos brancos e tintos de excelente qualidade. O renomado enólogo Denis Dubourdieu, falecido em 2016, aconselhava muitas propriedades em Pessac-Léognan a plantar vinhas brancas apenas em solos com subsolo de argila e calcário. Graves, como é de se supor, é uma região dominada por superfícies de cascalho.
A estrutura do solo da região é mais complexa do que parece. O material erodido dos Pireneus foi transportado por rios e geleiras que depositaram solos aluviais, cascalho, seixos de quartzo e outros detritos no que é hoje a principal região de vinhedos da Margem Esquerda.
Há cinco ou seis ondas de depósitos glaciais. Ao longo dos séculos, os riachos abriram vales na paisagem, expondo “croupes” bem drenados nos quais as vinhas seriam mais tarde plantadas e fornecendo um canal para a umidade que se filtrava pelos solos. Os depósitos glaciais mais recentes encontram-se mais perto do Garonne. Assim, existem diferentes segmentos de croupes.
Os croupes variam enormemente em profundidade. Os mais rasos podem ter apenas 30 centímetros de cascalho antes de atingir o subsolo; em outros lugares, o leito de cascalho pode ter muitos metros de profundidade.
Além disso, “cascalho” é um termo genérico para uma grande variedade de tipos de pedra. Mais ao sul, na atual região de Graves, o cascalho tende a ser misturado com proporções maiores de areia, argila e calcário. No sul, os croupes são menos extensos, estando a maior parte deles localizados perto do rio e constituídos por depósitos geologicamente recentes.
Sempre houve Graves brancos que alcançaram preços que, muitas vezes, ultrapassam os dos vinhos tintos da mesma propriedade. Haut-Brion, por exemplo, tem um grande histórico nesse sentido. Mas há ainda uma parte da região que é famosa por seus brancos doces: Sauternes e Barsac.
Essa história, no entanto, começa prosaicamente em 1836, quando um comerciante de Bordeaux de origem alemã, Focke, descobriu por acaso o desenvolvimento da podridão nobre. Na época, ele esperava o fim das longas chuvas de outono para iniciar a colheita em seu château. A secagem das uvas, devido ao retorno do sol, provocou o desenvolvimento de fungos.
Outra anedota diz que, em 1847, o Marquês de Lur-Saluces, que tinha ido caçar lobos na Rússia, teve seu retorno adiado devido ao mau tempo. No entanto, ele havia dado a ordem a seus empregados para aguardarem seu retorno para a colheita, e isso então levou a propriedade de Yquem a conhecer a podridão nobre.
Os vinhedos da região, assim como os do Médoc, também foram classificados em 1855 por ocasião da Exposição Universal em Paris a pedido de Napoleão III. Ao todo, a Câmara de Comércio de Bordeaux apontou 27 propriedades de Sauternes e Barsac como Premier Crus. Em 1936, as AOCs Sauternes e Barsac estavam entre as primeiras denominações francesas a serem registradas como Appellation d’Origine Contrôlée.
Aqui, 80% das uvas são Sémillon, 19% Sauvignon Blanc e 1% Muscadelle distribuídas por cerca de 1.900 hectares e apenas 140 produtores. São cinco comunas: Barsac, Preignac, Bommes, Sauternes e Fargues.
Se as denominações Sauternes e Barsac são o berço dos maiores vinhos doces do mundo, é principalmente graças ao seu microclima único; limitado pelo Garonne, atravessado pelo Ciron. E, quando estas águas se encontram, forma-se um fenômeno único de condensação que cobre toda a vinha permitindo o desenvolvimento da podridão nobre, a “Botrytis cinerea”.
As névoas de outono seguidas de dias ensolarados favorecem o desenvolvimento desse fungo, que assenta em uvas muito maduras e concentra seu néctar. O desenvolvimento da “Botrytis Cinerea” nas uvas não é uniforme, isso explica a duração e dificuldade da vindima. E também o alto preço dos vinhos.