Terroir, vinho e identidade: uma equação que tem tudo a ver com a diversidade cultural da humanidade
por Marina Regis Cavicchioli*
O vinho tem sido, ao longo de sua história, importante fator simbólico legitimador de identidades por vincular-se a determinadas culturas, o que o insere em contextos de discussões políticas mais amplas. Pode parecer surpreendente, mas é isso mesmo.
Um dos exemplos relaciona-se às atualíssimas discussões sobre a preocupação em preservar as diversidades culturais e identitárias, que levou a Unesco a aprovar, em 20 de outubro de 2005, com ampla maioria, a Convenção sobre proteção e promoção da diversidade de expressões culturais.
Na mesma semana ocorreu, em Nova Iorque, uma reunião internacional organizada pela International Cultural Property Society (Sociedade Internacional sobre Propriedade Cultural) para discutir quais são os interesses envolvidos, quem se beneficiaria com a nova regulamentação e como isso afetaria o patrimônio cultural em todo o mundo. Em uma atmosfera interdisciplinar de discussão aberta, foram reunidos vinte especialistas de diversas partes do mundo. Participaram, entre outros, renomados atuantes na Unesco, como os juristas australianos Patrick OKeefe e Lyndel Prott, estudiosos do direito da propriedade cultural, como o canadense Robert Paterson, o veterano patrimonialista britânico David Lowenthal, e, como representante da América Latina, o estudioso brasileiro Pedro Paulo A. Funari.
A preservação do terroir como um patrimônio cultural foi o tema abordado no coquetel de abertura. O terroir, considerado o principal fator pelo qual uma casta possa, em locais distintos, dar vinhos tão diferentes, é tradicionalmente definido como o conjunto de fatores ambientais que caracterizam um vinhedo. Em outras palavras: o solo, sua estrutura, sua exposição ao sol, vento e chuva, sua orientação geográfica, sua topografia, o clima, e o micro-clima que lhe está associado.
Em um primeiro momento, nos parece estranho pensar uma discussão sobre terroir no contexto de uma reunião sobre a diversidade cultural. Mas, pensando bem, o sentido terroir, proposto na ocasião, amplia o conceito tradicional, englobando o conjunto de relações humanas e identitárias que estariam vinculadas àqueles pequenos pedaços de terra.
Características de produção, desde a forma de plantio da uva, o tratamento, a colheita e a elaboração de vinhos - geralmente com produções bem pequenas - foram fatores relevantes na elaboração deste conceito. Todavia, a própria organização da vida cotidiana das pessoas que vivem ao redor destes diferentes terroirs, as relações culturais e simbólicas que têm com o vinho, também foram levados em conta.
O terroir, como um conceito cultural e identitário, considera que, nestas regiões, a maior parte das pessoas vive para a produção dos vinhos, que para elas não é uma simples mercadoria, mas uma obra de arte, da qual participam e se orgulham. Terroir, vinho e identidade: uma equação que tem tudo a ver com a diversidade cultural da humanidade. A produção destes vinhos é parte da cultura local e está relacionado com a identificação que estas pessoas possuem com sua região e seu país.
Este é o motivo pelo qual podemos compreender o tratamento dado pela resistência francesa aos vinhos durante a Segunda Guerra Mundial. As garrafas foram um tesouro bem protegido e escondido dos alemães. Obviamente o sentido de preservação não consistia apenas em conservar um bem material, mas o símbolo de uma identidade, de um orgulho nacional. Não entregá-lo era, em certa medida, poupar a própria alma dos franceses, ou ao menos daqueles grupos que se vinculavam culturalmente aos terroirs.
Talvez por este motivo, a idéia apresentada na reunião tenha sido a de que somente os países europeus possuíssem terroirs, pois, apenas no Velho Mundo, essa identidade cultural vinculada ao terroir é tão forte. Essa idéia criou polêmicas e não foi defendida pela maioria. Nos parece um certo exclusivismo europeu. Todavia, não podemos deixar de pensar que considerar o lado cultural e identitário do terroir seja algo muito interessante. Até mesmo porque inserir estas discussões em contextos históricos, intelectuais e políticos nos lembra que esta não é a primeira, nem a última vez, que o vinho, vinculado a identidades, se torna questão de Estado. Cabe lembrar que a bebida foi tema de um desentendimento de conseqüências políticas, em 1999, quando o presidente do Irã faria uma visita de Estado à França. O presidente, por causa da lei Islâmica, que proíbe o consumo de bebidas alcoólicas, afirmou que no jantar oficial não só não beberia vinho, como também não se sentaria à mesa se este fosse servido. As autoridades francesas disseram que um jantar daqueles sem vinho não seria possível. O jantar foi cancelado e como o protocolo exigia que uma visita de Estado incluisse um banquete de Estado, o encontro das autoridades foi rebaixado para visita oficial. Neste caso, vemos a mesma bebida, com simbolismos muito diversos: proibida ou cortejada de acordo com a identificação de cada povo.
Como pudemos perceber, as identidades, ainda que nos últimos tempos fluídas e plurais, são fatores de influências sobre decisões políticas e econômicas, que conduziram as relações no passado e condicionam as relações no presente, atuando, também, no mercado financeiro. Compreendê-las, significa, muitas vezes, compreender políticas públicas e relações culturais e históricas, que atingem a todos nós, de forma direta, como sujeitos de uma identidade, ou indireta, como consumidores de vinho.
*Historiadora e Arqueóloga, pesquisadora do NEE-UNICAMP e estudiosa da História do Vinho.
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