"Vinho, ensina-me a arte de ver minha própria história Como se esta já fora cinza na memória" Jorge Luis Borges
por Fábio Farah
Os vinhos estavam bons apenas para temperar uma salada de folhas verdes |
Desde que passei a estudar e a escrever sobre vinho, comecei a ser assediado por diversas pessoas com os mais variados propósitos. Amigos, leitores anônimos e... família. Em todas as festas familiares, um parente se aproxima e faz referência ao elixir de Baco. Ontem, enquanto degustava um “Almaviva 2002”, lembreime de um desses personagens: o tio Marcos. Ele sempre comenta sobre os rótulos de melhor custo-benefício que encontra nas prateleiras de supermercado. Geralmente são Cabernets Sauvignons chilenos ou Malbecs argentinos produzidos em escala industrial. Por ter ascendência italiana e espanhola, ele cresceu em uma casa onde o garrafão de vinho tinha lugar de destaque durante as refeições. Algumas vezes, convido o tio Marcos para a degustação de um Grand Cru Classé. Ele fica em um silêncio reverente enquanto desarrolho a garrafa. Após sorver o primeiro gole, suas bochechas avermelhamse. Sorriso no rosto. Sei reconhecer um enófilo nato pelo brilho de seus olhos. O tio Marcos é um deles. Alguns dos convidados para essas degustações familiares estão em uma outra categoria. “Para segurar na taça tenho que levantar o dedinho?”, brinca o tio Beethoven. “Esse vinho tem ‘cheiro’ de quê? Acho que sinto amoras francesas e figos imperiais”. Ele é um debochado e simboliza o lado festivo da bebida. A brincadeira de classificar meus parentes estava divertida para que eu parasse por aí.
#R#O vinho também incita o lado exibicionista de algumas pessoas. Certa vez, em uma festa natalina, um parente narrou-me, com pompa e circunstância, um jantar em um restaurante parisiense. O sommelier da casa segurava uma garrafa magnum de champagne com apenas dois dedos. Antes de servir os clientes, ele provou a bebida... no taste-vin de prata que trazia no pescoço. “Esse sujeito deveria trabalhar em um circo”, foi meu único comentário, duvidando que a história fosse verdadeira. À distância, observei-o degustar um Lambrusco como se fosse uma Krug. Ao menos, ele segurava na taça pela haste. Um enochato com "e" minúsculo.
Há dois anos conheci um primo distante que me presenteou com a cidadania européia. Uma pessoa interessante com histórias saborosas para contar sobre suas viagens à Itália. A visita a sua casa estava ótima até o momento de conhecer a adega subterrânea. Temperatura agradável. Aroma estranho. “Você precisa beber o vinho que eu faço aqui”, disse-me. Não tive escapatória e fiz uma “degustação vertical” de “vinhos” produzidos com “uvas niágara da melhor safra” e “envelhecidos em tonel de eucalipto”. Eucalipto. Aroma de sauna. Para classificá-lo, evoco o escritor português Aquilino Ribeiro: “O pior dos crimes é produzir vinho mau, engarrafá- lo e servi-lo aos amigos”. Esse meu primo seria o pior dos criminosos enológicos.
Há dois meses, estava na casa da matriarca da família, Euzelina, 80 anos, que, recentemente, publicou – em edição limitada para os parentes – um livro sobre a história de nossos antepassados chamado A Saga dos Farah. Enquanto tricotava, ela contava-me as últimas novidades. Cresci ouvindo sua voz e recordome até hoje de seus contos de fada. Diferentemente dos demais, ela nunca tinha conversado comigo sobre vinho. Percebi quando ela mudou o tom de voz. Ficou em silêncio por alguns segundos antes de prosseguir. “Você poderia ver os meus vinhos?”, questionou- me. Assenti com a cabeça. Ela saiu e voltou com uma chave. Enorme e enferrujada. Abriu um armário com motivos rococó no canto da sala. Estiquei o pescoço. Dezenas de garrafas “em pé”. O estado da maioria dos rótulos denunciava a idade avançada. Senti calafrio ao ver, de relance, um exemplar do vinho alemão da garrafa azul. Ela fitou-me, ansiosa para ouvir meus comentários... Infalíveis.
“Nenhum vinho presta, tia. Todos estão bons apenas para temperar uma salada de folhas verdes. Viraram vinagre”, vaticinei friamente. “Pensei que vinho fosse como ouro, melhorasse com o tempo”, respondeu-me. Voz triste. “Esse aqui, eu ganhei na formatura da faculdade”, disse-me com o dedo indicador apontando um vinho mais ao fundo. E com os olhos no passado. “Esse aqui é de 1964”, mostrou- me uma garrafa de espumante Cinzano. “Método Charmat” estampado no rótulo. Percebi que o tesouro de minha tia não era a adega – que ela pretendia colocar no testamento até aquele momento –, mas as histórias guardadas naquelas garrafas. A tia Zelina revelou-se a personificação do verdadeiro espírito do vinho: simbolizar histórias com alma. Histórias com vida.