Carlos Magno e o vinho: como o imperador moldou a viticultura europeia

Carlos Magno poderia ter doado uma propriedade que hoje corresponde às terras da Domaine Bonneau du Matray

Arnaldo Grizzo Publicado em 15/02/2016, às 18h30 - Atualizado em 13/11/2025, às 08h20

O legado histórico que liga o Sacro Império Romano ao nascimento do Corton-Charlemagne - Foto: FFLCH-USP

 

Quem não se lembra das aulas de história da escola quando, depois de falar sobre o período pré-histórico, passar pelo Egito e Grécia e chegar à queda do Império Romano, o professor começava a contar sobre a Idade Média?

Aquele período que muitos até hoje não compreendem, pois, verdade seja dita, ele não é tão simples de delimitar quanto os antecessores. O mapa da Europa, que antes era dividido em territórios romanos e não romanos, passa a ser repleto de pontos de reinos e mais reinos que não se entendem. E nós também dificilmente entendemos.

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Foi nessa época de feudos, mouros, guerras santas, cavaleiros, contos épicos, doenças que devastaram populações inteiras, reformas religiosas etc, que surgiu alguém que tentaria pôr um pouco de ordem na bagunça que virou a Europa pós-Império Romano. O lendário rei francês, Carlos Magno, foi o homem que resolveu reunir novamente as terras do antigo império, conquistando terras, unificando moedas, reformando a educação.

Charlemagne (seu nome em francês), coroado imperador do Sacro Império Romano, então enfrentou os mouros e os reinos bárbaros. Mandou construir escolas e ensinar as matérias clássicas como aritmética, retórica, astronomia, geometria, dialética, por exemplo (e dizem que isso pavimentou o caminho para a Renascença séculos mais tarde). Seu reinado inspirou boa parte das histórias medievais que sobreviveram até os nossos dias.

As vinhas e vinhos do rei

Tamanha foi a influência de Carlos Magno que seu nome não poderia ficar de fora da história do vinho também. Como imperador e proprietário de enormes porções de terra, o dominante carolíngio tinha partes na Borgonha, na Côte de Beaune, numa área dita Corton—diz-se que o nome vem da contração de Curtis (terra, corte, propriedade) e Orthon (que teria sido um imperador romano no século I).

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Assim, o imperador mandou cultivar vinhas na parte da montanha (localizada entre as vilas de Aloxe-Corton, Pernand-Vergelesses e Ladoix) cuja neve invernal derretia primeiro (assim ele acreditava que obteria vinhos excelentes). Ele ainda tinha cerca de 600 administradores que a cada ano lhe informavam a quantidade e a qualidade dos produtos.

Lenda diz que o vinho devia ser branco para não manchar a barba de Carlos Magno

Segundo a lenda, Carlos Magno, apesar de grande apreciador da bebida báquica, nunca ficou bêbado. Talvez seja mesmo verdade, pois seu porte físico avantajado (conta-se que ele teria quase 2 metros de altura) lhe permitia beber grandes quantidades sem sentir os efeitos do álcool. Contudo, foi na velhice, quando as cãs já lhe dominavam os cabelos e a barba, que seu nome se ligou ao vinho definitivamente.

A história conta que Luitgard (a última das cinco esposas que teve o rei), zelosa em manter a imagem sempre imponente de seu marido, sugeriu que ele trocasse o vinho tinto, que lhe manchava a barba, pelos brancos. Foi assim que Carlos Magno ordenou ao Colegiado Saint-Andoche de Saulieu—para quem havia doado as terras—que uvas brancas fossem plantadas em uma parte da colina. Surgia a denominação Corton-Charlemagne, um dos grandes ícones entre os vinhos brancos franceses.

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Historiadores apontam que a propriedade doada por Carlos Magno hoje corresponde às terras do Domaine Bonneau du Matray. Mas não foi somente o vinho da França que teve a mão do imperador. Ele teria sido proprietário do vinhedo alemão Schloss Johannisberg, que produz um dos mais célebres Rieslings do mundo. Além disso, ele tinha terras e teria incentivado o cultivo de vinhas em Anjou e na Alsácia, com o Grand Cru Pfersigberg, por exemplo, assim como apreciava o vinho de Cornas.

A verdadeira importância histórica

No entanto, lendas à parte, a importância de Carlos Magno para a viticultura francesa (e de outras regiões europeias) é crucial. A história da barba manchada não é a única (ou melhor) hipótese para o monarca francês ter solicitado a produção de vinhos brancos na Borgonha. Há uma explicação política, pois tais vinhos eram apreciados por ingleses e alemães, e isso facilitava a diplomacia e os contatos comerciais.

Foi ainda neste início do período carolíngio que começaram a ser produzidos os primeiros vinhos "hand-made", que atendiam aos interesses e gostos do mercado consumidor e não do produtor apenas. Assim, começaram também as primeiras noções de terroir. Antes de morrer, ele ainda deu ordens expressas para que seus súditos se ocupassem corretamente da produção e comercialização do vinho no reino.

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