Noelia Orts é hoje responsável pelos vinhos do maior produtor orgânico e biodinâmico do planeta
por Christian Burgos e Eduardo Milan
Depois de terminar seus estudos em enologia na Espanha, na Universidade de Valência, Noelia Orts passou algum tempo trabalhando em seu país, em vinícolas como Recaredo, Dominio de Valdepusa e Marqués de Griñon. Mas então decidiu que queria viajar. Nascida em uma cidade turística da costa espanhola chamada Benidorm, ela foi atrás de novas aventuras.
“Não sei porque fui para agricultura, acho que estava procurando o oposto do que tinha, que era praia”, diz. Assim, ela foi morar na Holanda, depois foi para a Nova Zelândia e, por fim, ao Chile. “Ser enólogo é como ser chef de cozinha, você tem um passaporte para viajar, pode ir a qualquer lugar do mundo e pode encontrar facilmente um emprego”.
Curiosamente, ela havia escrito para a Viña Emiliana, pois queria trabalhar em um vinhedo orgânico, mas nunca lhe responderam. Mesmo assim, decidiu ficar no Chile. “Não tinha nada para me amarrar na Espanha. Saí do meu apartamento, terminei com meu namorado, não queria nada de lá”, conta. Assim, fez mestrado em viticultura na Universidade do Chile e, de repente, quando Emiliana precisou de um assistente de enólogo, em 2011, um professor indicou seu nome. “No fim aconteceu. Eu sempre dizia que estava destinada”, aponta.
Noelia é hoje responsável pelos vinhos do maior produtor orgânico e biodinâmico do planeta. Ela se orgulha em fazer parte de uma equipe que serve de referência para o uso dessas técnicas em larga escala.
Em recente passagem pelo Brasil, ela contou um pouco dessa história de pioneirismo e desmistificou os conceitos da biodinâmica. Confira.
Noelia Orts: Antes de ser Emiliana, éramos chamados de Santa Emiliana, e éramos um vinhedo em que se praticava agricultura com produtos químicos, herbicidas, pesticidas, fertilizantes, produtos sintéticos. Mas em 1998 decidiu-se dar um salto e apostar na agricultura biológica.
No Chile, em 1998, ninguém falava de um modelo orgânico. “O que era isso?” Havia muita insegurança, muito medo, porque o negócio de grandes volumes de vinhos varietais de entrada “bons, bonitos e baratos” funcionava muito bem. Mas José e Rafael Guilisasti [gerentes da empresa] tinham feito viagens aos Estados Unidos, conhecido projetos biológicos. José era engenheiro agrônomo e percebeu que as aplicações de produtos químicos obviamente têm impacto, sobretudo nas pessoas que os aplicam.
Então, ele propôs a mudança para a agricultura orgânica, mas timidamente, porque era um risco. Não havia nenhum vinhedo no Chile que tivesse feito a mudança de convencional para orgânico.
Como uma experiência. Selecionamos 35 hectares de vinhedos em Colchagua, a propriedade Los Robles, que tem dois dos nossos vinhos mais emblemáticos. Esse campo em particular foi escolhido porque tinha características que indicavam que poderia ser bom para a agricultura orgânica. Tinha um clima mediterrâneo naquela época (agora as coisas mudaram bastante). Chuvas no inverno, verões e primaveras mais secos.
Ou seja, menos risco de desenvolver fungos ou doenças. Também tem a questão do isolamento, porque aquele vinhedo é cercado, não exatamente, mas abraçado por um morro com mata nativa e, do outro lado, o rio Tinguiririca. Então, não tínhamos vizinhos. Foi feita essa transformação, muito radical, ou apaixonada, como dizem alguns, porque não havia modelos.
Tiramos tudo e, de fato, começamos a fazer biodinâmica nesse mesmo ano. Era um vinhedo totalmente dependente do homem para fertilização, controle de ervas daninhas, de pragas... No primeiro ano, a vinha cambaleou, sofreu muito, mas melhorou. Após três anos, a certificação orgânica foi alcançada e, dois anos depois, a certificação biodinâmica. O viticultor daquele campo, Armando Rebolledo, conta que demoraram cerca de seis anos para a vinha realmente se recuperar e começar a ser mais autossuficiente.
A primeira colheita orgânica certificada no Chile foi em 2001 com o vinho Coyam. Era algo novo porque era orgânico e também porque era um blend. Era Syrah, Carménère, Cabernet Sauvignon e Mourvèdre, uma coisa inusitada também para a época em que se trabalhava com monovarietais no Chile como regra geral. Essas duas características acho que são marcos que quebraram um pouco na cena do vinho.
Não, naquela época estava Álvaro Espinoza. Ele continua a trabalhar conosco. José e Rafael buscavam pessoas com muita sinergia com eles, que tinham o mesmo pensamento. Espinoza é enólogo, tem seu próprio vinhedo, é o pai da biodinâmica no Chile e, nessa época, também trabalhou muito com Miguel Elizalde, engenheiro agrônomo que já era especialista em orgânicos (em qualquer cultivo, não só da videira). Formou-se este pequeno grupo.
Quando o primeiro Coyam foi feito, dizem que o levaram a um concurso no Chile, com uma prova às cegas. Estavam lá Jancis Robinson, Tim Atkins, Steven Spurrier e, do Chile, Patricio Tapia. Coyam foi o melhor vinho tinto do concurso e o melhor blend. Graças a esse prêmio, a equipe disse: “O vinho é bom, vamos em frente”. E aí começou um crescimento gradativo até hoje, em que temos mil hectares certificados orgânicos e biodinâmicos.
Certificado sim, pelo menos da América Latina. É muito difícil obter as informações das certificadoras em outros países, mas, até onde sabemos, pelo menos na América somos os maiores.
Emiliana tirou a biodinâmica da horta da sua casa, do seu pomar, e colocou em grande escala para realmente causar impacto. É uma prova de que o modelo funciona.
Primeiro digo que a biodinâmica não faz milagres. É uma coisa que aprendemos ao longo dos anos. Em Emiliana, estamos sempre estudando, trazemos consultores de várias partes do mundo para continuar nos nutrindo. E uma das coisas que Vincent Mason, um conselheiro biodinâmico francês, disse-nos foi: “A biodinâmica não vai resolver seus problemas”.
Primeiro, você tem que fazer uma boa agricultura, ou seja, escolher a variedade certa para o lugar, tem que usar o porta-enxerto adequado, ter uma boa estrutura de plantio, sistema de irrigação. Depois vamos para os orgânicos. O orgânico é não usar produtos químicos sintéticos, herbicidas, pesticidas, fertilizantes à base de sal. E aí a biodinâmica viria como um patamar mais alto. Podemos usar produtos orgânicos na vinha, mas é muito mais restrito e há um compromisso em que você tem que começar a minimizar o uso de, por exemplo, fertilizantes orgânicos.
O conceito de biodinâmica é gerar um organismo em seu campo, de modo que seu objetivo não seja apenas produzir uvas, mas sim entender o vinhedo como um ser vivo no qual todos os elementos estão relacionados.
O composto em biodinâmica é um elemento essencial que você deve realizar e é o que as pessoas mais notam sobre a biodinâmica. As preparações biodinâmicas são preparações com base em certas plantas, como camomila, urtiga, dente de leão, milefólio, certos elementos minerais, como quartzo. Há uma preparação à base de quartzo e também uma parte animal, porque o que se pretende unir na biodinâmica é o conceito dos três reinos: o mineral, o vegetal e o animal. Esses preparos visam vitalizar o solo, são vetores de vida.
Quando comecei a trabalhar em Emiliana, não sabia nada de biodinâmica. Lembro que me deram o livro de palestras do Rudolf Steiner [pai da biodinâmica]. Li um capítulo, fechei e coloquei na gaveta. Não entendi nada. É muito complexo e você tem que saber como abordar. Tive a sorte de ter alguns professores que conseguiram me aproximar, mas hoje temos que tirar um pouco dessa visão esotérica.
Claro, e isso assusta muita gente. Mas tem coisas muito simples e exemplos muito práticos, como a preparação do chifre com o esterco de vaca que se enterra no inverno, depois tira e dinamiza. É uma dose, que é um pouco como remédio homeopático, cerca de 300 gramas por hectare, em 100 litros de água. Ele é dinamizado, como se fosse misturado, quando é deixado no chão no outono depois de uma das primeiras chuvas.
Qual é o fertilizante natural mais eficaz que todos conhecem? Esterco de vaca. E o que é isso? São ervas. Ervas que a vaca come, que transforma com a microbiologia do seu estômago. Para mim, esse é o exemplo mais claro do que é uma preparação biodinâmica. São certas plantas, com certas características, algumas mais ricas em cálcio, outras em ferro, outras em sílica, que passam um tempo em uma parte do animal, são transformadas e aí você aplica no composto de forma mais simples.
Devemos remover o esoterismo do calendário também. A agricultura é governada pelo sol e o sol é uma estrela. E sempre esquecemos disso. As estações do ano são regidas pela proximidade ou distância do sol e fazemos agricultura com base nisso. Quando você vai a Machu Picchu e vê como os incas faziam a agricultura, eles se guiavam pelas estações. E não é algo tão esotérico. Acontece que vivemos em uma sociedade que está mudando, muito estruturada, em que as pessoas querem uma explicação para tudo. É como na arte, você não precisa entender tudo, às vezes, você tem que sentir.
Acho que toda essa industrialização e manipulação do vinho veio de mãos dadas com a necessidade de produzir muito, de fazer vinhos de grande volume em que, em última análise, sua qualidade de uva não era tão boa. Então você precisa recorrer a esses elementos de maquiagem para poder fazer um vinho aceitável a um preço super barato. Mas houve esta volta e procuram-se mais vinhos que respeitem a origem, menos intervencionistas.
Somos biodinâmicos, mas, mesmo que façamos biodinâmica, não negamos nossos estudos de enologia. Quais são as bases da enologia? Há coisas que são irrefutáveis e que nada têm a ver com acréscimos ou correções, mas é a base da enologia. E seguimos isso.
Quando começámos em 2001, foi também uma época em que os vinhos eram muito concentrados, os rendimentos muito baixos, a vinha estava muito estressada por ter muita concentração. Trabalhavam muito com madeira, com graus alcoólicos, ou seja, uvas colhidas muito tarde. O estilo era de vinhos muito potentes, era o que eles gostavam. Mas começamos a perceber que, por exemplo, fermentamos espontaneamente com leveduras nativas. E quando você busca esse perfil de vinho, as fermentações são quase impossíveis, são um pesadelo, porque as condições desse mosto são de um álcool provável de 15%, baixa acidez, baixo pH, que faz com que as bactérias lácteas tenham um grande espaço para se desenvolver e aumentar a acidez volátil.
Depois, começamos a ver que, trabalhar o vinho com aquele modelo superextraído, maduro, não fazia muito sentido. Foi aí que começamos a buscar vinhos mais equilibrados e a entender mais cada parcela. Não vou dizer que posso colher tudo mais cedo. Tem Garnachas que não consigo colher com 13 graus porque são muito vegetais. Tem coisas que tem que arriscar um pouco mais, mas você se adapta de acordo com o vinhedo. E outra coisa que também fazia sentido para nós era que, com a mudança climática – ou crise climática, melhor chamar assim –, havia variedades que, em Colchagua, já não davam muito certo, como Merlot por exemplo. Merlot fez parte de Coyam por muitos anos, mas, com o calor, no final não era um vinho interessante.
Temos reduzido Cabernet Sauvignon e começamos a plantar variedades como Garnacha, Monastrel, Cariñena, que são muito mais resistentes a altas temperaturas, à escassez de água, porque conseguem manter a sua acidez natural. Coyam foi mudando seu estilo de variedades e tornou-se, como digo, mais “vermelhinho”, mais mediterrâneo.
Para mim, em 2015. É um vinho de sucesso ao longo de sua história. Como enólogo, você quer fazer mudanças, mas tem que ser sutil, tem que ver como é a aceitação. Em projetos novos, ficamos mais livres, como Salvage, que é feito sem enxofre, por exemplo. Mas também fizemos algumas mudanças em Gê.
São essas coisas de que gosto na natureza. Ela ensinou-nos algumas coisas. Choveu muito em abril de 2016. Emiliana é uma vinícola muito grande e era uma prioridade que vindimássemos as uvas dos vinhos premium. Sempre colhíamos de 1 a 15 de maio e ficamos com medo de antecipar: “Isso vai ficar verde”. Mas foi maravilhoso. A natureza nos ensinou que estávamos completamente errados e que podíamos colher antes.
A linha Adobe é nossa porta de entrada. E para nós é um privilégio poder oferecer ao consumidor um bom vinho orgânico a bom preço. Não é por sermos orgânicos que somos mais caros. Em alguns casos você precisa de menos intervenção, como química. E não penalizamos o custo para o consumidor devido aos nossos custos.
Sim, totalmente. São vinhas mais equilibradas e, portanto, você tem peles mais grossas e mais resistentes ao ataque de Botrytis. As peles mais grossas têm maior concentração de cor, antocianinas, taninos para dar estrutura. Sim, existe uma resistência, então isso já me dá mais tranquilidade, meus vinhos vão ser melhores.
Na vinícola de Los Robles, fazemos fermentações nativas e não poderíamos realizar essas fermentações se na vinha fossem usados produtos químicos, porque matariam toda a biodiversidade de leveduras e bactérias que existe no campo.
Muito pouco, porque infelizmente as causas químicas, farmacêuticas, ainda são as que financiam os projetos de pesquisa. Mas há professores que se dedicam a isso, eles sempre vêm nos ver, trazem os alunos para conhecer o nosso projeto.
Durante a pandemia foram criadas muitas plataformas interessantes em que há palestras sobre vários temas. Por exemplo, a Demeter [certificadora biodinâmica] criou um grupo no qual se reúnem produtores biodinâmicos italianos, alemães, espanhóis, franceses. Um representante por país e apresentamos os problemas ou dificuldades que temos. E isso é superinteressante.
Há uma troca técnica. No Chile, também existe a associação biodinâmica na qual nos reunimos e conversamos. E uma coisa que aprendemos com José Guilisasti foi que as portas tinham que ser abertas. Nada deve ser escondido. E recebemos gente de todos os lugares. A ideia é estarmos abertos, compartilhar, conversar, para que sejamos mais. Vinho é compartilhamento. E não há receitas-chave que digam que se ele faz isso, eu vou fazer e vai sair igual. Não, esqueça, você não pode copiar.
Um blend de 56% Syrah, 31% Carménère e 13% Cabernet Sauvignon, todas advindas de vinhedos cultivados segundo os preceitos da biodinâmica, com fermentação espontânea e estágio de 16 meses em barricas de carvalho francês.
Muito bem feito para uma safra quente, mostra ameixas e amoras seguidas de notas florais, de ervas e de especiarias, que se confirmam no palato. Mas, é na boca que merece atenção, com sua refrescante acidez e seus taninos firmes e de grãos finos, que trazem fluidez e profundidade ao vinho. Tem final refinado e persistente, com toques terrosos, defumados, de cassis, de pimenta negra, de alcaçuz e de grafite.
Composto de uvas 50% Syrah, 35% Carménère e 15% Cabernet Sauvignon, todas advindas de vinhedos cultivados segundo os preceitos da biodinâmica, com estágio de 16 meses em barricas de carvalho francês.
As notas de especiarias e de ervas envolvem sua fruta vermelha e negra madura na medida certa (provalmente beneficiada por um ano mais fresco), com sua acidez vibrante e seus taninos finos e de boa textura trazendo fluidez e sustentação ao seu lado mais frutado e concentrado. Tem final suculento, persistente e agradável, com toques especiados e de grafite.
Um blend de 95% Chardonnay e 5% Roussanne, com fermentação espontânea em ovos de cimento e em barricas de carvalho francês, com posterior estágio de 10 meses em carvalho também francês, sendo 31% em barricas novas, 35% em barricas usadas e o restante em foudres de 2 mil litros.
Chama atenção pela acidez vibrante e pela textura firme e cremosa, que envolve toda sua fruta branca e de caroço madura, seguida de notas florais, de ervas e de especiarias doces. Tem final cremoso e profundo, com toques amanteigados, salinos, cítricos e de abacaxi, além de um cativante toque redutivo, que convida a um segundo gole.
Elaborado exclusivamente a partir de Pinot Noir, com estágio de 11 meses, sendo 45% do vinho em ovos de concreto, 30% em foudre e 25% em barricas de carvalho francês.
Apresenta um perfil austero, mas sem perder o aspecto frutado e encantador da variedade, acompanhado por notas florais, de especiarias, de ervas e de pedra de isqueiro. Elegante e gostoso de beber, destaca-se pela sua fruta limpa e de qualidade, além de vigorosa acidez, taninos finos e final persistente, com toques salinos, de cerejas e de hibisco.
Elaborado exclusivamente a partir de Pinot Noir, sem estágio em madeira. Fresco e tenso, mostra fruta brancas, vermelhas e de caroço envoltas por notas florais e de ervas, que se confirmam no palato.
Cativante e perigosamente gostoso de beber, tem ótima acidez, textura cremosa e final com toques cítricos, salinos e de groselhas.
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