Uma viagem por oito paladares peculiares que, apenas com um toque, podem dar vida e personalidade às refeições
por João Geirinhas*
O convite tinha tanto de enigmático quanto de irrecusável: "Viemos convidá-lo para um almoço de ervas...". Nestes termos, o resultado só poderia ser um acontecimento inesquecível.
Três dos memoráveis pratos servidos foram 'cardos limados com bacalhau', 'poejada de bacalhau' e 'beldroegas com queijos e ovos'. O casal Graça Santana Ramalho e Joaquim Madeira tem com os vinhos, aromas e sabores do Alentejo uma relação tão antiga quanto apaixonada.
Ela herdou de família uma casa agrícola com história e tradição na produção de vinho e, apesar de ter construído uma sólida carreira em outras competências, não virou a cara ao desafio quando o menino lhe veio cair nos braços. Ele dedicou toda a sua vida à vinha e ao vinho, com obra vasta, publicada e amplamente documentada na construção do soberbo edifício que é hoje o vinho alentejano.
Para além dos vinhos, une-os ainda a paixão pela terra, a ideia comum da preservação dos valores e tradições seculares daquele povo. Por isso, o almoço proposto, mais que uma simples manifestação gastronômica, arriscava-se a ser um exemplo de 'história ao vivo'.
A Casa de Sabicos, palco desse festim antropológico, fica nas Aldeias de Montoito. As origens dessa propriedade remontam aos meados do século XIX, quando numa família de agricultores locais se destacou uma respeitável avó, conhecida como Sabica por seus familiares e amigos. Decidida e arrojada, criou em conjunto com os seus oito filhos uma grande sociedade agrícola que chegou a deter a exploração de vários milhares de hectares, onde se explorava a pecuária e os cereais.
Segundo Graça, o vinho e a vinha eram objeto de uma singular disputa: "Educados no apreço pela qualidade, os filhos de Dona Sabica foram curiosamente incentivados a produzir individualmente uvas que originavam vinhos próprios, os quais competiam com os dela e com os dos outros irmãos".
O gene da insatisfação permanente, da procura persistente dos melhores solos, da implantação das castas mais adequadas, do cuidado dispensado ao tratamento da vinha nasceu possivelmente aí, nessa saudável competição entre os membros da família, onde todos os anos se provavam os vinhos das nove adegas e se elegia 'o melhor do mundo'. Daquele mundo pelo menos.
O gosto pela prova e pela comparação entre vinhos mantém-se ainda vivo nos membros da família e traduziu-se na outra vertente impressionante do celebrado almoço. Joaquim Madeira não fez por menos: de sua adega particular, colocou à disposição dos convidados, na maioria jornalistas, mas também alguns amigos, algumas preciosidades acumuladas dos anos 70, 80 e 90 - no total, quase cinqüenta garrafas convenientemente divididas por todas as sub-regiões do Alentejo: Portalegre (o Mouchão 1982 estava soberbo), Borba (Quinta do Carmo 1986 é um monumento!), Redondo (vários exemplares da década de 80 ainda interessantes); Reguengos (foi interessante visitar os primeiros Esporões, por exemplo), Granja (Terras de Suão da década de 80 estão muito bons), Évora (Cartuxa, é claro!) e Vidigueira. É claro que não foram provados todos, nem esse era o objetivo, mas a diversidade (e a longevidade) dos vinhos alentejanos estava ali demonstrada para surpresa de muitos.
A população do Alentejo teve, desde sempre, a arte e o engenho de aproveitar ao máximo os parcos recursos que a terra (e as condições impostas pelos homens) lhes dispensava. A necessidade aguça o engenho e, por isso, ninguém como eles conseguiu um aproveitamento tão intenso e ao mesmo tempo tão criativo de ingredientes naturais que a maioria das pessoas naturalmente desprezava.
Segundo Joaquim Madeira, que estudou a fundo o assunto, são mais de 400 espécies e subespécies herbáceas existentes, a maioria de crescimento espontâneo, que contribuíram para alimentar ou para condimentar, com os seus aromas e sabores, as refeições daquele povo. "Nós nascemos e crescemos nesse contexto e, desde muito cedo, cresceu igualmente o nosso interesse por tudo o que a terra pode oferecer. Por isso quisemos partilhar com um grupo de amigos alguns desses aromas e sabores", disse Joaquim.
Foram, então, as ervas que comandaram uma refeição tão especial - coentros, cardos, beldroegas, poejos, a hortelã da Ribeira, alecrim, tomilho e hortelã.
Depois de uma entrada com presunto ibérico de estalo e saborosos queijinhos de Montoito, foram servidas as entradas. Sob o signo dos coentros (Coriandrum sativum) foram servidas quatro iguarias: favinhas, orelha de porco, pezinhos de porco e fígado de porco. Os coentros são originários da bacia do Mediterrâneo e da Ásia Ocidental. É uma espécie espontânea que nascia junto aos cursos de água, mas que hoje é cultivada em inúmeras regiões, sendo considerado o condimento por excelência da cozinha do Alentejo. Curiosamente, nos dias de hoje, tirando certas zonas da América Latina e da Ásia, é um condimento cujas folhas frescas são relativamente pouco utilizadas pelas cozinhas de inspiração mediterrânea. Portugal e o Alentejo são, evidentemente, um caso à parte. As folhas de coentro são sempre adicionadas no final da cozedura já que o calor intenso e prolongado reduz consideravelmente o seu aroma e sabor.
Com os cardos (Echinops strigosus), foram servidos uma perfumada e suculenta sopa de cardinhos com bacalhau e ovos e uns cardinhos com carnes de porco alentejano, untuosos e tenros. Essa é uma planta que aparece na primavera e prefere os solos de argila que lhe permitem apresentar espécies mais suculentas. As partes comestíveis dessa planta são as nervuras, que devem ser colhidas com um cuidado especial - 'ripar' para remover a parte do limbo não comestível. Como se sabe, os cardos também são bastante utilizados no processo de produção de queijos, no qual desempenham o papel essencial na transformação química do leite quando aquecido a temperaturas moderadas (coalhar). Como condimento de alimentos, seu uso restringe-se ao Alentejo.
As beldroegas (Portucala oleracea) são plantas expansivas que crescem espontaneamente por todo o mundo, nos cursos de água ou em solos frescos e ricos, na Primavera-Verão. São utilizadas há séculos no Sul da Europa e no Oriente Médio, mas seu uso na alimentação, no entanto, caíram em desuso na maior parte das regiões, com exceção do Alentejo. Aproveitam-se as folhas e os caules, que apresentam uma textura macia e ligeiramente ácida. No Oriente Médio, a beldroega picada, com um molho à base de iogurte temperado com alho, é servida como acompanhamento de carnes grelhadas. No Alentejo, privilegia-se seu uso nas sopas, já que o cozimento realça o seu teor mucilaginoso, que fornece um bom engrossamento do caldo. Como todos os verdadeiros apaixonados pela cozinha alentejana sabem, a sopa de beldroegas com queijo e ovos é um clássico.
Planta da família das Labiatae, os poejos (Mentha pulegium) têm o seu habitat, tal como as outras plantas referidas, junto aos cursos de água corrente. Devido à sua hipersensibilidade às agressões dos agentes químicos ou dos esgotos domésticos, sua área de dispersão é hoje bem mais limitada e indica geralmente uma zona livre de poluição. É usada com fins medicinais desde tempos memoriais e para elaboração de licores intensos e perfumados. Como condimento, deve ser usada com parcimônia porque é muita ativa, tem aroma muito forte e seu gosto intenso e amargo se sobrepõe ao do alimento que pretende temperar. Em nosso almoço, os anfitriões utilizaram-na como elemento principal de um prato que é característico da zona do redondo e é normalmente confeccionado na Quarta-feira de Cinzas, marcando o início da Quaresma: poejada de bacalhau. Devido ao seu sabor intenso, terá sido talvez o prato menos consensual, mas, para mim, nem que fosse pela novidade, foi dos mais marcantes.
Apesar do nome, a hortelã da Ribeira (Preslia cervina) é outra planta da família das Labiatae e tem habitat e biologia muito semelhantes aos poejos. No Alentejo, essa erva é usada para temperar os pratos confeccionados com peixe. Também possui aroma muito intenso, que perfuma o meio onde se desenvolve. O belo peixe no forno com hortelã da Ribeira que nos foi apresentado estava muito bom, perfumado, úmido e com a carne a desfazer-se.
Duas plantas da família das Lamiaceae: o alecrim (Rosmarinus officinales) e o tomilho (Thymus zygis) são usados para perfumar ou condimentar alimentos. O alecrim, originário do Mediterrâneo, denso, perene e sempre verde, é hoje cultivado praticamente por toda a Europa e América e usado como erva aromática ou como incenso. O fumo de alecrim queimado afugenta os maus cheiros e, acredita-se, os maus espíritos. Vai bem com legumes fritos, vitela, carne de porco e coelho. Já o tomilho é um condimento essencial de grande parte da cozinha ocidental e do Oriente Médio. Existem muitas variedades cultivadas dessa planta, todas derivadas do tomilho silvestre. Resiste a uma cozedura longa e lenta e, quando usado com discrição, realça o sabor das outras ervas sem as subjugar; também encontra perfeição com cebolas e o vinho tinto. Em nosso almoço, o alecrim perfumou uma extraordinária perna de borrego no forno à qual ainda hoje lamento não ter chegado com mais apetite para lhe fazer as devidas honras.
Por muito cheio que esteja (e Deus sabe como estava naquela tarde!), pertenço àquela espécie de indivíduos que arranja sempre um espacinho para uma boa sobremesa - é um outro compartimento, não sei se percebem. No caso, a nossa perfumada hortelã (Mentha aquática), rainha das mentas, espécie aromática por excelência, é também uma planta com inúmeras aplicações na medicina tradicional, com largo espectro na cura de infindáveis maleitas. Seu imenso sucesso como erva aromática deriva de ser ao mesmo tempo refrescante e quente, com uma fragrância doce. Não espanto por isso que seja utilizada desde as infusões às sopas, da carne aos vegetais e terminando nos doces. No caso, foi o condimento perfeito a uns belos marmelos no forno com hortelã e nozes, que constituiu o arremate do acontecimento pantagruélico que recordarei por muitos anos.
*Texto originalmente publicado na edição 5 da Revista ADEGA e republicado após atualização