Borgonha: a tradição e o charme do vinho francês

por Aguinaldo Záckia Albert

Vinhedo do Domaine de la Romanée-Conti, em Vosne-RomanéeO Château Pierre André, em Aloxe-Corton
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Vista dos vinhedos de Chablis

Não se sabe ao certo quem introduziu a vinha nessa região situada bem no coração da França, mas podemos afirmar que os invasores romanos já a encontraram ali quando chegaram, por volta do século II d.C.. Os povos celtas, que habitavam o local, já cultivavam a vinha nessa época e a influência romana foi fundamental para que se produzisse bom vinho. Dados históricos nos permitem falar em uma vitivinicultura borgonhesa desenvolvida em termos comerciais já no século IV.

Com a desintegração do Império Romano, a região foi tomada por uma série de povos bárbaros vindos do norte. Sucessivamente, francos, alamanos e vândalos invadiram a região, chegando depois os burgúndios – povo originário da Escandinávia, que ali se fixou e emprestou seu nome a essas terras, formando um grande reino que se estenderia de Dijon a Lyon.

Esse povo tomou para si a tradição romana da vitivinicultura e a conduziu pela história. Mais tarde, com a conversão da população local ao cristianismo, coube à Igreja, principalmente aos monges beneditinos de Cluny, cuidar com carinho da manutenção dos vinhedos e da produção do vinho.

Resumindo bastante a história, o vinho da Borgonha chega aos nossos dias como um dos mais prestigiados da França – dividindo as preferências com os vinhos de Bordeaux – e de todo o mundo.

O paralelo existente entre as duas regiões é bastante curioso e merece ser citado. Se em Bordeaux nós temos uma forte influência protestante, devido à sua proximidade com a Inglaterra, na Borgonha, a presença da Igreja e de seus monges – os grandes “enólogos” da Idade Média – é fortíssima. Em Bordeaux, encontramos propriedades relativamente grandes, chamadas de Châteaux; na Borgonha, predominam as pequenas propriedades quase sempre com gestão familiar, normalmente denominadas Domaines. Os vinhos bordaleses – tanto os tintos quanto os brancos – são de corte ou mescla, nos quais entram várias uvas; os da Borgonha são mono-varietais. Os tintos de Bordeaux, onde predominam as uvas Cabernet Sauvignon e a Merlot, são adstringentes, viris e longevos, sendo tradicionalmente associados aos valores masculinos; na Borgonha, o vinho é amável e delicado, o que o leva a ser definido como mais feminino. Como se vê, as diferenças não são poucas entre as duas mais notáveis regiões francesas e, no entanto, os vinhos de ambas podem ser formidáveis, cabendo ao gosto de cada um fazer a escolha.

fotos: Aguinaldo Záckia Albert
Pátio do Domaine Laroche, em Chablis

O aficionado do vinho é, muitas vezes, surpreendido por exemplares medíocres, pelos quais pagou uma soma considerável e dos quais esperava muito mais. Por outro lado, a experiência de se degustar um grande Borgonha proporciona um prazer enorme e, muitas vezes, inesquecível. É nesse terreno incerto, de altos e baixos, que se deve mover o enófilo para fazer sua escolha, sendo desnecessário dizer que uma boa dose de experiência é muito importante para evitar surpresas. Em nenhuma outra região uma análise de denominações de origem, crus, produtores e safras é tão importante para se fazer uma escolha quanto na terra da caprichosa uva Pinot Noir.

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Conhecida pela excelência de seus vinhos, a Borgonha é também considerada a capital gastronômica da França. Notável por sua paisagem, seu patrimônio histórico e arquitetônico medieval são riquíssimos, e a beleza de cidades como, por exemplo, Beaune é inesquecível. Os resquícios do antigo esplendor não são facilmente encontrados quando se viaja pelo interior e o que se vê hoje é a beleza simples e rústica de seus campos e construções. As grandes propriedades não mais existem, deram lugar a pequenos lotes de terra depois que Napoleão realizou a sua reforma agrária, dividindo as propriedades da Igreja. A fragmentação dos vinhedos hoje é tão grande que a média das propriedades é de pouco mais de um hectare. A Clos de Vougeot, por exemplo, conta com mais de 60 proprietários em seus 50 hectares.

Borgonha em Números

Extensão dos vinhedos
24.000 hectares

Produção
1.200 000 hl./ano

Cor dos vinhos
52% brancos/ 48% tintos

Localização, solo e clima
É surpreendente que uma região localizada em uma zona de clima tão frio e hostil (estamos falando do paralelo 47º de latitude Norte) possa produzir vinhos tintos de tão alta qualidade.

O clima da Borgonha é do tipo continental, com invernos bastante rigorosos e primaveras sujeitas a muitas geadas. Devido a situação favorável de seus vinhedos – localizados em encostas com declives suaves e boa exposição ao sol, orientados nos sentidos sul, sudeste e leste –, as uvas ficam protegidas das geadas e dos ventos, o que torna possível o sucesso do cultivo da vinha. Os outonos secos e os verões quentes vão também contribuir para a maturação das uvas. A média anual de pluviosidade é de 690 ml.

A altitude média da região é de 220 metros. São muitas as variedades de solos, predominando, no entanto, os solos calcários e pedregosos. Tais composições mudam em distâncias relativamente curtas e, associadas às variáveis microclimáticas, vão produzir um grande número de terroirs, fator determinante para que haja um grande número de denominações de origem e de crus.

fotos: Aguinaldo Záckia Albert
Pátio interno da Abadia de Fontenay, visita obrigatória para quem visita a Borgonha

Regiões
Apesar de sua área produtora não ser muito extensa (representa apenas 1/6 do tamanho de Bordeaux), são produzidos ali alguns dos melhores vinhos da França. E também, na média, os mais caros. Eis os principais vinhedos da Borgonha, caminhando do Norte para o Sul:

1 - Chablis – (4.000 ha.) É a região mais setentrional da Borgonha, 160 km ao norte de Beaune, bem próxima de Paris e da Champagne. O clima da zona é tremendamente rude e frio, no entanto, é capaz de produzir brancos formidáveis. O segredo é sua geologia: o afloramento da camada superior de uma grande área submersa de calcáreo, fruto de um acúmulo de conchas de ostras que remontam à pré-história. Como se vê, a combinação clássica Chablis-ostras tem uma origem mais longínqua e insuspeitada do que se poderia imaginar.

O Chablis é um vinho duro, mas não áspero, que nos faz recordar minerais e pedras ao mesmo tempo em que se associa ao feno verde. Um Chablis Grand Cru tem grande personalidade, é austero, longo, envelhece bem e vai ganhando um leve e delicioso amargor com a idade, perdendo aos poucos seus reflexos verdes, uma de suas marcas registradas.

O Chablis divide-se em quatro grupos. Os Grands Crus, mais ricos em sabor, originários de uma região ao sul e a oeste, que rodeia o rio e o pequeno povoado de Chablis. São vinhos que alcançam notável complexidade com a idade. O Les Clos e o Vaudésir são os melhores. Os Premiers Crus vêm logo a seguir, sendo menos intensos em aroma e sabor do que os primeiros e com teor alcoólico mais baixo. Ainda assim, são muito bons. Seguem-se o Chablis comum e o Petit Chablis, este de poucos atrativos.

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Nosso articulista em degustação com a enóloga da Maison Champy, em Beaune

2 - Côte d ‘Or - Faixa estreita de encostas situada no centro da Borgonha, se estende de Dijon a Santenay. Produz tintos e brancos notáveis. Divide-se em duas partes: Côte de Nuits (ao norte, 1.500 ha.) e Côte de Beaune (ao sul, 3.000 ha.), e é o mais rico e afamado dentre os vinhedos da região.

Na Côte de Nuits (1.500 ha.) vamos encontrar os tintos mais ricos, longevos e de maior prestígio. É a região de Chambertin, Gevrey-Chambertin, Morey-Saint-Denis, Chambolle-Mussigny, Vougeot, Vosne-Romanée (onde se produz o legendário Romanée-Conti) e Nuits-St-Georges.

A Côte de Beaune (3.000 ha.) produz alguns dos melhores brancos do planeta, todos à base de Chardonnay, sendo seus principais vinhedos Aloxe- Corton (berço do Corton-Charlemagne), Pommard (produtor de tintos), Volnay, Mersault, Puligny-Montrachet (onde vamos encontrar o melhor, mais famoso e caro dos brancos, o Montrachet) e Chassagne-Montrachet.

3 - Côte Chalonnaise (1.500 ha.) - Mais ao sul e menos importante que a anterior, estão ali Rully, Mercurey, Givry e Montagny, pequenos vilarejos produtores de vinhos brancos e tintos com melhores preços.

4 - O Mâconnais (5.000 ha.) - Junto ao rio Saône encontramos a cidade de Mâcon, 55 km ao sul de Chalon. Produz o Mâcon, tinto e branco, vinhos com menos atrativos que os anteriores. Já o Pouilly-Fuissé (sempre branco) é um vinho delicado e muito interessante. Outros Crus: Pouilly-Vinzelles, Pouilly- Loché e Saint-Veran.

5 - O Beaujolais (22.000 ha.) – Vale aqui como uma citação. É o vinhedo que fica mais ao sul, próximo a Côtedu- Rhône, ao norte de Lyon, e poderia merecer um capítulo à parte. Em termos administrativos, o Beaujolais é parte da grande Borgonha, mas se formos analisar seu clima, topografia, tipos de solo e variedades de uvas plantadas, as diferenças são muitas. Sua produção é bem maior do que todos os vinhedos situados ao norte somados (mais de 1 milhão de hectolitros), basicamente originária da uva Gamay. O Beaujolais é um vinho leve, frutado, agradável, mas de pouca complexidade. Um vinho para ser bebido, não para ser degustado, como observa muito bem Lichine. Pode ganhar as seguintes denominações: Beaujolais, denominação básica e mais comum; Beaujolais Supérieur, quando o teor alcoólico atinge os 10,5; Beaujolais-Villages, produzido nas colunas ao norte, originário de uma cidade (ou comuna) apenas; Crus de Beaujolais, os de qualidade superior, com dez denominações possíveis; e o emergente Beaujolais Nouveau, fruto de fermentação carbônica e de vida curtíssima.

foto ilustrativa

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