Mistérios da garrafa

Desvende o Vin Santo e todas suas histórias

Curava a peste? Veio de Santorini? Homenageia o Dia de Todos os Santos? O que esse vinho faz?

por Por Arnaldo Grizzo

Religião e vinho sempre estiveram ligados. Então, não é de se estranhar que exista um vinho santo. Pois bem, o Vin Santo, ou Vino Santo, é uma tradição italiana cujas origens são bastante incertas, o que, como quase tudo também na religião, dá margem para diversas teorias e interpretações.

Para quem prefere seguir uma linha mais religiosa, uma hipótese é que o esse famoso vinho de sobremesa tenha se originado na Itália, mais especificamente na região da Toscana (onde ele é mais celebrado e produzido atualmente, fazendo parte de diversas Denominações de Origem) e o nome, Vin Santo, dever-se-ia ao seu uso nas missas. Há quem suporte a teoria de que, por ser adocicado, ele agradaria o paladar das crianças na hora da comunhão, por isso era usado.

Ou seja, segundo essa tese, ele seria santo pois estaria associado ao sacramento da eucaristia. Outra teoria, contudo, dá ao vinho poderes verdadeiramente divinos de cura, daí sua “santidade”. Assim, acredita-se que, no século XIV, um frade franciscano de Siena usava o vinho que sobrava das missas para tratar dos doentes da peste, alcançando curas milagrosas.

Santo ou Xantho?

Há uma lenda ainda mais bem elaborada que também está ligada à religião, porém não é tão filosófica, e sim mais “de marketing”. Segundo ela, o nome Vin Santo teve origem com o patriarca da igreja de Constantinopla, o cardeal Basílio Bessarion (um dos nomes fortes do catolicismo no século XV, tendo lutado para unir a Igreja Católica à Ortodoxa, além de ter participado decisivamente de campanhas das Cruzadas e traduzido diversas obras de filósofos gregos). Durante o histórico Concílio de Florença (que uniu as duas igrejas por um breve momento), nos anos 1440, Bessarion teria sido servido com uma taça de um vinho local, denominado “vin pretto”. Diz-se que, depois de apreciar a bebida, o clérigo teria exclamado: “Este é o vinho de Xanthos”, referindo-se à cidade da Antiga Grécia de mesmo nome, que produzia um “vinho de palha” (estilo passito). Há quem diga, porém, que o cardeal usou a palavra grega xantho, que significa “dourado”. Apesar das variações, todos concordam que os florentinos não entenderam direito o que Bessarion havia dito, interpretaram como se fosse “santo” e passaram a promover seu vinho dessa forma.

Há ainda outra vertente que liga o Vin Santo à religião. Segundo ela, o nome se deve ao fato de o mosto começar a fermentar no dia de Todos os Santos, no primeiro dia de novembro, e se engarrafado no fim de semana de Páscoa.

No entanto, outra hipótese bastante plausível é a de que tanto o vinho quanto o nome tenham surgido devido à ilha de Santorini, na Grécia. Durante muitos anos, a ilha foi dominada por mercadores venezianos que pegavam o vinho doce natural lá produzido e o vendiam na Itália, rotulando-o de forma abreviada somente como “Vin Santo”.

Grego ou toscano?

Independentemente da origem, o Vin Santo logo se espalhou pela Itália. Só na Toscana, atualmente, há mais de 10 DOC que regulam sua produção. Mas ele é feito também em Marche e no Trento. Apesar de as regras de cada denominação de origem permitirem variações nas cepas usadas e no tempo de amadurecimento em barricas, por exemplo, o Vin Santo italiano sempre é feito de uvas que passam por processo de secagem, apassimento, depois de colhidas. Elas são postas geralmente sobre esteiras de palha em locais ventilados e quentes para poderem secar e, assim, concentrar os açúcares. Esse mosto concentrado fermenta, continua com uma boa dose de açúcar residual e é colocado para maturar, costumeiramente em pequenas barricas, por cerca de três anos, pelo menos. Mas há produtores e DOCs que exigem mais tempo e alguns podem envelhecer por até 10 anos. Esse tempo faz com que parte do volume seja perdido por evaporação e o líquido entre em contato com o ar. O tom âmbar, típico do vinho, deve-se a esse processo de oxidação em barrica.

Contudo, apesar de tradicionalmente ser um vinho doce, o Vin Santo também pode ser seco, num estilo parecido com o Jerez Fino. Alguns também podem ser fortificados, ou seja, acrescidos de aguardente vínica durante o processo de fermentação, como os Vinhos do Porto, e costumam ser rotulados como Vin Santo Licoroso. Outro detalhe é que o Vin Santo tende a ser feito com variedades brancas (Malvasia e Trebbiano, majoritariamente), mas também pode ser produzido com tintas (geralmente Sangiovese, o que lhe dá um tom rosé) e é chamado de Occhio di Pernice – ou seja, olho de perdiz. Esse estilo costuma ter uma DOC própria em várias regiões.

E vale lembrar que o Vinsanto grego, feito em Santorini, apesar de também ser doce e ostentar cor âmbar, difere de seu “parente” italiano em alguns detalhes importantes no que tange ao processo de produção. Primeiramente, ele costuma ser feito de Assyrtiko, majoritariamente, e complementado com outras duas castas locais, Athiri e Aidani. Mas, a principal diferença está no fato de suas uvas concentram açúcares por serem deixadas secar na vinha, sob o sol, e não passarem por processo de apassimento. Assim como o Vin Santo, ele também costuma envelhecer por cerca de três anos em barricas, mas sem sofrer tanta oxidação. Assim, costuma ter mais acidez do que os italianos, além de apresentar uma paleta aromática diferente. Ambos, contudo, possuem enorme potencial de guarda.

Santo ou não, este é um vinho que os italianos consideram de meditação. Talvez nessa oportunidade de acalmarmos a mente enquanto o sorvemos esteja o segredo da sua santidade.

 Cantucci

Uma das maiores tradições gastronômicas toscanas é uma taça de Vin Santo acompanhada de um pedaço de cantucci, o típico biscoito de amêndoas local, à sobremesa. O duro biscoito é embebido no líquido para amolecer e acentuar seu sabor. Não há refeição na Toscana que não termine dessa forma.

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