"Não existem palavras para interpretar as impressões do paladar. Estamos condenados à imprecisão ou ao perigoso terreno das metáforas. Tudo é literatura" <br> Luis Fernando Verissimo
por Fábio Farah
"É impossível transformar em palavras as qualidades ou defeitos de um vinho", afirmou Verissimo |
O Nariz. Jamais me esqueci do dentista que passou a usar um nariz de borracha, com óculos de aros pretos, sobrancelhas e bigode. E perdeu os clientes, os amigos e a família. Lembrome de que o protagonista dessa crônica insistia ser a mesma pessoa, afirmando que um mero acessório não mudava a essência de ninguém. Por mais exótico que fosse. Ao ler esse texto pela primeira vez, em sala de aula, eu tinha dez anos. E imaginei maneiras estranhas de me vestir – máscaras carnavalescas, perucas coloridas, óculos esquisitos – para afastar pessoas indesejadas. Na oitava série, eu sentava no divã do terapeuta “mais ortodoxo do que pomada Minancora” e passeava com a “última pessoa no Brasil que ainda acredita no governo”. Naquela época, o Analista de Bagé e a Velhinha de Taubaté me divertiam a beça. Eram mais reais do que o autor daquelas histórias. Um tal de Luis Fernando Verissimo.#R#
No mês passado, aceitei um convite para o show da banda Jazz 6, no bar Verissimo. Casa lotada. A mesa reservada diante do palquinho improvisado era minha. Estava tão próxima dele que meus pés tocavam em uma das caixas de som. Enquanto a banda estava dispersa em outra mesa, aproveitei para “descobrir” o ambiente. Dezenas de capas dos livros de Luis Fernando Verissimo dividiam espaço com caricaturas do escritor gaúcho. Em uma delas, ele sorria diante de uma “Veuve Clicquot”, dentro de um balde com gelo. Em outra, apreciava vinho. Tentei imaginar o rótulo. Talvez fosse o “Château Cheval Blanc” que ele mantém em sua adega há oito anos, esperando o momento oportuno para desarrolhá-lo. Ao virar o rosto, encontrei Luis Fernando, a caricatura, fumando um puro.
Logo, a banda reuniu-se no palco. Luis Fernando, o herói desconhecido de minha infância, em carne e osso diante de mim. Chamei o garçom e pedi uma “Asinha do Avesso na Grelha”. Para harmonizar com o ambiente – e os petiscos –, escolhi uma caipirinha de frutas verdes. Copo longo. Por um vício de apreciador de vinho, girei a bebida, fechei os olhos e exalei seus aromas. O saxofone do escritor desenhava a canção “Samba de Verão”. Meu nariz buscou as nuanças frutadas da caipirinha. Meu nariz... Abri os olhos. Em um canto de uma parede mais escondida, quase no teto, enxerguei a capa do livro O Nariz e Outras Crônicas. Estava lá o personagem com a estranha máscara. “Ele poderia fazer quase tudo com aquela máscara, mas seria incapaz de degustar um vinho. Seu olfato ficaria comprometido”, pensei.
Aplausos. A primeira canção havia terminado. Tímido, Luis Fernando olhou em minha direção. E esboçou um “Muito Obrigado”, quase inaudível. Lembrei-me de uma citação de sua autoria: “Já disse mais bobagem sobre vinhos do que sobre qualquer assunto, com a possível exceção do orgasmo feminino e da vida eterna. Isto porque é impossível transformar em palavras as qualidades ou defeitos de um vinho, ou as sensações que ele provoca, assim como é impossível, por exemplo, descrever um cheiro e um gosto. Tente descrever o sabor de uma amora. Além de amplas e vagas categorias, como ‘doce’, ‘amargo’, ‘ácido’ etc., não existem palavras para interpretar as impressões do paladar. Estamos condenados à imprecisão ou ao perigoso terreno das metáforas. Tudo é literatura”. Sorri ao som de “Don’t get around much anymore”.
Além do prazer em apreciar bons vinhos, charutos e jazz, eu compartilhava outro gosto com Luis Fernando. Ele, desde sua infância, tinha curiosidade em buscar novos sabores e misturava “coisas doces com salgadas”, conforme revelou à ADEGA (Edição nº 15). O gosto evoluiu com o passar dos anos e ele dedicou um espaço de sua obra à cozinha, a exemplo de A Mesa Voadora e Gula – O Clube dos Anjos. E eu, em minha carreira jornalística, tornei-me um gourmet acidental, ora assinando críticas gastronômicas, ora mergulhando em taças de vinho. Nesses últimos anos, meu nariz tornou- se uma ferramenta tão fundamental para meu trabalho como a pena de escritor. É... o paladar também, mas sendo ele composto de 60 a 80% de olfato, o nariz continua sendo o protagonista. O nariz. Beberiquei mais um pouco de caipirinha. Sorvi outras canções. Observei o escritor/músico. Fitei a capa do livro. Respirei fundo.
Eu nunca tinha estado tão próximo do personagem como naquele momento. Sentia-me condenado ao perigoso terreno das metáforas, ousando interpretar as impressões do paladar. E nunca tinha me dado conta, até então, de que uma máscara invisível cobria meu nariz e encobria as sensações da alma... Ouvindo a canção “Vivo sonhando”, concordei, afinal: Tudo era literatura. E sonho.