Os vinhos biodinâmicos da Borgonha surgiram há 30 anos em meio as discussões sobre o futuro do planeta
Steven Spurrier Publicado em 16/01/2019, às 17h00 - Atualizado em 17/01/2023, às 15h55
Biodinamismo moderno só chegou na Borgonha em meados dos anos 1980, e apesar de apenas uma pequena porcentagem dos produtores – boa parte limitada às propriedades top – aplicar esse tipo de viticultura baseada no calendário lunar, muitos são certificados orgânicos e é fácil verificar que seus vinhedos são saudáveis e sustentáveis.
O conceito foi encabeçado por Lalou Bize-Leroy e o Domaine de la Romanée-Conti, em Côte de Nuits, e os Domaines Lafon e Leflaive, na Côte de Beaune, em um momento que se discutia o meio-ambiente, como no encontro Eco-92, evento que há trinta anos tratou do tema de forma global.
Somente há três décadas, devido ao uso excessivo de químicos espalhados por meio de tratores que compactavam o solo, sufocando assim seu vigor natural, o agrônomo Claude Bourguignon soou o alarme declarando que “havia mais vida no deserto do Saara do que nos solos da Borgonha”. Hoje, cavalos podem ser vistos arando as fileiras entre as vinhas e a regeneração do solo é a principal razão por trás da qualidade das safras deste século.
Vale a pena ressaltar que o termo biodinâmico vem de duas palavras gregas: “bios” (vida) e “dynamos” (energia). E sua influência está no solo e na saúde da vinha, não se propagando para a vinificação. De fato, a vinificação, na França, é, de certa forma, vista negativamente – o grande Jean “Johnny” Hugel dizia que a língua francesa não tem essa palavra (winemaking) – e se o biodinamismo faz seu serviço no vinhedo, o trabalho na cantina é muito mais simples.
Ao ser perguntado sobre como o Domaine de la Romanée-Conti produz vinhos de tanta pureza e expressão, Aubert de Villaine responde: “Nós apenas colhemos as uvas quando elas estão maduras”. Biodinamismo é uma abordagem holística na agricultura, que trata o vinhedo como um sistema vivo que interage com o meio ambiente de acordo com o ritmo cósmico do alinhamento planetário para construir (ou reconstruir) um solo saudável.
Quando Nicolas Joly empregou tais métodos pela primeira vez – baseado numa série de palestras do filósofo e cientista austríaco Dr. Rudolf Steiner, em 1924 – na sua famosa propriedade familiar Clos de la Coulée de Serrant, em Anjou, no final dos anos 1970, ele foi visto com suspeição, quase com escárnio. O fato de o sistema de gerenciamento do vinhedo, cujas origens estão perdidas na história, ter se tornado um dos fundamentos para a qualidade no vinho deve-se largamente à sua determinação.
Nossas visitas começaram nas caves históricas de Joseph Drouhin, no centro de Beaune, com uma degustação de benchmarks da Borgonha – Chablis 1er Cru Mont de Mileu 2013 do Domaine de Vaudon, um belo Meursault Villages 2011, Puligny-Montrachet 1er Cru Les Folatieres 2012, Nuits St Georges 1er Cru Damodes 2008, Beaune 1er Cru Clos des Mouches 1996 e mais três vinhos magníficos – Beaune Clos des Mouches 2001 branco, Mazis-Chambertin Hospices de Beaune 2008 e Beaune Clos de Mouches 1993 tinto.
Isso nos mostrou o quão maravilhosamente vinhos dos principais vinhedos vão evoluir se você tiver a paciência de esperar. Os tintos de 2002 de minha adega estão prontos agora, os 2005 estão começando a se abrir, os leves 2008 estão se mostrando bem, enquanto os 2009 e 2010 precisam de mais alguns anos.
O primeiro dia foi devotado à Côte de Nuits. Iniciando pelo Domaine Michel Magnien, em Morey-Saint-Denis, Frederic Magnien (da quinta geração) explicou seus objetivos em revitalizar e intensificar a vida orgânica do solo, praticando a viticultura de fases cósmicas biolunares que permite às vinhas se fortalecerem e se energizarem graças aos poderes naturais.
Sua filosofia de criar “a pura e perfeita tradução dos terroirs da Borgonha” levou-o a deixar de usar as barricas de carvalho tradicionais de 228 litros da Borgonha e optar pelas “jarras” de argila terracota de 160 litros com estilo de ânfora. Ele já tem 106 delas na adega e encomendou muitas mais. Isso não adiciona sensações amadeiradas ao vinho, ao mesmo tempo que a microporosidade traz menos oxigenação, obtendo assim sabores mais redondos e minerais enquanto se protege a pureza dos aromas.
Uma degustação do seu Bourgogne Pinot Noir e Morey-Saint-Denis Tres Girad 2015 e 2014, ao lado de safras mais antigas, provou seu ponto de vista.
A “pureza de expressão” é um resultado reconhecido da viticultura biodinâmica e foi vista novamente nos vinhos da pequena propriedade de Chambolle-Musigny, Amiot-Servelle, e em mais cinco denominações – Morey-Saint-Denis 1er Cru, Gevrey-Chambertin 1er Cru Les Combottes, Vosne-Romanée 1er Cru Les Malconsorts e dois Grand Crus, Clos St. Denis e Clos de la Roche – da excelente safra 2014 que Alec Seysses apresentou no Domaine Dujac, em Morey-Saint- -Denis, onde a vinificação integral de cachos, rara na Borgonha, é a norma. Seu raro branco Morey-Saint-Denis 1er Cru Les Monts Luisants harmonizou perfeitamente com salmão fresco em um almoço no excelente Castel Tres Girard.
Se em Dujac pouca atenção é dada aos princípios biodinâmicos, eles são mais presentes em Rossignol-Trapet, em Gevrey-Chambertin, onde a fermentação começa com um terço de cachos integrais, tudo com leveduras indígenas e apenas um trasfego antes do engarrafamento.
O vigor natural e a suavidade da textura de seus 2013 – Beaune 1er Cru Les Teurons, Gevrey-Chambertin Vieilles Vignes, Gevrey-Chambertin 1er Cru Clos Prieur, Gevrey-Chambertin 1er Cru La Petite-Chapelle e os Grand Crus, Latricieres-Chambertin e Le Chambertin – foram assombrosos. Tenho acompanhado os vinhos de Rossignol-Trapet desde 2002 e a qualidade de seus vinhedos, especialmente em uma safra difícil como 2013, brilha mais e mais.
Depois de um delicioso jantar no Ma Cuisine, no centro de Beaune, meu restaurante favorito e com uma ótima carta de vinhos, fomos na manhã seguinte ao Château de Monthélie, a propriedade histórica da DOC Monthélie, sobre Pommard e Meursault. Aqui, atrás do pátio de fora da vinícola, estavam duas dúzias de pessoas em uma comprida mesa tirando o estrume de centenas de chifres de vaca – que havia se solidificado depois de seis meses de inverno no solo borgonhês.
É essa substância que será “dinamizada” em 500/1 através da adição de água da chuva, centrifugada tanto em sentido horário quanto anti-horário para criar um vórtice perfeito, e então espalhada pelos vinhedos. Para eles, isso é muito melhor do que os fertilizantes artificiais dos anos 1970 e 1980. Mais uma vez, o vigor natural e a pureza brilham, com os 2001 ainda mostrando soberbos sabores, textura e pegada.
O almoço foi na La Maison d’Olivier Leflaive, uma parada obrigatória para qualquer um que visite Puligny-Montrachet. Por 75 euros, um belo almoço é servido com uma degustação de 10 vinhos, desde Villages até Grand Crus da excelente seleção Olivier Leflaive Freres. À tarde, fomos até Mercurey na Côte Chalonnaise, onde a família Devillard abriu uma magnífica sala de degustações com restaurante, ao lado do Château de Chamirey, do século XIX, para mostrar aos visitantes a alta qualidade de seus tintos e brancos de Mercurey, além dos brancos do recém adquirido Domaine de la Garenne, em Maconnais, e dos tintos Premier Grand Cru de seu Domaine des Perdrix em Nuits-Saint-Georges.
Depois disso, tivemos outro ótimo jantar, em Beaune, no singular winebar Le Bistro Bourguignon, onde a grande lista de vinhos permitiu escolher três vinhos soberbos de propriedades biodinâmicas – um branco Rully Les St. Jacques 2013 do Domaine A&P de Villaine, Savigny-lès- -Beaune Aux Grands Liards 2012 de Simon Bize et Fils, e uma maravilhosa magnum de Volnay 1er Cru Les Santenots 1999 do Domaines de Comtes Lafon.
O terceiro dia começou no Domaine Jacques Prieur, em Meursault, onde Martin Prieur admitiu que seus vinhedos nos melhores locais, tanto da Côte de Beaune quanto da Côte de Nuits, foram “completamente repensados” nos últimos 20 anos, e a qualidade mostra frescor e profundidade. Então fomos ao Domaine Jean-Noel Gagnard, em Chassagne-Montrachet, onde, após sua impressionante linha de brancos e um adorável Clos Saint Jean tinto, Caroline L’Estime mostrou seu primeiro Crémant de Bourgogne, um 2009 totalmente de Pinot Noir.
Esse Crémant é uma força a ser reconhecida e ficou evidente durante a noite quando o provamos ao lado de aperitivos antes do esplêndido jantar no Bouchard Aine, onde degustamos um “Grands Terroirs” 2007 de uvas Petit Chablis e um “Tete de Famille” 2002 de uvas vindas do 1er Cru Beaune Montee Rouge, ambos cheios de vitalidade e complexidade.
Entre tantas ótimas visitas, o ponto alto foi no Domaine d’Angerville, propriedade renomada e histórica de Volnay, onde o “monopole” Clos des Ducs, vinhedo murado no topo da vila, não mudou um metro de seus 2,15 hectares desde seu cultivo original há 600 anos.
Guillaume d’Angerville explicou que a conversão para o biodinamismo começou em 2006 e, apesar de ele atualmente vinificar 100% dos cachos sem pedúnculo com grande precisão, pode também experimentar com cachos inteiros “se for forçado a isso”. A degustação preparada por ele teve seus seis Volnay Premies Crus da safra 2013, de uma colheita tardia, que começou somente em 3 de outubro. O Clos des Angles tinha maravilhosas frutas negras. O Fremiet, um pouco de suavidade e final mineral. O Caillerets mostrou sedutoras groselhas pretas apimentadas e riqueza natural. O Taillepieds, de um lugar mais frio e mais alto, tinha uma boa pegada, profundidade, precisão e classe. Champans era menos “fechado” com mais charme.
Finalmente, Clos des Ducs, cujas vinhas têm 45 anos em média, era tão aveludado quanto firme, mais floral, às vezes picante, com grande energia natural e “classe descontraída”. Certamente, enquanto se pode abrir uma garrafa de Clos de Angles no próximo ano, o Clos des Ducs deve ser guardado por uma década. Isso ficou provado por dois vinhos adoráveis da subestimada safra 2000 – um Clos des Angles ainda jovem e elegantemente vigoroso e um Clos des Ducs mais rico e terroso com profundidade encantadora.
Por coincidência, dois meses antes, fui a uma degustação em Londres com Guillaume d’Angerville que mostrou a mesma linha de Premiers Crus da safra 2014, a qual ele comparou com 2008, 2011 e 2013, “mas um pouco melhor”.
Aqui a qualidade já estava presente na taça, com os diferentes Crus mostrando individualidades similares, desde o Clos des Angles, passando pelo sedoso, porém firme Fremiet, o classicamente estruturado Caillerets, o mais expressivo, mas ainda mais tânico Taillepieds, o ricamente aveludado Champans, atingindo um crescendo de profundidade de vinhedo, harmonia e duração com o Clos des Ducs, o inquestionável “Grand Cru” de Volnay.
No almoço, tivemos Les Champans, primeiro da robusta safra 2012 (concentrado de uma colheita em que o granizo reduziu em três quartos), depois um elegante 2011 em magnum e um esplêndido 2009 – modestamente descrito por d’Angerville como mostrando “uma boa combinação entre sensualidade e classe” do que ele diz ter sido a última safra “normal/clássica” na Borgonha. Dois 2007 se seguiram – Champans e Clos des Ducs –, ambos em magnum. Uma safra que está pronta agora, mas as últimas colheitas mostram a mistura de pureza, energia e harmonia que os vinhedos de cultivo biodinâmico podem trazer.
Para resumir, a Borgonha é um caleidoscópio em personalidade e a biodinâmica permite que ele brilhe ainda mais.
* Texto originalmente publicado em janeiro de 2019 com o título
"Os vinhos biodinâmicos da Borgonha" , foi republicado após atualização