Juan Carlos Reppucci é dono da maior biblioteca de livros sobre vinho do mundo e sua sede fica em São Paulo
por Arnaldo Grizzo
Se é difícil definir a paixão pelos vinhos, mais complicado é a pelos livros ligados à essa bebida. O argentino Juan Carlos Reppucci, de 77 anos, bem que tenta explicar sua “compulsão” pelo tema dos livros com o tema do vinho, mas é quase impossível explicar logicamente como alguém reúne mais de 7 mil títulos, que se tornaram a maior “biblioteca vinária” do planeta, respeitada pelos maiores colecionadores de obras ligadas à cultura do vinho no mundo, incluindo museus.
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A impressionante biblioteca de Reppucci, que há mais de 40 anos se instalou no Brasil, fica em um apartamento contiguo ao seu (no qual viveu o piloto Emerson Fittipaldi) na região do Itaim em São Paulo.
Segundo ele, sua coleção começou fortuitamente. Nos anos 1970, atuava como engenheiro de estradas na Argentina e “ia sempre a lugares ermos”. “Estava na província de Entre Ríos e lá fizemos muito amizade com três casais. Os homens faziam churrasco com vinho, nada sofisticado, então comecei a gostar de vinhos. Comprei alguns livros novos sobre vinhos, mas nada demais”, conta.
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A situação na Argentina, contudo, fez com que o dono da empresa para a qual trabalhava decidisse ir para o Brasil. Reppucci resolveu vir junto e, aos poucos, foi adquirindo partes da companhia.
Com o tempo, fez fortuna na área de construção de obras públicas e concessões com a firma “CCI Concessões e Construções de Infraestrutura”. Foi em uma viagem a Buenos Aires que o “vício” de colecionar livros antigos se iniciou.
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“Comecei a ir a uma livraria chamada Antaño”, revela. Ele fez amizade com Alfredo Breitfeld, dono da livraria antiquaria considerada a mais importante da América do Sul. Foi lá, nos anos 1980, que descobriu o mundo dos livros antigos e raros e adquiriu seus primeiros títulos.
Com o tempo, Reppucci provavelmente se tornou o melhor cliente da Antaño, mas não só dela, como de outras livrarias antiquarias pelo mundo, especialmente na Itália, Espanha, França e Estados Unidos.
A curiosidade e a paixão de Reppucci pelos livros antigos com tema de vinho foi crescendo cada vez mais e o levou até um campo muito estimado pelos colecionadores de livros, os incunábulos.
Incunábulos são primeiros livros impressos na história, desde 1450 quando o alemão Johannes Gutenberg inventou a primeira prensa de tipos móveis, até 1500. São verdadeiros tesouros, raros e caros, sobreviventes, seculares, dignos de veneração.
A parte onde essas preciosidades estão guardadas em sua biblioteca é certamente a favorita de Reppucci, que faz questão de mostrá-la aos seus visitantes, muitas vezes sob os olhares “aflitos” de sua assistente Carla Midori Tamae, que cuida da catalogação, restauro e conservação dos livros.
Segundo a cuidadosa Carla, hoje são 91 incunábulos. “Muitas bibliotecas importantes do mundo não têm essa quantidade”, comenta orgulhoso Reppucci, que vai direto à prateleira e retira uma de suas maiores “riquezas”, um exemplar da História Natural de Plínio, o Velho.
“É um livro importante, um incunábulo, em língua vulgar, em italiano, a primeira edição de 1476 de História Natural. É escrita em italiano antigo, língua fiorentina. Impresso a pedido de Ferdinando rei de Nápoles”, admira, como se fosse a primeira vez que olhasse a obra, considerada uma das mais importantes do período romano a ter sobrevivido até a era moderna e que trata dos mais diversos temas da vida do homem.
Dando outra olhada nas prateleiras, Reppucci “encafifado” questiona sobre onde está um livro específico do qual o nome lhe fugiu momentaneamente. De repente, a prestativa Carla aparece com outro tesouro da biblioteca, “A Crônica de Nuremberg”, um famoso incunábulo de 1493, por se tratar do maior livro ilustrado de sua época, com cerca de 1600 xilogravuras. “É um livro raro, não tem muitos exemplares dando a volta no mundo”, comenta Reppucci.
Mas ele possui livros ainda mais antigos e raros. Um deles é um exemplar manuscrito (isso mesmo, feito por escribas) por volta de 1230 da Ruralia Commoda, de Pietro de’ Crescenzi.
Um manual de agricultura cujo autor se baseou em outros títulos clássicos para produzir, como o De Re Rustica, de Columella, por exemplo. Ao ser questionado se tinha algo desse clássico autor romano, a resposta de Reppucci é bastante direta: “Sim, vários”. E vai empilhando alguns que tira das prateleiras.
Instigado por perguntas sobre alguns autores e obras clássicas do mundo do vinho, Reppucci vai dizendo à Carla para procurar em seu vasto catálogo, todo organizado, e “seguro em nuvem”, faz questão de dizer.
Ele conta que já houve grandes colecionadores de livros sobre vinho no mundo, o mais conhecido da história provavelmente foi André-Louis Simon, um bibliógrafo e escritor francês que se dedicou à literatura do vinho. Além de escrever diretamente sobre o tema, ele também escreveu livros com bibliografias que até hoje servem de referências para livreiros e colecionadores.
“Ele listou tudo, os livros que tinha e os que não tinha, mas sabia que existiam, e onde estavam”, aponta Reppucci tirando uma das diversas obras de catálogo feitas por Simon. Além delas, ele também possui alguns exemplares cujo ex-libris (propriedade do livro) revela que foram da biblioteca do francês.
Perguntado sobre obras de outro escritor francês conhecido por ser um dos primeiros “críticos” do mundo, André Julien, Reppucci não titubeia e logo Carla aparece com diversas edições dos mais conhecidos títulos do autor, como “Topografia de todos os vinhedos conhecidos” e “Manual do Sommelier”, por exemplo, em edições raras.
Voltando aos livros antigos, Reppucci mostra um fac-símile da primeira bíblia de Gutenberg. “Não existe nenhum exemplar à venda, e mesmo que tivesse teria um preço impossível de comprar. Colecionadores não vão atrás de fac-símiles, mas tenho um fantástico, feito em 1950 nos Estados Unidos. Fotografaram a original e colocaram as cores e tudo”, conta.
Contudo, Reppucci não revela quanto gastou com sua coleção de livros e, apesar de não ter parado de comprar, diz que é cada vez mais seletivo. Se antes ele ia atrás dos livreiros, hoje são eles que lhe contatam caso tenham novidades que possam lhe interessar.
“Eles têm que vender, então, sabendo que o vinho é o motivo da minha coleção, sempre me mandam. Hoje em dia compro – sempre que o dinheiro permite – algo mais selecionado, mais antigo, mais singular. Muitas vezes me oferecem muito do normal, mas livro nunca acaba pois descorem que alguém em 1700 escreveu sobre o tema...”, diz.
Ele aponta ainda que, assim como no mundo dos vinhos, no universo dos livros raros também conta muito a origem. “De onde saem os livros? Como foi mantido? Nos livros também têm muito problema de roubo, falsificação, temos um aqui que foi feito uma edição pirata em 1700 na Suíça. Era um livro difícil de encontrar, então foi feita uma cópia”, revela.
Ele também não fala sobre os custos de manutenção da biblioteca, que tem controle de temperatura e umidade, além do trabalho constante de higienização dos livros. Carla conta que, por exemplo, os títulos novos ficam em quarentena antes de se juntarem aos outros da biblioteca, para garantir que possíveis infestações não se propaguem.
Há 11 anos, Reppucci publica um pequeno livro com algum tema de vinho, uma espécie de excerto das obras de sua fantástica biblioteca. A cada ano, são cerca de 150 exemplares distribuídos para amigos e feitos “apenas por prazer” com a curadoria e supervisão do amigo Claudio Giordano, “um velho editor, no bom sentido”. Em 2019, o tema foi “O Vinho nos Rubaiyat de Omar Khayyam”, por exemplo.
Sobre o futuro de sua coleção de livros, Reppucci não sabe precisar. Já no campo do vinho especificamente, ele diz que possui quatro adegas em casa e outra em Monte Verde, somando cerca de 1500 garrafas.
Quando questionado sobre quais rótulos coleciona, responde: “Não coleciono, bebo”, mas enumera alguns châteaux clássicos bordaleses, domaines borgonheses de prestígio e nomes famosos de outros países. Seu preferido, La Mission Haut-Brion (pelo qual se apaixonou depois de beber uma safra 1978).
Se a coleção de vinhos parece ser mais simples de “liquidar” (basta literalmente beber o estoque), a de livros ainda é uma incógnita. “Não tenho nada definido”, admite, apesar de dizer que seus filhos têm instruções claras para procurar os grandes livreiros caso Reppucci faleça. Que esse tesouro todo, possa ficar em boas mãos e com acesso para que os estudiosos do mundo do vinho desfrutem do seu conhecimento.
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