O Chile renasce

Dos escombros das cidades, das gretas abertas na terra e no asfalto, dos mais de 500 mortos, a indústria do vinho chilena está renovada para receber a safra de 2011

por Sílvia Mascella Rosa

Barricas da vinícola De Martino

fotos: Sílvia Mascella Rosa

Pouco depois das 3h30 da madrugada do domingo, 27 de fevereiro de 2010, o enólogo Andrés Sánchez, um dos sócios da vinícola Gillmore no vale chileno de Maule, acordou sobressaltado ao lado do filho Martin. Percebeu a iminência de um terremoto e algo dentro dele avisou que não seria apenas "mais um". Tirou o filho da cama e o levou para fora da casa, localizada dentro da fazenda da vinícola. Quando voltou para chamar a esposa Daniella, que amamentava a filha em outro quarto, ela - como tantos chilenos - achou que tudo iria passar rápido. Sánchez, felizmente, não acreditou, e insistiu para que ela e a menina saíssem da casa.

Nesses poucos instantes ficou claro que o que estava acontecendo não era mais um dos tantos abalos que chacoalham o Chile todos os dias. O som alto das entranhas da terra movendo-se e as construções à volta deles soltando-se de sua estrutura esconderam momentaneamente o fato de que o filho não estava mais ali. Tinha voltado para dentro da casa para buscar um brinquedo. "Não sei como o localizei. Em minutos, a energia elétrica já havia caído, boa parte da casa também e eu o procurei entre a poeira das paredes e os sons de uma terra que ruía", relembra Sánchez abraçando o filho.

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8,8 graus na escala Richter
O terremoto, que teve seu epicentro a 35 km de profundidade no oceano Pacífico e a mais de 100 km de distância de onde está a fazenda Tabontinaja da Gillmore, afetou quase 2 milhões de pessoas nas quatro regiões mais próximas e na região metropolitana de Santiago. A perda econômica total foi estimada em 30 bilhões de dólares pelo governo.

A indústria do vinho chilena foi duramente afetada. 125 milhões de litros de vinho foram perdidos: "Lembro-me de passar nas estradinhas de terra que atravessam pequenas vinícolas no vale de Rapel e ver as valas, que separam a estrada da calçada, completamente tintas do vinho que escorria - quase como um mar - das vinícolas", conta Sandra Polanco, gerente de exportações da Viu Manent.

Terremoto de 8,8 graus casou a perda de
125 milhões de litros de vinho

A vinícola onde ela trabalha segurou a colheita por quase um mês por conta dos danos. Seu centro de recepção de turistas e o restaurante principal foram destruídos, além de alguns tanques amassados e pequenos danos estruturais nas instalações. Mas ambos já estão em funcionamento novamente, pois essa é uma indústria que não pode parar, principalmente em uma área como a do vale de Colchagua, onde o turismo é parte intrínseca da indústria do vinho (só em 2009 a Viu Manent recebeu mais de 15 mil visitantes).

A principal - e mais antiga - rota de enoturismo do Chile está justamente na região de Colchagua que, apesar de sua distância de quase 200 km do epicentro do terremoto, sofreu muitos danos. A maior cidade da região, Santa Cruz, teve que reconstruir grande parte de seu melhor hotel e somente no final do mês de setembro reinaugurou o Museu do Vinho (com a presença do presidente chileno), local de grande visitação na região. A igreja histórica continua em ruínas, parcialmente sustentada por colunas de madeira no que restou de sua fachada. O problema, para construções históricas como essa feitas de adobe (a versão hispânica de nossa taipa, uma massa de barro - argila e areia - misturada com palha e modelada como um tijolo seco ao sol), é que muitas são tombadas pelo patrimônio histórico e, para serem recuperadas, precisam de laudos e pareceres que - como em toda máquina governamental - demoram a ser emitidos. Isso sem contar que essas construções são caras para serem refeitas como eram originalmente.

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Andrés Sánchez, enólogo da Gillmore, em Maule, lembra que tirou a família da casa pouco antes de ela cair

Recuperar ou derrubar?
"Tínhamos muito o que considerar quando aconteceu o terremoto. Estávamos prestes a começar a colheita e em vários lugares não tínhamos energia elétrica - e as uvas brancas precisam dos tanques de fermentação com controle de temperatura. Tivemos paredes que caíram e provocaram um efeito dominó nas salas de barricas e entre alguns tanques e, além do mais, tínhamos a pousada, com hóspedes, quando o abalo ocorreu", relembra o diretor técnico da vinícola Casa Silva, Mário Geisse.

"Rio de vinho escorreu por debaixo dos portões",
Eduardo Jordán

A primeira atitude tomada por eles foi a de levar os hóspedes para a casa do presidente da vinícola, Mario Silva, a poucos quilômetros de distância, e depois assegurarem-se de que os funcionários e suas famílias estavam bem. Somente com isso tudo garantido - o que tomou tempo, pois os telefones não funcionavam e as estradas estavam bloqueadas em muitos pontos - é que foi possível avaliar os danos estruturais, que foram muitos.

Parte da construção mais antiga da vinícola - alguns lagares de cimento por exemplo - não suportaram o abalo, bem como paredes e tanques. Boa parte do hotel veio abaixo (era uma antiga sede de fazenda, onde viveram os avós e pais da matriarca da família Silva), juntamente com o restaurante e o bar de vinhos que havia no local. Durante algum tempo foi cogitada a possibilidade de não reconstruir a pousada. Felizmente para os enoturistas, ela foi reaberta com seu charme original renovado na semana da visita desta reportagem. O restaurante, no entanto, não será reaberto, mas a harmonização dos vinhos da Casa Silva ainda pode ser provada no restaurante que fica ao lado do campo de pólo da família, na mesma propriedade. "Nossos vinhos, para nossa tranquilidade, sofreram pouco. A perda de garrafas foi mínima uma vez que as caves são subterrâneas e nada as afetou. Onde perdemos um pouco foi em algumas poucas barricas que se deslocaram e em um ou outro tanque, pois, como era pouco antes da colheita, muitos tanques estavam vazios", explicou o enólogo José Ignacio Maturana.

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fotos: Sílvia Mascella Rosa
Tanques retorcidos e garrafas quebradas foram algumas das consequências do tremor

Obras de arte do acaso
As enormes instalações da vinícola De Martino, na Isla de Maipo, estavam silenciosas na madrugada fresca de 27 de fevereiro. Por lá, quando o terremoto ocorreu, só estavam o vigia do portão principal e dois encarregados da vinícola. Um deles era Marcos Contrera, que foi bombeiro por 20 anos em Santiago. Tendo visto e socorrido muita gente em outros abalos, a primeira reação de Contrera foi a de buscar por seus companheiros, que estavam assustados (mas bem), e depois tentar entrar nas salas de tanques: "O vinho jorrava por todo lado, era uma visão impressionante, tivemos pouco tempo para decidir o que fazer primeiro e optamos por tentar selar novamente os tanques que sabíamos que continham muito vinho", conta o ex-bombeiro.

O enólogo da De Martino, Eduardo Jordán, caminha hoje tranquilo entre os tanques ainda amassados, esperando a liberação do seguro para que sejam retirados e outros novos venham ocupar o lugar, mas afirma que não esquecerá tão cedo da primeira visão da vinícola, na manhã daquele domingo. "Uma grande parte da estrutura suportou o abalo, mas, dentro delas, a visão era de caos. Barricas caídas, teto desabando, tanques retorcidos como se uma mão gigante os tivesse amassado tal qual latas de refrigerante, um rio de vinho tinto escorrendo por debaixo dos enormes portões", relembra Jordán.

Para efeitos de seguro, a grande maioria das vinícolas chilenas está em compasso de espera. A Arestí, no Vale de Curicó, é uma exceção. "Tivemos sorte, pois com o dinheiro do seguro já trocamos os tanques afetados e compramos algumas barricas que foram perdidas no abalo. Só estamos esperando a próxima safra para enchê-las", conta Jon Usabiaga, o enólogo chefe.

Muitas vinícolas ainda esperam a liberação
do dinheiro do seguro

Mas a grande maioria das vinícolas ainda espera o pagamento do seguro e a liberação de alguma áreas, onde a perícia foi feita. A De Martino, que perdeu 20% de sua produção de 2009 com o terremoto, ainda precisa manter alguns tanques danificados dentro do casarão, mas a maioria deles está do lado de fora, no limite dos vinhedos orgânicos da fazenda, compondo uma obra de arte do acaso que não combina em nada com a paisagem. Por outro lado, a empresa tirou dinheiro do próprio bolso para auxiliar as famílias que perderam suas casas na região mais ao sul, e alguns funcionários da vinícola foram voluntários na construção dessas casas de madeira, em uma parceria com uma ONG local. "Mas com tudo o que aconteceu no começo do ano, ainda assim temos que admitir que uma coisa ruim muitas vezes é seguida de uma muito boa, que foi o caso da safra de 2010, que colhemos ainda assombrados pelos acontecimentos, mas que nos motivou com as uvas que vão proporcionar vinhos mais elegantes e ligeiramente menos alcoólicos do que nos últimos anos", revela Eduardo Jordán.

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Perdas com equipamentos são da ordem de US$ 55 milhões

Redesenhando a história
As construções de adobe, tão comuns no país andino, formam uma parte significativa do patrimônio histórico chileno. A casa onde viveu o primeiro presidente eleito do Chile, por exemplo - que foi transformada em pousada dentro da fazenda da vinícola Casa Porta, do grupo Corpora -, não resistiu ao terremoto e ainda levará muito tempo para que recupere seu charme original, assim como tantas outras construções em várias das regiões onde a terra tremeu com força.

A vinícola Santa Carolina, uma das mais poderosas e antigas do Chile, tem uma parte de sua propriedade na cidade de Santiago certificada como Monumento Histórico Nacional Chileno desde 1973. A construção, iniciada em 1875, foi a casa de fazenda do fundador, Luis Pereira Cotapos. Entre jardins com imensos carvalhos, ela era ocupada pela equipe de enólogos da vinícola. Construída com adobe e, em parte, com uma argamassa de cal e clara de ovos (cal y canto), ela foi praticamente destruída com o terremoto, mesmo estando a mais de 300 km do epicentro. Um dos enólogos contou que somente depois de uma semana é que eles puderam entrar na empresa para tentar retirar documentos e computadores, devido ao tamanho do estrago ocorrido.

Apesar das perdas, os levantamentos apontam
que não haverá risco de desabastecimento

Alfonso Entrala, gerente de marcas da Santa Carolina explica que a decisão tomada pela empresa diante dos estragos (uma fachada de adobe com mais de 100 anos, que era a parede do fundo do centro de eventos, caiu para a rua, abrindo uma enorme passagem para dentro da vinícola) foi radical: "O novo projeto já começou a remodelar as áreas afetadas - não podemos alterar em nada o que é monumento nacional e a casona do fundador será nosso novo centro de degustações -, mas vamos ampliar as instalações com um novo parque, um edifício para os escritórios comerciais e vamos reinaugurar em pouco tempo nosso espaço de eventos, que faz parte da construção histórica e abriga a entrada para nossa cave subterrânea famosa, a de Cal y Canto, onde descansam nossos vinhos mais nobres", revela Entrala.

As vinícolas chilenas, entre elas nomes consagrados como Montes, Estampa, Undurraga e Santa Helena, entre tantas outras, tiveram perdas da ordem de US$ 55 milhões somente em equipamentos, isso sem contar os danos na estrutura de suas caves, e os gastos para colocar tudo isso em ordem ainda não podem ser avaliados. Outra gigante do mercado, a Concha y Toro, sofreu pouco em sua planta de Pirque, onde recebe os turistas e onde está o casarão do fundador Don Melchor - onde alguns reparos tiveram que ser feitos por conta do abalo. A perda maior da Concha y Toro foi em sua cave de Peumo, a 100 km ao sul de Santiago: "Praticamente um terço da produção de Merlot e Carménère da safra de 2009 foi perdido, em barricas e garrafas naquela região. O estrago só não foi pior, pois o estoque estava alto", revelou a enóloga e gerente comercial da Concha y Toro, Paula Gajardo.

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Trabalhos de restauração na Santa Carolina (nesta foto) e em outras tantas vinícolas estão em pleno vapor

Recuperação rápida
Segundo dados do programa Wines of Chile, as perdas em vinho das vinícolas participantes do programa chegaram ao valor de US$ 250 milhões, mas isso não afetou as exportações do país e nem ameaçou o abastecimento interno. O Chile produz muito vinho e os estoques, como disse a enóloga da Concha y Toro, estavam altos. Para completar, a safra de 2010 foi muito boa e, apesar de em algumas regiões mais afetadas pelo terremoto ter sido colhida quase em meio aos escombros, mostra-se uma safra de superação e com alta qualidade. Sinal inequívoco de que a indústria do vinho chilena resistiu muito melhor que as construções de adobe aos abalos.

A linha principal de vinhos da vinícola Gillmore, cuja história durante esta tragédia é contada no começo desta reportagem, chama-se Hacedor de Mundos, um nome que verdadeiramente fala de criação, renovação. Felizmente nenhum funcionário da vinícola ou da pequena família Gillmore foi ferido nesse terremoto, mas o enólogo Andrés Sánchez sabe que não foi o último: "Nós só tivemos perdas materiais e históricas - a casa do patriarca Francisco está em ruínas e talvez não possa ser reconstruída -, mas, se nossas vinhas velhas que tanto prezamos e que nos dão o sustento já passaram impassíveis por tantos abalos, só podemos segui-las, adaptar-nos, fazer nosso mundo com o que nos é dado e estarmos atentos, pois sabemos que outros terremotos virão", filosofa, ao lado de sua família, na sala da casa já reconstruída, tendo nas mãos uma taça de um de seus vinhos. O Chile, por enquanto, dorme em paz.

UM TERROIR EM MOVIMENTO
"O Chile tem todos os tipos de terremoto que podem acontecer na terra", afi rmou o sismólogo Jaime Campos, da Universidade do Chile, em uma recente entrevista ao jornal El Mercúrio. Segundo ele, indícios coletados com GPS desde 2002 já previam a ocorrência de um grande terremoto na região, por conta da acumulação de energia dos deslocamento das placas de Nazca e Sul-americana nos últimos anos. Infelizmente, os cientistas não conseguem precisar as datas, só a localização e a possibilidade.
O Chile tem uma frequência muito grande de terremotos acima dos 8 graus na escala Richter. Essa escala representa a magnitude de energia sísmica liberada em cada abalo. Ela começa em 3,5 graus, onde já é possível haver um registro, mas a movimentação raramente é percebida pelas pessoas. Os estragos geralmente começam quando a escala registra acima de 5,5 graus e, acima dos 7 graus, o terremoto já é considerado de grandes proporções. Em maio de 1960, o país sofreu um abalo de 9,5 graus, o maior já registrado no mundo, que redesenhou a geografi a da costa chilena, matou mais de 5 mil pessoas e provocou um tsunami que alcançou até o Havaí e as Filipinas, deixando muitos mortos por esses lugares também.
A geografi a e geologia chilenas, particular em muitos aspectos, possibilitam não só que o país se dedique fortemente à pesca e a agricultura, como também tenha sua principal fonte de renda na mineração de cobre. E foi um deslizamento de terra dentro de uma antiga mina de cobre e ouro no deserto do Atacama que manteve 33 mineiros soterrados por 69 dias.
O resgate, para alívio mundial, foi um sucesso, mas comprova a fragilidade do terreno chileno, rico mas delicado. Os mineiros resgatados receberam, no final de outubro, um convite do clube de futebol inglês Manchester United, em parceria com a vinícola Concha y Toro, para irem à Inglaterra e assistirem a uma partida de futebol do time no estádio de Old Trafford. Com certeza em assentos ao ar livre e regados com muito vinho chileno.

(Nota da repórter: Na madrugada depois que essa entrevista/degustação foi feita na fazenda Tabontinaja dos Gillmore, em setembro, um abalo significativo foi registrado na região. Nenhum de nós percebeu nada. Dormimos tranquilos e só soubemos do ocorrido na manhã seguinte.)

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