Em 2004 surgiu um longo debate no mundo do vinho, que é uma marco na mudança de pensamento e ajuda explicar como os vinhos mais frescos ganharam mercado
Arnaldo Grizzo Publicado em 08/12/2023, às 14h00
Começo de 2004. Após as provas en primeur de Bordeaux, Robert Parker deu 96 pontos para o Château Pavie, de Saint-Émilion, um de seus vinhos favoritos na denominação. “É um vinho de sublime riqueza, mineralidade, delineamento e nobreza”, escreveu na época o crítico norte-americano, ainda no auge de sua fama.
Jancis Robinson, por sua vez, deu apenas 12 pontos (numa escala de 20, o que na medida de Parker seria algo como 60 pontos, ou seja, uma bebida abaixo do padrão). “Aromas maduros completamente pouco apetitosos. Por quê? Porto doce. Vinho do Porto é melhor do Douro e não de Saint-Émilion. Vinho ridículo que lembra mais um Zinfandel de colheita tardia do que um Bordeaux tinto”, escreveu a analista inglesa.
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Esses comentários criaram um longo debate no mundo do vinho e, segundo alguns, foi um marco na mudança de pensamento no mundo do vinho. Isso marcou um antes e um depois, uma divisão no mundo.
A influência de Parker tornou-se menos importante e já se começou a falar sobre frescor. Conheço bem o exemplo de Pavie. Quando venderam para Gerard Perse, ele contratou imediatamente Michel Rolland [como consultor] e destruíram tudo.
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Antes de ser vendido, Pavie era uma espécie de López de Heredia da França, uma vinícola que produzia vinhos muito delicados, muito finos. E Rolland chegou e fez vinhos de 15 graus de álcool, superextraídos, muita madeira etc.
Portanto, esse conflito de pontos de vista, de visões sobre como o vinho deveria ser, foi colocado em evidência na época”, aponta Patricio Tapia, jornalista responsável pelo Guia Descorchados, e certamente um dos maiores incentivadores dessa mudança de visão na América do Sul.
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Apesar de o debate ter aparentemente começado há bastante tempo, as principais mudanças parecem ter ocorrido há menos tempo. E é algo lógico, pois, no mundo do vinho, quase nenhuma alteração é imediata. Geralmente são necessárias safras e safras em seguida para que se possa realmente efetuar modificações e, mais que isso, senti-las na garrafa. Mas, o que vem ocorrendo no mundo do vinho, que mudanças são essas?
É notório que desde os anos 1990 até o fim da primeira década do novo milênio houve uma enorme valorização de um estilo de vinho mais concentrado, alcoólico, com muita influência do carvalho. O estilo Parker, como se convencionou dizer.
“Acho injusto falar que ele tinha um gosto específico, mas ele começou a valorizar vinhos mais precisos. E, naquela época, os vinhos que se destacaram, coincidentemente, eram estruturados porque eram feitos pela escola de Bordeaux, muito maduros e muito concentrados”, aponta Eduardo Milan, editor de vinhos de Revista ADEGA.
Lembrando que, na época, Robert Parker tinha uma enorme proeminência e influenciava diretamente nos mercados (especialmente no norte-americano, o mais importante do mundo na ocasião) e, com isso, muitos produtores passaram a buscar esse estilo – pois era uma garantia de sucesso comercial.
“Nas décadas de 1980 e 1990, a tendência era mais para vinhos grandes e ricos com concentração e muito carvalho novo. Isso se deve em parte ao mercado americano (que ainda gosta dos ricos e poderosos Cabernets do Napa, mas talvez menos do que no passado); também a influência de Robert Parker que teve um grande impacto nas práticas de vinificação. Ele gosta de vinhos com potência e profundidade como a safra de 1982 em Bordeaux, que iniciou essa tendência”, atesta Christopher Cannan, produtor do Clos Figueras e muito amigo de Parker.
“A certa altura, Michel Rolland trabalhava em todos os lugares. Então sua influência se espalhou. E como as pessoas viam que aqueles vinhos vendiam, as vinícolas copiavam o estilo”, diz Tapia.
A visão é compartilhada por Francisco Baettig, enólogo de rótulos clássicos do grupo Errázuriz como Viñedo Chadwick, Seña e Don Maximiano. “Houve um boom de exportação e plantações dos anos 1990 e até 2000 no Chile. Muitas vinícolas se envolveram, muitas foram criadas, foram plantados vinhedos com material inadequado, houve muita influência de assessores externos que determinavam um tipo de vinho. Quem mandava muitas vezes era o setor comercial, de marketing ou o consultor. Havia muita influência dos jornalistas da época, como Parker, e também do mercado norte-americano e depois da China. Os enólogos tinham pouca experiência. Os mais novos não tinham uma clareza sobre que estilo de vinhos fazer. Então procuramos vinhos muito mais maduros, redondos, sem verdes, porque era isso o que o mercado pedia. Os críticos pontuavam vinhos com mais madeira, mais álcool etc.”, recorda Baettig.
Mas esse fenômeno não ocorreu somente no Chile e na América do Sul, espalhando-se por todos os lugares. Aliado a isso, não podemos nos esquecer que houve avanços tecnológicos que marcaram a enologia do período.
“A gente passou por uma revolução de enologia, que está se aprimorando, se aperfeiçoando. Hoje você consegue ter condições de extrair o máximo de certas coisas. Foi tudo um aprendizado. E na época aquilo era uma visão do que era fazer um vinho bom”, diz Milan, que completa: “Alguns produtores acreditaram que quanto mais era melhor, ou seja, mais concentração, mais maturidade, mais madeira. E com isso você acaba perdendo o caráter do vinho”.
“Nos anos 1990, por exemplo, chegaram à nossa região barricas pequenas, que não eram parte da tradição. E começa a formar-se um modelo de vinho que tem a ver com isso, com concentração, com doçura”, aponta Sebastián Zuccardi, um dos enólogos que mais defende a expressão do terroir no vinho argentino.
O avanço nas técnicas de vinificação foi muito importante O uso de barricas novas e menores se expandiu e influenciou gerações de produtores. No Piemonte, por exemplo, houve as famosas “Guerras de Barolo” nos anos 1980, quando tradicionalistas e modernistas discutiam sobre qual a melhor expressão do vinho local – mais austera ou mais palatável –, sendo que os “modernistas” obviamente foram influenciados por técnicas e tecnologias que privilegiavam bebidas mais opulentas, especialmente na juventude.
“Chegou um ponto em que a maturidade era obviamente excessiva. Bordeaux perdeu sua identidade graças a vinhos tremendamente maduros”, lembra Tapia, que completa: “Sobremadurez é padronizar. Em outras palavras, um Syrah doce, cheira e tem o mesmo sabor de um Cabernet Sauvignon doce e maduro demais. Então se perde a identidade da variedade e se perde a sensação do lugar, o sentido de origem”.
“A sobrematuração padroniza vinhos. Madeira padroniza”, concorda Marco Puyo, enólogo que trabalhou muitos anos em Los Vascos e na Viña San Pedro de Tarapacá. “Se amadureço demais, se extraio demais, se uso madeira demais, o local permanece soterrado sob uma técnica”, diz Zuccardi.
“Mais do que falar de frescor, eu diria que é uma busca pela expressão do lugar, a expressão da variedade. O local e a casta, e a única forma que se expressam bem é colhendo uvas maduras, mas não sobremaduras; vinhos que tenham um envelhecimento, que pode ser em carvalho, em madeira, mas bastante moderado, para que se expressem”, aponta Puyo com a sabedoria de quem já fez vinhos de diversos estilos. “Os vinhos que fiz no início dos anos 2000 tinham muito mais madeira, colhia mais tarde”, admite.
“Esse movimento começa primeiro pela forma como olhamos para o local, depois pela forma como cultivamos aquela vinha, toda a cultura, ou seja, tem a ver com a forma como regamos na nossa região, não levando ao estresse, entendendo que a planta tem que ter equilíbrio para viver muitos anos. Devemos olhar a época da vindima e depois, claro, o trabalho na adega”, aponta Zuccardi.
“Já fiz vinhos não frescos antes, mas faz parte da evolução e acredito que o mercado chileno foi muito influenciado pelo gosto americano. E, aos poucos, os vinhos chilenos vêm encontrando seu equilíbrio. Algumas vinícolas e regiões antes de outras, mas acho que está nesse caminho e hoje os vinhos chilenos estão em uma clara evolução para o frescor, porque, no final das contas, os vinhos são melhores”, comenta o enólogo Felipe Muller, da Viña Tabali, que completa: “Minha evolução interna pessoal foi bem grande e hoje estou colhendo praticamente um mês antes do que 15 anos atrás quando cheguei em Tabali”.
“Fazer vinhos frescos, acho que não é esse o objetivo. Essa é uma consequência natural de trabalhar bem, procurando a correta expressão do vinho”, sintetiza Puyo. “A revolução do frescor é realmente voltar aos fundamentos da vinificação. É focar nas uvas e no terroir e deixá-los falar por si mesmos”, afirmou Chris Brockway, enólogo e proprietário da Broc Cellars, nos Estados Unidos.
“Não acredito seja uma revolução, mas uma evolução. Acho que é uma evolução natural, mas também é um pouco como voltar ao início. Óbvio que depende para quem você pergunta. Se perguntar a um velho enólogo como eu, ele vai responder que os estilos eram de menos madeira, de colheitas mais precoces no início dos anos 1980 e 70, mas com muito menos tecnologia, com vinhos talvez um pouco mais simples. Mas se você perguntar a um jovem, que não viu isso, ele vê mais como uma revolução que veio para mudar tudo. Mas a vida gira”, pondera Puyo, que continua: “Foi uma evolução gradual, porque as mudanças têm de ser graduais, porque é preciso de educar. E o único jeito de educar é ensinando aos poucos. Não dá para educar mudando o vinho da noite para o dia. Aí você não está conseguindo educar, está dando um choque que as pessoas não estavam acostumadas. Portanto, os processos de educação são lentos e o processo do vinho é lento”, garante o enólogo.
Francisco Baettig tem visão semelhante: “Acho que é uma reavaliação e de certa forma uma revolução, que acho ótima. Ainda há muito a fazer, muitas coisas interessantes estão por vir, há muito a aprender, ainda precisamos que as vinhas estejam bem plantadas, com boa matéria vegetal nos bons locais para que se expressem. E acredito que hoje o Chile faz vinhos mais autênticos e com mais personalidade. Acho que nos sentimos um pouco mais à vontade e acreditamos mais na história do que fazemos, e isso é sempre bom”.
“Eu vejo isso como uma evolução de fazer e pensar sobre o vinho”, garante Paolo Coppo, um dos expoentes quando se fala de vinhos de grande frescor no Piemonte. “Compreendeu-se até onde ir com a extração, apurou-se o método de utilização do envelhecimento em madeira com resultado do domínio da técnica e respeito pelas características da vinha. Assim, preservar o frescor de um vinho é respeitar a identidade da vinha, vindimar as uvas no momento certo e não apenas exagerar na maturação sem uma razão válida... Isso é evolução e aposta na verdadeira identidade da vinha”, diz o produtor italiano.
É inegável que vêm ocorrendo mudanças importantes no estilo dos vinhos nos últimos anos, mas quando e por que houve esse “despertar”? “De fato, houve uma evolução que começou no início dos anos 2000”, afirma Christopher Cannan.
Segundo ele “o Priorat foi típico dessa mudança de tendência. A área sempre produziu vinhos potentes, mas no final da década de 1990 as vendas diminuíram e o Priorat perdeu mercados. Desde então, isso foi revertido, os bons produtores estão agora fazendo vinhos frescos e equilibrados com frutas dominando e muito menos carvalho novo”.
“Em Bordeaux, são os taninos que têm sido dominados por mais frutas, menos carvalho novo e uma evolução positiva contínua nas práticas de vinificação”, diz o fundador de Clos Figueras.
Acredita-se que a perda de influência de Parker também foi fundamental para a mudança. “À medida que Parker foi perdendo importância, chegaram novos críticos que passaram a pedir mais frescor, com novas ideias”, diz Tapia. O crítico chileno vivia em Nova York quando houve o primeiro boom de vinhos naturais.
“Então voltei para o Chile no começo dos anos 2000, e comecei a mudar de alguma forma o meu gosto, a adaptar o meu gosto a este novo estilo. Comecei a procurar vinhos que fossem frescos”, lembra. Ele conta que por volta de 2010, seu guia Descorchados tinha um forte discurso de “maior frescor, menos madeira, mais senso de lugar”, o que foi compreendido por alguns, mas atacado por outros.
Baettig recorda que sua “evolução” ocorreu a partir de 2008. “Comecei indo para França, Itália, Espanha e outros lugares e me apaixonando por coisas mais finas, vinhos mais elegantes, com acidez etc. Mas quem primeiro iniciou com as mudanças foi Marcelo Retamal, e aos poucos os enólogos mais jovens foram acompanhando. Os Cabernets passaram a ter algumas mudanças importantes de estilo. No caso de Seña, Viñedo Chadwick, Don Maximiano etc., isso começou nas safras de 2013, 2014. Ou seja, há dez anos apenas”, aponta.
“Talvez na cabeça [a mudança] começou há cerca de 15 anos, mas posso dizer que nos vinhos há cerca de 10 anos. Foi uma geração de produtores que tivemos oportunidade de viajar, de sair, de provar, de ver que o mundo do vinho era mais do que uma coisa só. Que era preciso não temer o mercado, porque muitas vezes o que dominava aquela visão dos vinhos era uma ideia sobre o que acreditávamos que mercado gostava”, aponta Zuccardi.
Tapia diz que o trabalho que Matías Michelini fez foi fundamental na Argentina. “Ele entendeu a mensagem e imediatamente começou com seu estilo. Então, muitas pessoas passaram a imitá-lo também. Na época, alguns o chamavam de ‘El Verde’ Michelini porque colhia muito cedo”, recorda o crítico chileno.
“Acho que não é [uma revolução] transversal, porque tem muita gente que ainda gosta do estilo dos vinhos um pouco mais opulentos, mais maduros, mais doces e isso não é bom nem ruim. São estilos. É bom que existam vários”, garante Baettig. Ou seja, apesar de os vinhos notadamente estarem trilhando um caminho distinto nos últimos anos, é necessário dizer que há espaço para a diversidade.
“Hoje há uma pluralidade de visões”, garante Milan.
“Ainda existem vinícolas que usam muita madeira, que colhem muito tarde, que têm um estilo que eu chamo de ‘old school’, o que é bom, pois cada um tem o seu...”, diz Felipe Muller.
“Cada produtor deve decidir seu caminho e deve haver diversidade. O vinho é diverso por definição”, acredita Zuccardi.
“Os vinhos estão voltando a ter a linearidade, o frescor que tinham do jeito que eram feitos, de um jeito clássico, mas agora com toda a tecnologia. Então acho que é um processo de equilíbrio”, conta Milan.
Essa visão é corroborada pela opinião de Alejandro Cardozo, enólogo uruguaio, sobre o uso das barricas de carvalho por exemplo: “Acho que jamais se vendeu tanta barrica quanto nos últimos anos. As pessoas não pararam de usar barrica, pelo contrário. Mas essas barricas se adaptaram, com ajuste de tosta, por exemplo. As madeiras foram se adaptando aos estágios em função de valorizar essa sensação de frescor”, garante.
Cardozo diz que viu a busca por frescor e leveza atingir até mesmo regiões como Champagne. “Estive lá recentemente e a grande ‘preocupação’ era o Prosecco, em fazer com que os espumantes de entrada tivessem essa leveza característica do Prosecco”, conta.
“Mas você não pode pedir a mesma coisa de um Pinot Noir e de um Carignan, por exemplo. São dois mundos muito diferentes. Mas dentro do Carignan, procuro fazer ele mais fresco, colhido um pouco antes, que não seja uma compota, que mostre o lado herbáceo mais amigável da variedade, que sejam vinhos mais bebíveis”, explica Muller, que finaliza: “As qualidades melhoraram muito, hoje os vinhos são muito mais elegantes, são muito mais complexos do que já foram”.
“Os melhores vinhos que iremos provar ainda estão para ser feitos. Estamos numa fase áurea em que os vinhos hoje são muito melhores do que os feitos nas décadas passadas. Há um futuro brilhante pela frente”, garante Eduardo Milan.