Degustamos com exclusividade os rótulos da Quinta dos Murças, com seus vinhedos verticais
por Christian Burgos
“Neste processo de certificação orgânica em larga extensão, por conta da diferença de umidade, no Douro o desafio é gerir os fungos, ao passo que no Alentejo o desafio é gerenciar as pragas. No Alentejo, o Esporão chega a criar morcegos para controlar as pragas naturalmente”, diz o enólogo José Luis Moreira da Silva
O Quinta dos Murças já havia nos arrebatado no passado quando seu VV47 safra 2012 recebeu AD 96 pontos e foi um dos quatro vinhos do ano em nosso “Top 100” de 2016. Desta vez, reencontramo-nos com este notável rótulo português. Em viagem ao Brasil, José Luis Moreira da Silva, enólogo (embora formado em Microbiologia) da Quinta dos Murças, convidou as revistas ADEGA e Sabor.club para uma detalhada e exclusiva degustação dos vinhos do ambicioso projeto do Esporão no Douro.
Além da satisfação de provar mais uma vez o VV47 2012, temos a oportunidade de avaliar sua evolução, uma vez que nosso editor de vinhos Eduardo Milan degustou-o recém-engarrafado e antes de seu lançamento. Temos, ainda, a oportunidade de escrutinar e compreender mais a fundo a vinícola e seu potencial. Combinamos uma degustação de vários vinhos da vinícola, incluindo uma vertical de quatro safras do Quinta dos Murças Reserva (2011, 2010, 2009 e 2008).
José Luis produz vinhos no Douro há mais de uma década, e está trabalhando na vinícola há um ano e meio. “Apesar de a Quinta dos Murças ser muito antiga, com os primeiros registros datando de 1714, por onze anos passei em frente à propriedade sem nunca ter despertado minha curiosidade, pois não era muito conhecida. Mas quando adentrei pela primeira vez fiquei completamente arrebatado pela força da própria quinta, sua diversidade e sua verdadeira identidade que ainda permanece desconhecida e misteriosa”, revela o enólogo.
Em 2008, o Esporão, conhecido por seus vinhos do Alentejo, decide ir ao Douro e comprar a Quinta dos Murças. “Eu acho que, quando tomaram essa decisão de compra, não havia o conhecimento de todo o potencial da quinta. Havia um conhecimento da parte histórica, do que era mais visível, mas havia muito por descobrir. E hoje estou cada vez mais convencido de que há um tanto de sorte nessa história toda”, confessa José Luis.
O enólogo da Quinta dos Murças explica que o trabalho que está sendo feito lá é muito diferente daquele que usualmente acontece no Douro. “Acredito que nosso trabalho tem sido extrair e expressar nos vinhos esta singularidade que está presente na Quinta”.
A Quinta dos Murças está localizada no início do Cima Corgo, na fronteira com o Baixo Corgo, o que determina a característica climática do local. Ou seja, há precipitação média superior ao que encontramos no Cima Corgo alinhado a temperaturas mais baixas. Mas uma condição em particular marca o perfil dos vinhos da vinícola, que é sua posição na margem direita do rio Douro, com exposição sul para a maioria de suas vinhas – isso colabora para a boa maturação das uvas. José Luis acredita que, além da localização, as diferenças de altitude dos vinhedos, que se estendem de 100 a 300 metros, colaboram para a existência de diversos microclimas e expressões.
Murças não tem a imagem tradicional do Douro, sendo a primeira quinta a ter vinhedos “verticais” na região conhecidas por “vinhas ao alto” e diferente dos tradicionais vinhedos em patamares. Plantados em 1947 em posição perpendicular ao rio, estes vinhedos repousam em terrenos com inclinação de 47 graus. As pessoas quase têm de se amarrar para a colheita. Até José Luis pensa duas vezes antes de descer. “Porque depois, para subir...”, brinca o enólogo.
“Qualquer enólogo que procura fazer vinhos mais expressivos tem na acidez um fator crítico”
Com 88% dos vinhedos de “vinhas velhas” (plantadas antes de 1980) dispostos na vertical, a propriedade tem uma densidade muito superior àquela considerada normal em patamares, com 8.000 plantas por hectare em vez de 4.000, gerando uma enorme competição entre as videiras e uma produção de apenas um a dois cachos por pé.
A verticalidade dos vinhedos permite, segundo José Luis, uma agricultura mais biológica, porque existe prevenção de erosão e não há aplicação de herbicidas para controlar a vegetação. As videiras em linha vertical e ao sul recebem sol de manhã até a tarde e geram canais de vento do, e para, o rio.
A decisão inicial de realizar a plantação desse modo se deu por conta de uma viagem que um antigo gestor da quinta fez ao Reno, onde percebeu o ganho na densidade dos vinhedos assim plantados, uma experiência que deu certo e mantém as vinhas intactas até hoje.
Hoje é proibida a plantação de vinhas verticais no Douro com declive superior a 35%. “Toda nossa quinta não seria possível hoje”, diz o enólogo. Existem duas razões para esta proibição, uma estética e outra técnica, esta última associada à erosão. José Luis contesta a técnica. “Por praticarmos a agricultura biológica, sem a aplicação de herbicidas, temos um enrelvamento entre as linhas de videiras e, também, por serem plantadas com mais densidade, as plantas geram um enraizamento maior à terra”.
“Quando o Esporão decide vir ao Douro, em 2008, toda gente pensou, inclusive eu: que raios estão fazendo? Toda gente indo para o Douro Superior e eles vão para uma zona mais úmida e fria?”
A pergunta que fica ao ar é como replantar estes vinhedos quando for necessário? “Essa é uma batalha que vamos começar, fazendo um estudo sério para provar que nós temos menos erosão aqui. Hoje, se quisermos plantar, manter ou replantar, não podemos”, critica José Luis. De fato, em algumas imagens percebemos significativas falhas nos vinhedos quando as vinhas velhas vão morrendo e não podem ser replantadas. Em alguns trechos, há falhas superiores a 30%. Para nós, fica a certeza de que esta plantação faz parte da própria personalidade e história da quinta e do Douro.
Na quinta de 150 hectares existem cerca de 50 hectares de vinhedos, que dão origem a 50 “talhões” vinificados em separado, gerando 50 vinhos. Tudo é vinificado separadamente, dando expressão aos diversos microclimas. “Tome como exemplo dois de nossos vinhedos, ambos Tinta Roriz, vinificados em separado. A casta parece ser outra. Há qualquer coisa que está a se passar lá, que não é a orientação ou a altitude, pois são similares, que deveria explicar isso”.
Perseguindo a explicação, contrataram e desafiaram um grupo de especialistas franceses que fizeram um mapeamento da Borgonha para explicar o que ocorria. Este estudo acabou por identificar oito diferentes terroirs em 50 hectares de vinhedos, quando a unidade média por terroir é de 100 hectares. José Luis se encanta ao dizer que “é alguma coisa fora do tradicional e de uma profundidade tão grande que estamos continuando os estudos”.
A partir desta realidade, a missão foi “expressar a diversidade destes terroirs em vinhos muito distintos numa mesma quinta, preservando e respeitando ao máximo a natureza, interferindo o mínimo possível na expressão da origem quer na vinha quer na adega”. Luis fala com orgulho da coragem de João Roquette, CEO do grupo Esporão, ao decidir ter 100% de seus 643 hectares cultivados (45% vinhedos, 53% olivais e 2% laranjal) em produção biológica e com certificação orgânica, “afinal são 20% a mais de custos e 20% a menos de produção”.
Provamos oito vinhos da Quinta dos Murças
AD 90 pontos
ASSOBIO 2014
Quinta dos Murças, Douro, Portugal. Esta safra provém de um vinhedo mais elevado, sendo a única parcela com orientação ao norte. Uma das regiões mais frescas da quinta, o que se expressa neste corte de variedades típicas do Douro. Apenas 20% estagia em barricas bem usadas de madeira e os outros 80% estagiam em cubas de concreto, o que colabora para sua textura. Gosto muito da fruta, que, apesar de carnuda, é bastante fresca e com taninos na medida. Um vinho acessível a novatos, mas capaz de encantar iniciados com sua honestidade e franqueza. Sua personalidade não se esconde sob nenhuma maquiagem. CB
AD 93 pontos
QUINTA DOS MURÇAS MINAS 2015
Quinta dos Murças, Douro, Portugal. No trio lagar, pisa a pé e leveduras indígenas, este vinho é elaborado de uma meia encosta onde inicia-se a vindima. Apesar da exposição sul, é a existência de cinco minas d’água na encosta que vão refrescar o ambiente. É uma vinha muito verde, daí a inspiração para cor verde do rótulo. Nove meses de estágio em concreto natural com um mínimo passando por barrica. Em boca é um vinho entusiasmante. Um equilíbrio entre a concentração e o frescor. Faz pensar e querer voltar a taça para descobrir mais. Tem força e corpo, mas, ao mesmo tempo, limpo e delicado. A palavra que o define é a elegância com nariz a ervas seguida de frutas e deliciosa textura de taninos. Um vinho com produção total de 12 mil litros. CB
AD 92 pontos
QUINTA DAS MURÇAS MARGEM 2015
Quinta das Murças, Douro, Portugal. Também lagar, pisa a pé e leveduras indígenas. Há um ditado que diz que as melhores uvas para fazer um Porto Vintage são aquelas que ouvem a água a bater no casco dos barcos. Destes vinhedos próximos ao rio é que nasce o Margem. Tem a característica do Douro puxado num estilo exuberante. Taninos marcados dos Vintages. TRÊS DEGUSTAÇÕES EM UMA Provamos oito vinhos da Quinta dos Murças Muito concentrado. Precisa de tempo de garrafa. Tem o perfil do calor das áreas próximas ao rio. Elaborado em pipas de 500 litros. Ultraconcentrado, estruturado e com acidez incrível. Tourigas Franca e Nacional muito sofridas, com apenas um cacho por videira. Este vinho não poderia ser de qualquer lugar que não o Douro. CB
AD 95 pontos
QUINTA DOS MURÇAS VV47 2012
Quinta dos Murças, Douro, Portugal. Do trio lagar, pisa a pé e leveduras indígenas. VV47 vem de Vinhas Verticais plantadas em 1947. Das primeiras vinhas verticais do Douro. Das zonas mais altas da Quinta a 300 metros, toda exposta a sul e nascente. Com o xisto menos degradado, o xisto mais puro. Ao lado de um bosque que poderia explicar os aromas pelo mimetismo aromático. Vinhas muito sofridas. Uma profundidade surpreendente de ervas, mata, frutas e mineralidade. Sutileza com toque balsâmico no “retrogosto”. Taninos finíssimos. Estagia em barricas de carvalho francês de 225 litros usadas e estagia três anos em garrafa. Um vinhaço que tem em si o perfil dos melhores taninos de Bordeaux. Um segredo de coxia: Eduardo Milan, quando degustou, conferiu AD 96 pontos ao vinho, o que era o esperado, pois usualmente dou um ponto a menos que ele quando degustamos grandes vinhos às cegas. Confirma-se porque foi um dos vinhos do ano de 2016. CB
AD 92 pontos
QUINTA DOS MURÇAS RESERVA 2011
Quintas dos Murças, Douro, Portugal. Vinhas expostas a poente, menos horas de sol no total, mas horas da tarde, que é mais quente e desidrata mais as uvas. Taninos mais vivos, o que leva o vinho a mais tempo de estágio em barrica e garrafa. Um perfil mais clássico, mas sem uvas sobremaduras. Embora em um ano muito forte, que marcou com um perfil de vintage a grande maioria dos tintos tranquilos do Douro, este vinho trilhou outro caminho que preservou a acidez. Aqui brilha um floral inebriante. Depois, em boca, vem a fruta vermelha e ameixa no pé. Deliciosamente suculento e pronto para aproveitar agora. Lançado em mercado em média após seis anos a safra. CB
AD 93 pontos
QUINTA DOS MURÇAS RESERVA 2010
Quinta dos Murças. Douro, Portugal. Ervas e folhas. Muito vibrante, com excelente acidez. Frescor e taninos muito vivos. Grafite e mineral. Fino, elegante, no fio de navalha. Para beber e refletir. O que mais me encantou neste dia. Muito longevo. CB
AD 90 pontos
QUINTA DOS MURÇAS RESERVA 2009
Quinta dos Murças. Douro, Portugal. Seu perfil revela a doçura de fruta suculenta. O que o balanceia é um toque do verde (não confundir com um toque verde), novamente as ervas e boa acidez. CB
AD 91 pontos
QUINTA DOS MURÇAS RESERVA 2008
Quinta dos Murças, Douro, Portugal. Foi o primeiro de todos. Foi a prova de fogo, o Esporão concretizaria a compra da quinta dependendo da qualidade dos vinhos que seriam vinificados nesta safra. Uma prova de que, mesmo nos anos mais quentes, a quinta é capaz de entregar vinho com muito bom frescor e acidez. Ultratradicional, o mais tradicional da vertical, e até por isso delicioso. CB
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