Conheça a saga de 20 anos para “Vito” Olazabal se tornar o único proprietário da Quinta do Vale Meão
por Por Guilherme Velloso
Presença obrigatória, sempre nas primeiras posições do ranking em qualquer relação dos melhores tintos portugueses, o Quinta do Vale Meão é dona das maiores pontuações concedidas aos vinhos tranquilos portugueses.
No entanto, talvez o reconhecimento mais importante que recebeu até hoje é o carinhoso apelido de “Barca Nova”, numa alusão ao lendário Barca Velha – um primus inter pares dos grandes vinhos portugueses.
A comparação se deve mais à origem do que a uma semelhança de estilos. O Barca Velha, só produzido nas melhores safras, é um vinho que necessita de anos em garrafa para revelar todo o seu potencial, tanto que, em geral, só é lançado ao mercado sete ou oito anos depois de produzido.
LEIA TAMBÉM: Vindima em Portugal começa antes do habitual, mas com boa perspectiva
Já o Quinta do Vale Meão costuma ser exuberante e sedutor mesmo quando jovem, embora evolua muito bem com os anos. A relação entre os dois está nos vinhedos. Os que hoje fornecem matéria-prima para este último são (em parte) os mesmos que, no passado, tornaram possível a criação do primeiro.
A atual Quinta do Vale Meão, propriedade que dá nome ao vinho, foi a última das aproximadamente 30 grandes quintas que pertenceram à famosa Dona Antónia Adelaide Ferreira, conhecida por todos como “Ferreirinha”, um dos nomes mais importantes da história vinícola de Portugal, em especial do Douro.
A quinta fica à margem direita do rio em um ponto não muito distante da barragem de Pocinho, em que ele faz uma bela curva e praticamente “abraça” o Monte Meão, nome pelo qual a região onde se localiza era conhecida. O Meão foi a única quinta que Ferreirinha construiu do zero, em um terreno onde antes só havia mato e animais selvagens, uma área ainda pouco explorada do Douro Superior.
A razão era a distância que separava a região das cidades do Porto e de Vila Nova de Gaia, bem como a dificuldade em se chegar até lá. Os 300 hectares que deram origem à quinta (hoje são 262) foram comprados entre 1877 e 1879, em sucessivos leilões promovidos pela câmara do município de Vila Nova de Foz Côa.
Depois de plantados, os vinhedos sempre se destacaram pela quantidade e qualidade das uvas, que, até 1952, eram empregadas na produção de vinho do Porto. Naquele ano, o então diretor técnico e provador oficial da Casa Ferreirinha, Fernando Nicolau de Almeida, decidiu transformar em realidade um velho sonho: criar no Douro um tinto à altura dos grandes franceses.
Para concretizá-lo, empregou sobretudo uvas provenientes do Meão, complementadas pelas obtidas em outras quintas ligadas à empresa, procedentes de vinhedos mais altos, para garantir o equilíbrio do vinho. Nascia o Barca Velha.
LEIA TAMBÉM: Portugal, muito mais que o País do Vinho do Porto
A ligação entre o Barca Velha e o Quinta do Vale Meão, cuja primeira safra foi a de 1999, tem nome e, principalmente, sobrenome: Francisco Javier de Olazabal y Rebelo Valente, mais conhecido como Francisco Olazabal, ou simplesmente “Vito” (de Javier), o apelido familiar.
Trineto da Ferreirinha e genro de Nicolau de Almeida, foi Vito Olazabal quem transformou o Meão no berço do ótimo tinto que hoje carrega seu ilustre nome. Mas não foi a paixão pelo vinho que motivou seus primeiros contatos com as terras compradas por sua lendária trisavó, mas as lebres e coelhos, abundantes na região, pois o jovem Vito era um apaixonado pela caça.
Mesmo em fins dos anos 1950, o caminho do Porto ao Meão era longo e cansativo, a tal ponto que seu futuro sogro – homem elegante e refinado, que não abria mão do chá e da gravata mesmo sob o sol causticante do Douro –, afirmava ser “mais difícil ir ao Meão do que à Luanda”, ecoando o que já se dizia quando a Ferreirinha comprou as terras.
LEIA TAMBÉM: Demanda por champagne do grupo LVMH se mantém estável
Vito era apaixonado por caça e se encantou com “as lebres e coelhos, abundantes na região”
Francisco Olazabal nasceu e cresceu no Porto. O sobrenome vem do avô paterno, Ramón, um basco espanhol que, por razões políticas, viveu em S. Jean de Luz, no lado francês do País Basco. Foi lá que conheceu e se encantou por Maria Luisa, avó de Vito, uma das netas da Ferreirinha.
Jaime, seu pai, um dos frutos dessa paixão, viveu entre S. Jean de Luz e a quinta da família materna no Douro. E casou-se com uma legítima portuguesa, Maria do Carmo Rebelo Valente. Depois de concluir os estudos na Faculdade de Economia do Porto, Francisco fez carreira na própria Casa Ferreirinha, onde foi responsável pela área comercial e, mais tarde, pela administração da Quinta do Vale Meão, da qual seu pai era um dos muitos proprietários.
A quinta era a principal fornecedora de uvas para o vinho ícone da empresa, mas necessitava de investimentos urgentes, especialmente para o replantio de antigos vinhedos. Parte da solução veio com um golpe de sorte. A construção da nova barragem do Cachão da Valeira, no Douro, em 1974, provocaria a inundação de aproximadamente 11 hectares de vinhedos da quinta, passíveis de indenização pelo estado português.
LEIA TAMBÉM: Colheita de vinho avança na costa oeste dos EUA
O país vivia a Revolução dos Cravos, período marcado por muitas nacionalizações. Além disso, os vinhedos em questão eram pouco produtivos e de baixa qualidade, por isso não se esperava muito da eventual indenização. Seja por ignorância, seja pela fama da quinta, o funcionário encarregado de arbitrá-la fixou quantia muito mais alta do que as terras realmente valiam.
E esses recursos permitiram o replantio de 30 hectares de vinhedos com Touriga Nacional, hoje a coluna vertebral do tinto Quinta do Vale Meão, para o qual contribui em geral com, pelo menos, 50% do corte, coadjuvada por Touriga Franca e Tinta Roriz (outras castas durienses entram em pequena proporção).
LEIA TAMBÉM: Califórnia celebra os 40 anos do Los Carneros AVA
Já naquela época, “Vito” Olazabal não via grandes méritos em misturar diferentes variedades num mesmo vinhedo, prática tradicional no Douro.
Por isso, desde que a quinta ficou sob sua responsabilidade (primeiro como administrador, depois como seu único proprietário), os diferentes “talhões” (parcelas de vinhedos) do Meão passaram a ser replantados, após análises de solo, com a variedade considerada mais adequada às suas condições específicas.
Com a morte do pai, em 1982, Francisco Olazabal ocupou seu lugar como um dos três copresidentes do Conselho de Administração da Ferreirinha. Cinco anos depois, os outros dois membros se aposentaram e ele foi eleito presidente.
Embora financeiramente sólida, a Ferreirinha era uma empresa totalmente familiar, com controle diluído entre aproximadamente 140 primos, o que dificultava a gestão, principalmente na hora de trocar dividendos por investimentos. Para complicar ainda mais a situação, a empresa, que foi constituída pelos herdeiros após a morte da matriarca, só era dona dos armazéns e estoques de vinho do Porto, em Vila Nova de Gaia, e das marcas de vinhos.
Curiosamente, ela não tinha quintas. Estas – que, a partir daí, por contrato, abasteciam a empresa-mãe com as uvas que produziam – permaneceram propriedades individuais dos descendentes. Como presidente, mas em pleno acordo com os demais acionistas, coube a Francisco conduzir as negociações que culminaram com a venda da Ferreirinha para a Sogrape em dezembro de 1987.
Os novos controladores não só fizeram questão de mantê-lo no comando da empresa como depois o convidaram a integrar o Conselho de Administração da própria Sogrape, cargo que ocupou até 1998.
Já bem antes, Francisco, que herdara a parte do pai no Vale Meão, começara a comprar pequenas participações de outros primos na quinta. Mas ele só conseguiu concluir a aquisição em 1994, quando já era o maior acionista individual, num processo que demorou 20 anos, mas que, segundo ele, transcorreu sem qualquer atrito com os antigos detentores das ações.
Para tornar-se o único proprietário do Meão, teve que investir praticamente tudo o que recebera, como um dos acionistas, pela alienação da Ferreirinha à Sogrape.
Vito concluiu a aquisição do Meão em 1994, em um processo que durou 20 anos
“Vito” Olazabal tinha 60 anos quando decidiu trocar a segurança de um alto cargo no poderoso grupo Sogrape pelas incertezas de um negócio próprio, em um segmento que depende, entre outros fatores, dos humores da natureza e do mercado.
Além do profundo conhecimento que detinha da potencialidade da quinta, contava com o apoio da mulher, Maria Luisa, conhecida na família por “Zinha”, ela própria muito ligada ao mundo do vinho, não fosse filha do criador do Barca Velha. Mais importante, podia contar também, nessa nova empreitada, com a ajuda do filho mais velho, Francisco de Olazabal y Nicolau de Almeida.
Seguindo as pegadas do avô materno, “Xito” (o apelido que o distingue do pai) é enólogo formado e, na época, já trabalhava para seus primos, donos da Quinta do Vallado, outra das propriedades da Ferreirinha, que permanecera sob controle familiar. “Xito” é um dos melhores enólogos portugueses da sua geração, como provam os seguidos reconhecimentos da imprensa especializada tanto aos vinhos do Meão como aos do Vallado.
Além de “Xito”, também a filha mais moça, Luisa, atua na empresa como responsável pela área comercial, depois de ter passado pela francesa Pommery e pela tradicional Porto Rozès, controlada pela primeira. O filho do meio, Jaime, assim como o avô, é o único que não trabalha com vinho. “Minhoca”, como é popularmente conhecido, preferiu o setor financeiro.
Antigos lagares, tradicionais no Porto, foram recuperados e hoje convivem em harmonia com tanques de inox e barricas
Os vinhos Quinta do Vale Meão e seu irmão mais moço, Meandro, são uma feliz combinação de tradição e modernidade. Exemplo disso é a utilização dos antigos lagares, tradicionais no Porto, que, depois de totalmente recuperados e modernizados, hoje convivem em harmonia com tanques de inox e barricas (cerca de 1500) de carvalho francês das melhores procedências.
As maiores diferenças entre os dois vinhos estão no corte e na idade das vinhas das quais provêm as uvas usadas em cada um. No vinho principal, a Touriga Nacional é sempre a casta predominante (a única exceção foi 2007, ano mais frio, em que a Touriga Franca teve participação maior) e as uvas vêm dos vinhedos mais velhos.
No Meandro, o corte tem praticamente a mesma proporção de Touriga Nacional, Touriga Franca e Tinha Roriz, de vinhedos mais jovens, com pequenos aportes de outras castas (Tinta Amarela, Tinta Barroca, Tinto Cão e Sousão).
Todas processadas no Meão, depois de passarem pela mesa de seleção e pelo esmagador/desengaçador, vão para os lagares. Se destinadas aos dois tintos da casa, sofrem apenas rápida (três a quatro horas) maceração a frio no lagar, por pisa humana (a pé) ou mecânica (robôs).
Depois vão para as cubas, onde se processará, lentamente, a fermentação, que pode durar de 10 a 20 dias. No caso das uvas que se destinam ao vinho do Porto, toda a fermentação se faz nos lagares até o momento de adicionar aguardente.
Além dos dois tintos, a quinta produz apenas Porto Vintage e vende vinho do Porto a granel para outros produtores. Do vinho principal, são produzidas em média apenas 30 mil garrafas.
Do Meandro, na safra mais recente, 190 mil. E do Porto Vintage, entre 8 e 10 mil garrafas. A linha ganhará novo integrante em breve. Será um vinho 100% Touriga Nacional proveniente de vinhedos plantados numa parcela de solos graníticos, com estágio de 18 meses em carvalho.
Segundo Vito Olazabal, o solo granítico de onde provêm as uvas proporciona maior acidez e estrutura ao vinho, que terá preço intermediário entre o do Meandro e o do Quinta.
Outra novidade será o lançamento de um novo Porto (Vito e Xito ainda não decidiram se será um Tawny ou um Colheita), aproveitando o espaço disponível na antiga adega do Barca Velha.
Construída em 1891, ela foi totalmente renovada em 2008 e reservada para os vinhos do Porto. Os dois tintos (Quinta e Meandro) são produzidos na antiga Adega dos Novos, construída em 1894.
Também ela foi inteiramente restaurada e ampliada em 2012, com a construção de novo edifício para abrigar os escritórios, sala de provas e laboratório, além de proporcionar maior área de estocagem.
A inclusão de um vinho branco no portfólio da empresa é uma questão mais complicada. Por conta das altas temperaturas do Douro, sobretudo nos meses de verão, uvas brancas de qualidade só são encontradas em vinhedos plantados em altitudes mais elevadas, o que não ocorre no Meão.
Vito Olazabal e seu filho Xito são membros-fundadores do grupo que ficou conhecido como “Douro Boys”, responsável por alguns dos vinhos mais instigantes produzidos hoje em Portugal e por dar ao Douro projeção internacional antes reservada apenas aos vinhos do Porto ou de outras regiões portuguesas.
Não é exagero afirmar que, pelo menos em espírito, os Douro Boys dão continuidade à obra da Ferreirinha, e não apenas porque vários integrantes do grupo são seus descendentes diretos.
Foi sua crença no potencial do Douro e sua extraordinária visão de negócios que a levaram, entre outras iniciativas ousadas para a época em que viveu, a comprar as terras do Meão, quando só para chegar até lá, vindo do Porto, demorava-se pelo menos dois dias e corriam-se muitos riscos (ela própria escapou da morte em um naufrágio).
A Ferreirinha certamente se orgulharia se soubesse que, quase 120 anos depois de sua morte, com as uvas do Meão, um de seus trinetos e um de seus tataranetos produzem um dos vinhos tintos de Portugal mais reconhecidos dentro e fora do país.