Revolução bárbara

Gaja transformou o Barbaresco em um ícone mundial

por Arnaldo Grizzo



Três gerações: Angelo, Giovanni (neto) e Giovanni (avô)

No norte da Itália, no Piemonte, perto de Turim, há duas pequenas regiões vitivinícolas bastante similares, mas, ainda assim, diferentes. Lá cresce com galhardia uma das mais famosas uvas italianas, a Nebbiolo, que deu fama a um dos clássicos locais, o vinho da comuna de Barolo, que caiu nas graças da Casa de Savóia – que reinou sobre a Itália até a II Guerra Mundial. Porém, logo ao lado de Barolo, cerca de três quilômetros de distância, outra comuna, que também cultivava a Nebbiolo, acabou relegada a um segundo plano.

Foi somente na década de 1960 que Barbaresco veio à tona e se tornaria um novo ícone italiano nos anos que se seguiriam, especialmente devido a um jovem revolucionário chamado Angelo Gaja. Naquela época, pouco mais de 100 anos após seu bisavô ter fundado a empresa, ele resolveu romper com as tradições e produzir vinhos somente com as uvas de seus próprios vinhedos, o que significava deixar de lado a produção dos Barolos, pois suas terras eram em Barbaresco.


Gaja trouxe inovações para a vitivinicultura do Piemonte

Tendo estudado enologia em Alba, uma cidade da região do Piemonte e também na universidade de Montpellier, na França, (e ainda tendo feito economia na universidade de Turim), Angelo entrou no negócio familiar em 1961 e logo bateu de frente com seu pai, Giovanni, que foi contra diversas de suas mudanças, como o uso de barricas novas para envelhecimento e o cultivo de variedades francesas, como a Cabernet Sauvignon, por exemplo. Por isso e por outras tantas ideias que iam contra as tradições locais (diz-se que ele introduziu a fermentação malolática no Piemonte), ele causou furor na região. Diz-se que essas mudanças foram influenciadas por um estágio que ele fez com Robert Mondavi no Napa Valley. Seus “experimentos”, contudo, transformaram o Barbaresco e ainda trouxeram novo ânimo ao Barolo, além de trazer à tona outras castas como a Barbera e as novas variedades vindas de fora.


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Fotos: Divulgação
Em 1859, Giovanni Gaja fundou a empresa. Mas foi Angelo, seu bisneto, que ajudou a formar o mito do vinho de Barbaresco (á direita). Hoje, Gaia Gaja (foto à esquerda), filha de Angelo, tem tomado as rédeas da empresa

Uma avó visionária?
No entanto, antes de Angelo ter feito todas as suas peripécias e revolucionado o vinho do Piemonte, sua avó parece ter sido fundamental para que ele pudesse implementar algumas de suas inovações, principalmente os vinhos single vineyard. Foi Clotilde Rey, um professora de escola primária casada com Angelo (avô homônimo do atual mandachuva da vinícola), que sugeriu que a família comprasse os melhores vinhedos de Barbaresco depois da II Guerra Mundial, quando as famílias estavam deixando a região rural para ir para Turim (muitos para trabalhar na Fiat). Ela teria ensinado os mais jovens a escolher esses terroirs, optando pelas faixas de terra em que a neve derrete mais cedo, chamadas de Sorì. Mais tarde, um dos vinhos mais famosos da casa homenagearia Clotilde e seria batizado de Sorì Tildin.

Antes ainda de Clotilde, o primeiro a fincar as raízes dos Gaja na vitivinicultura foi o avô de seu marido, Giovanni (a família é de origem espanhola e se instalou no Piemonte há mais de 300 anos). Não estranhe. Você não está perdido com os nomes. Giovanni também é o nome do pai do atual Angelo, dirigente da empresa. É que a família, além da tradição vinícola, cultiva também os mesmos nomes. Assim, os homens homenageiam seus genitores batizando seus filhos com os nomes dos avôs. Assim, deste Giovanni, que fundou a empresa em 1859, sucedeu-o seu filho Angelo, que foi sucedido por outro Giovanni, que é pai do revolucionário Angelo. Entendeu agora?

Enfim, em 1859, Giovanni montou uma vinícola e uma trattoria. Logo, ficou só com a vinícola. Seu neto, Giovanni, foi quem começou a ostentar o nome Gaja (maior do que a denominação Barbaresco) nos rótulos dos vinhos durante a década de 1930, como que para justificar seu preço mais elevado em relação aos outros vinhos da região, mesmo os Barolos.

Todavia foi com Angelo, por fim, que não só o vinho da família, mas os vinhos de todo o Piemonte ganharam notoriedade. O atual comandante da empresa (na verdade suas filhas, Gaia e Rossana, têm aparecido mais à frente dos negócios hoje em dia, mas Angelo ainda não se diz aposentado mesmo já na casa dos 70 anos) é tido como um grande visionário e empreendedor. Sua fama de não dar ponto sem nó é tanta que, ao instituir as rolhas mais longas do mundo para selar seus vinhos, foi criticado. Contudo, um de seus amigos alertou: “Vocês sabem porque ele usa rolhas longas? Para que possa colocar dois centímetros a menos de Sorì Tildin em cada garrafa. O vinho é tão caro que assim ele paga o custo extra (da rolha e da garrafa em formato diferente) com essa economia em vinho”.


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Terroir e vinhos
A comuna de Barbaresco tem pouco mais de 7 mil quilômetros quadrados e a vila conta com cerca de 600 habitantes. Na década de 1960, havia poucos produtores na região, ao redor de 100, com 190 hectares de área produtiva. Depois da revolução de Gaja, atualmente são cerca de 200 produtores e por volta de 600 hectares. Na região, a empresa possui três vinhedos: Sorì San Lorenzo – que estreou em 1967 o conceito Barbaresco single vineyard da casa –, Sorì Tildin e Costa Russi. Depois, eles adquiriram terras em Barolo também, onde produzem o Conteisa e o Sperss.

Diz-se que aquela pequena região do Piemonte – junto com Barolo – é ideal para o cultivo da complicada Nebbiolo, uma uva de ciclo longo, geralmente a primeira a brotar e a última a amadurecer no solo calcário de Barbaresco com seu clima continental frio, que costuma formar uma névoa (nébbia em italiano) sobre as colinas da área – daí o nome Nebbiolo. Aliás, é o rio Tanaro, afluente do Pó, o responsável pelo acúmulo de argila e cascalho glacial que se arrasta pelo Alpes do sul e, além de constituir a essência do terroir, circunda as colinas e a envolve em brumas durante a colheita.

Em 1978, Angelo resolveu escandalizar os produtores locais, incluindo seu pai, e plantou mudas de Cabernet Sauvignon. Reza a lenda que seu progenitor ficou tão chateado que vivia resmungando: “Darmagi”, algo como: “Que vergonha”, no dialeto local. O resultado: Darmagi se tornou o nome de seu varietal de Cabernet. No ano seguinte, mais uma afronta às tradições piemontesas: o cultivo de Chardonnay, que resultaria em um vinho batizado em homenagem à filha e à avó: Gaia e Rey. Não contente com o que havia conquistado no Piemonte, Angelo ainda se lançou sobre a Toscana, onde produz Brunellos e Super Toscanos.


Em 1978, Angelo Gaja escandalizou a região ao plantar mudas de cabernet Sauvignon


1996 – o desafio
Em 1996, mais uma vez Gaja criou alvoroço no Piemonte. Naquela safra ele resolveu não classificar seus vinhos como DOCG (até então eles eram Barolo e Barbaresco DOCG – Denominazione di Origine Controllata e Garantita), colocando-os como Langhe Rosso, uma denominação inferior. Isso possibilitou que ele incluísse pequenas porcentagens de Barbera no vinho – que deveria ser 100% Nebbiolo –, para ajustar a acidez, concedendo mais frescor aos seus vinhos.

A pequena e cuidadosa produção faz com que seus produtos sejam mundialmente requisitados (são vendidos pelo sistema de négociants en primeur – outra inovação de Angelo). Seu Barbaresco Sorì San Lorenzo é um vinho franco, amplo, redondo, cuja estrutura tânica permite uma grande longevidade e são produzidas apenas 11 mil garrafas por ano. Algumas das safras mais marcantes são: 1947, 1961, 1971, 1989 e 1997.

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