O Sertão vai virar Vinho

Parreirais entre coqueiros e cactos. Vinhos premiados e exportados. Tendo o interior do nordeste como novo terroir, sobram poucas barreiras a romper no mundo do vinho

por Sílvia Mascella Rosa

O horizonte verde da caatinga com os vinhedos da Terranova

O sertão não é algo que se idealize, ele é inesperado. Está lá como que zombeteiro de tudo o que os não nordestinos acham que sabem a seu respeito. Há no ar um cheiro de palha fresca, uma brisa úmida que raspa nos arbustos espinhentos. Essa terra não é para os de paladar pré-fabricado. Chegando de avião em Petrolina, limite do Estado de Pernambuco com a Bahia, a paisagem nem sequer denota a possibilidade de vinhedos. Afinal, este é o paralelo oito sul, muito perto do Equador. O majestoso rio São Francisco domina o olhar serpenteando através dos sertões. O santo que lhe dá nome, padroeiro dos pobres, dos animais e da lavoura, não poderia combinar melhor com o cenário que o rio transformou e modernizou.

A imagem que muitos de nós guardam do sertão é de pobreza seca e árida (que não cessou de existir totalmente), mas ao menos neste pedaço de nordeste não é mais a tônica. O vôo chega lotado, com homens de negócios das mais variadas searas como, por exemplo, a agro-indústria e a construção civil. É verdade que poucos deles conhecem detalhes sobre os vinhos que são feitos aqui, mas já sabem que gostam de bebê-los. O forte da região são as uvas de mesa e as mangas. A produção de alta qualidade faz deste o Estado responsável por quase toda a produção deste tipo de uva do País, para consumo interno e exportação.

fotos: Sílvia Mascella Rosa
Vinhedos da Vinibrasil, do Grupo Dão Sul, na fazenda em Lagoa Grande

O motor do crescimento foi a utilização da água do Velho Chico nas lavouras, favorecida pela barragem de Sobradinho. Com a água e energia garantidas, as fazendas puderam diversificar cultivos e a uva começou a ocupar seu lugar. As viníferas chegaram à região no início da década de 1980 e o primeiro vinho fino feito foi o Boticelli, em 1986, cuja empresa também investe em suco de uva.

Passados mais de 20 anos desse pioneirismo, as videiras das sete empresas instaladas no vale ocupam mais de 700 hectares do semi-árido. Elas parecem rústicas como a terra pedregosa que lhes dá sustento, mas seus doces frutos já são responsáveis por 15% da produção de vinhos finos no Brasil. Localizadas em cidades vizinhas à grande Petrolina, elas margeiam o rio, como na Rota do Vinho, ali estão a Vinibrasil, Botticelli, Bianchetti Tedesco, entre outras e, na cidade de Casa Nova, já na Bahia, onde está a Miolo.


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Moscatel Itália, cepa bem sucedida no semi-árido

O principal diferencial do semi-árido é a alta temperatura durante o ano, característica que atrai críticas dos que não conhecem de perto a realidade da região. Acostumados a escutar que não há grande amplitude climática no sertão, os enólogos se defendem com dados. "Isso é menos verdade do que se imagina. O verão é mesmo muito quente e, portanto, evitamos colher algumas uvas nessa época. Como temos maior controle da planta por aqui, escolhemos o quê e quando colher. Assim, para concentrar sabores, colhemos algumas cepas na segunda metade do ano (quando é inverinverno no sul) com as temperaturas variando entre 29 graus Celsius de dia e 15 graus Celsius na madrugada", explica o português João Santos, diretor técnico da Vinibrasil - do grupo português Dão Sul.

Esse novo terroir tem características distintas, que produzem vinhos diferenciados. Santos, que adotou o Brasil há cinco anos, investe em pesquisa para continuar provando que as características do vale são favoráveis. Em uma delas, ele conduz um experimento com a uva que rapidamente se adaptou ao solo do sertão, a Syrah. Para a prova, foram comprados sete clones de várias partes do mundo e colocados em sete diferentes porta-enxertos, buscando descobrir qual a combinação que mais se beneficia do terroir.

fotos: Sílvia Mascella Rosa
Sede do empreendimento da Miolo/Lovara, que fica no sertão baiano

Pots de cobre franceses da Osborne

Os 200 hectares plantados pela Vinibrasil estão em expansão e já somam dez castas em produção e mais 25 em testes. "Quando eu fazia mestrado em Portugal, vim para o vale pela primeira vez e encontrei coisas que achava inviáveis como grandes extensões de uvas em latada e duas safras anuais", conta Marta Agoas, enóloga da Dão Sul, "hoje entendo porque ter corrido o risco de montar um grande empreendimento aqui, ele não só é viável como é surpreendente". As parreiras em latada ainda existem e envergam vigorosos cachos de Touriga Nacional. A escolha faz sentido em uma área de grande insolação, onde os cachos precisam de mais proteção. A Vinibrasil explora a Syrah em vários vinhos, seja em espumantes (tanto o brut quanto o rosé) e nos vinhos tranqüilos, com resultados muito bons. E também investe em outros varietais, que apresentam grande concentração de cor e sabor como o Touriga Nacional e o Alicante Bouschet e no elegante assemblage Paralelo 8 (ver em Cave).

No lado baiano do vale está instalada a vinícola Terranova, empreendimento conjunto da Miolo e da Lovara, na fazenda Ouro Verde. Por lá, a paisagem é plana e seca, e os olhos se distraem aqui e ali por um açude, coqueiros, cactos e carcarás planando em busca de alimento. A natureza está em harmonia e, as videiras, por incrível que pareça, não destoam da paisagem: estão verdes sob o sol quente e o céu azul. Dentro da quase terminada sede da vinícola, a enóloga gaúcha Jussara Ferron conta que teve que reaprender parte de seu ofício para trabalhar no semi-árido. "O clima é radical, mas por isso mesmo aprendemos a usá-lo. E para nos favorecer, ele é mais previsível do que no sul", explica.


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A casta francesa Mouvedre está em teste na região

Entre os grandes êxitos da Terranova estão os espumantes, tanto o Moscatel quanto o Brut e o Demi Sec, feitos com o inusitado assemblage de Chenin, Sauvignon Blanc e Verdejo (já publicado em ADEGA) e o Late Harvest, com uvas adoçadas pelo longo período de insolação. A novidade ali é o brandy, feito em parceria com a vinícola espanhola Osborne. Os pots de cobre de destilação ocupam um espaço separado do restante da vinícola e recebem a atenção de dois operadores. Os próprios sócios espanhóis estão entusiasmados com o resultado. A fazenda Ouro Verde deve expandir seu plantio de uvas para 400 hectares até 2010, toda a área irrigada por gotejamento, com água vinda do lago da barragem de Sobradinho. A expectativa da Miolo é de que, até 2012, a vinícola esteja produzindo quase quatro milhões de litros de vinho/ano.

Na década de 70, a dupla Sá e Guarabyra compôs um xote chamado Sobradinho, que na primeira estrofe dizia: "O homem chega e já desfaz a natureza, tira a gente e põe represa, diz que tudo vai mudar". Trinta anos depois, de forma muito mais apaziguadora, é possível dizer que sim, a natureza mudada pelo homem deu frutos e boa parte do sertão virou um mar de vinho.

* em visita à Petrolina

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