O paraíso de Dante

"Com meu dizer tua mente se conforma,/notando que do sol calor em vinho, /da uva ao sumo unido, se transforma" (A Divina Comédia)

por Fábio Farah

foto-montagem sobre reprodução
Exilado de sua terra natal, Dante morreu e foi sepultado em Ravena. Seus descendentes produzem vinho na região

Há alguns anos me disseram que os túmulos dos homens sábios possuem um estranho magnetismo. Desde então, cultivo o hábito de visitá-los. Acredito que estão repletos da "alma" de seus ilustres habitantes. Costumo tocar as pedras sepulcrais na esperança de compartilhar experiências de vida e "absorver" qualidades excepcionais, da mesma maneira que um religioso se aproxima de relíquias de santos para ganhar bênçãos celestes, ou índios canibais devoravam o corpo de pessoas admiradas para "roubar" suas virtudes. Deixando de lado a bárbara extorsão espiritual, e imbuído dos ideais nobres da civilização ocidental - mesmo que supersticiosos -, estive em Florença, berço do Renascimento. Para minhas excentricidades espirituais, nenhum cenário mais apropriado do que a basílica de Santa Croce. A belíssima fachada de mármore, branco, verde e rosa, esconde um interior adornado por capelas projetadas por Giotto, Della Robbia e Brunelleschi e, o mais importante, as sepulturas de gênios como Michelangelo, Maquiavel, Galileu Galilei e Dante Alighieri.

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Na primeira visita ao santuário, junto com a multidão de turistas, fui identificado como brasileiro por um guia que falava português e apreciava meu país. Diversas vezes, durante meu passeio de prospecção, fui interpelado por ele. "Você sabia que Michelangelo foi sepultado nessa mesa, após ter seu corpo roubado pelos florentinos?", disse-me em uma das ocasiões. Como desejava estar na Santa Croce sozinho, distante daquela Babel infernal e próximo do silêncio que aproxima os séculos, fiz um esforço para ser simpático e cultivar uma amizade oportunista. "Você tem a chave daqui?", perguntei, poucos minutos antes de acabar o horário de visitação. "Sou um dos guardiões", gabou-se ele. "Estudo geometria sagrada e gostaria de fazer algumas medidas e observações. Mas preciso de sossego. Você me entende?", confidenciei-lhe. "Estamos falando de 200 euros", afirmou sem rodeios, para meu espanto. Era muito mais do que a propina que eu pagara para ficar a sós na casa do Neruda ("A Vingança de Neruda", publicada na edição número 18 de ADEGA). Negociamos a cópia das chaves em 150 euros e um pin da bandeira do Brasil que sempre levo para presentear os aficionados pelo exotismo tropical.

Horas depois, eu ingressava na Santa Croce com um candeeiro - uma lanterna quebraria o encanto -, quatro livros e uma maleta de degustação: quatro rótulos italianos cuidadosamente selecionados e taças apropriadas. Senti-me atraído para o túmulo de Dante, autor de A Divina Comédia. Exilado de sua terra natal em 1302, após seus partidários políticos, os Bianchi, perderem uma disputa para os rivais, os Neri, o poeta morreu e foi sepultado em Ravena. Florença quis resgatar os restos mortais de seu filho ilustre e construiu um imponente sepulcro em Santa Croce. Mas seus ossos nunca foram transladados para lá. Abaixo daquela imensa estátua de Dante, havia uma urna vazia. O monumento fúnebre expunha uma mágoa de séculos. O rosto da escultura, iluminado pela luz amarelada da vela em meu candeeiro, revelava uma tristeza sombria. Desarrolhei a garrafa de "Vaio Amaron", vinho produzido pelo conde Pieralvise Serego Alighieri na propriedade Casal dei Ronchi, em Gargagnago, adquirida, em 1353, por um dos três filhos de Dante, na região de seu exílio.

fotos: Mariana Mansur
Basílica de Santa Croce

Sentado no chão, sorvi o primeiro gole daquela bebida concentrada, complexa e aveludada, lendo o verso inicial da obra-prima do poeta: "Nel mezzo del cammin di nostra vita/mi ritrovai per una selva oscura/che la diritta via era smarrita./ Ahi quanto a dir qual era è cosa dura/esta selva selvaggia e aspra forte/che nel pensier rinova la paura!/ Tant'è amara che poço è più morte;" (Quando eu me encontrava na metade do caminho de nossa vida, me vi perdido em uma selva escura, e a minha vida não mais seguia o caminho certo. Ah, como é difícil descrevê-la! Aquela selva era tão selvagem, cruel, amarga, que sua simples lembrança me traz de volta o medo. Creio que nem mesmo a morte poderia ser tão terrível...). Ouvi um longo suspiro. Fui surpreendido por um homem todo vestido de vermelho. Cabeça coberta e emoldurada por uma coroa de louros. O rosto era inconfundível. Eu estava diante do "florentino injustamente desterrado", como Dante se intitulava em suas cartas.

fotos: Mariana Mansur
Suposta casa de Dante, em Florença

"Onde estou?", questionou-me surpreso. "Em Florença", respondi-lhe, oferecendo-lhe uma taça do vinho de seus descendentes. "Finalmente voltei para casa", disse-me, sorrindo. Durante horas, o poeta me contou a saga iniciada no momento de sua morte, quando foi arrastado para o mundo que ele próprio criara. Falou com detalhes sobre cada um dos nove círculos do inferno e do purgatório. E da ansiedade em chegar ao Paraíso. Fez uma longa pausa assim que terminou a quarta taça do Amarone. "E como é o Paraíso?", questionei, curioso. Sem dizer nada, ele abriu outro largo sorriso. Seus olhos, distantes no tempo e no espaço. "Minha Beatriz... Estou pronto. Podemos ir", disse, desaparecendo subitamente. O poeta partia com a musa que conhecera aos nove anos e pela qual nutrira uma paixão platônica por toda a vida. Reconciliado com Florença e de braços dados com sua alma gêmea, Dante havia chegado ao próprio paraíso. Conferi minha maleta. Ainda restavam três garrafas de vinho, três livros e histórias para uma próxima crônica!

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