Vá de branco!

Muitas vezes preteridos pelos consumidores, os vinhos brancos brasileiros têm qualidade e diversidade

por Sílvia Mascella Rosa

Foto: Divulgação

Enquanto este texto estava sendo escrito, as vinícolas Luiz Argenta (em Flores da Cunha, Serra Gaúcha) e a Campos de Cima (em Itaqui, na Campanha Gaúcha) colhiam as primeiras uvas brancas da safra 2012, como aparece na foto da página ao lado.


Era o início (não apenas para essas duas, mas para tantas outras vinícolas) do que já se pode chamar de uma das melhores safras de uvas brancas do século para o Rio Grande do Sul. A combinação de um longo e intenso inverno, com um verão seco (em alguns lugares seco até demais), resultou em uvas de excelente qualidade: "Estamos vivenciando uma safra jamais vista antes, no que se refere à qualidade dos vinhos brancos e bases para espumantes. Passamos por meses de novembro, dezembro e janeiro bastante secos e com temperaturas amenas, abaixo do normal. Isso fez com que não houvesse desenvolvimento de fungos na videira, devido à falta de umidade e ausência de temperaturas altas. Mas o mais importante não é só referente às doenças fúngicas, é que conseguimos com esse clima diminuir drasticamente os tratamentos fitossanitários e as uvas chegam sadias como nunca", afirma o enólogo Edegar Scotergagna, direto das mesas de seleção da Luiz Argenta.


Contra a maré
Em um país de proporções continentais e clima tropical, com uma costa que tem mais de 8 mil quilômetros e uma culinária típica que, em muitos casos, privilegia os pescados, era de se esperar que o consumo de vinhos brancos fosse, no mínimo, igual ao dos tintos. A realidade, no entanto, é bem diferente.

Tintos e espumantes formam a grande massa das vendas e os brancos vinham, até 2010, numa curva descendente assustadora. Em 2005, tinham sido comercializados 8,45 milhões de litros de vinhos brancos brasileiros e, em 2010, esse número caiu para 4,5 milhões de litros. Felizmente, em 2011 houve um pequeno aumento, de 3,77%, elevando para 4,68 milhões de litros. Esses números, fornecidos pelo IBRAVIN, fazem referência à comercialização de vinhos finos brancos feitos no Rio Grande do Sul e mostram que atualmente apenas um sétimo do comércio total de vinhos finos brasileiros é de brancos.


"Estamos vivenciando uma safra jamais vista antes, no que se refere à qualidade dos vinhos brancos e bases para espumantes", Edegar Scotergagna, enólogo da Luiz Argenta

Mas esses indicadores já foram muito diferentes. Embora as estatísticas não sejam oficiais, muitos enólogos lembram-se de um passado recente bem distinto, como conta Alem Guerra, diretor-geral da Cooperativa Aurora: "Nos anos de 1980 e começo dos anos 1990, tivemos uma explosão de comercialização de vinhos brancos e chegamos a vender, em apenas um ano, um milhão de caixas de 12 garrafas de brancos (9 milhões de litros), isso apenas aqui na Cooperativa Aurora".

Alem Guerra tem uma teoria sobre os ciclos da comercialização de vinhos no Brasil. De acordo com sua observação - de quem está nesse mercado há mais de 30 anos -, os ciclos costumavam ter aproximadamente 15 anos cada um, sendo que entre as décadas de 1960 e 70 eram os vinhos rosés que imperavam no mercado (portugueses e franceses) e os brasileiros se apressaram em correr atrás de uma fatia desse bolo. Já entre os anos 1980 e 90 os vinhos brancos ganharam espaço, por variados fatores, desde o aumento das importações de brancos alemães (e também a continuidade de alguns portugueses e franceses), passando pela aquisição de novas tecnologias em nossas vinícolas que permitiam que os vinhos brancos tivessem mais frescor e vivacidade, a ponto de competir com os importados e inundar o mercado de rótulos. Para se ter uma ideia, nessa época apenas a Aurora e a Salton tinham, juntas, quase uma dúzia de rótulos brancos no mercado.

Os vinhos brancos já responderam por 80% dos vinhos consumidos no país

Ainda segundo Guerra, os anos 1990 trouxeram uma nova mudança, não apenas com a abertura das importações (até 1996 o vinho mais importado pelo Brasil era o branco alemão meio-doce), mas também com as pesquisas realizadas nos Estados Unidos sobre os benefícios adicionais para a saúde e a divulgação do "Paradoxo Francês", que favoreceu o consumo dos tintos. Essa nova virada de mesa atingiu o Brasil numa fase crucial de mudanças, não apenas tecnológicas como também nos vinhedos e na formação de nossos enólogos. "Os brasileiros, que copiavam coisas da moda do exterior, começaram a ter a capacidade de mostrar o que faziam de melhor. Nesse ponto, os espumantes evoluem muito rápido e os tintos também, embora com mais lentidão", finaliza Guerra, com a linha do tempo quase chegando aos nossos dias.

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Cachos de Trebbiano, antes comum em vinhos varietais, agora é usada para compor blends, dando corpo e acidez

Passado doce
Rinaldo Dal Pizzol, um dos donos da vinícola que leva seu sobrenome, no distrito de Faria Lemos, foi um dos diretores da vinícola Forrestier, uma das marcas mais importantes no Brasil na década de 1980/90. Ele conta que a empresa foi a primeira a ter uma linha de produção inteira em aço inoxidável, com um controle de temperatura que permitia fazer vinhos brancos mais delicados.

No entanto, segundo ele, é preciso voltar ainda mais no tempo para explicar o porquê de um dado que hoje, frente aos números apresentados anteriormente, parece irreal: os vinhos brancos já responderam por 80% dos vinhos consumidos no país! Dal Pizzol explica que a viticultura, principalmente no sul do Brasil, estava quase toda nas mãos dos imigrantes italianos e que era natural que eles trouxessem as uvas que lhes eram mais familiares, como a Riesling Itálico, que chegou por aqui na virada do século XX. E assim foi até a década de 1950, com uma enorme proliferação de uvas brancas finas como a Trebbiano, a Peverella e a Moscato. "Esses vinhos eram simples, quase rústicos, secos e meio- secos, vendidos em garrafões de 2 ou 3 litros e largamente consumidos por todas as famílias. Eram vinhos intensos e amarelos, pouco frutados, vindos de plantas muito produtivas e que resistiam bem às intempéries da região", explica o produtor. Sem esquecer que, por conta de nossa colonização portuguesa e da economia agrária na qual viviam os italianos, tudo o que era doce era valorizado no país, que passou por um longo e rico ciclo de produção e comercialização de cana-de-açúcar.

Alguns anos depois, começaram a chegar as castas francesas, como Chardonnay e Chenin Blanc, e o vinho feito com elas era menos rústico do que o das variedades italianas, embora muitas vezes precisasse de açúcar. Com a natural evolução das técnicas de produção nas décadas seguintes, os brancos foram se transformando, aos poucos, de caldos fáceis e rústicos, com ou sem açúcar, em vinhos mais delicados e frutados, mais adaptados ao paladar que começava a se alastrar internacionalmente pela via dos novos países produtores, como Austrália, Estados Unidos e Chile (segundo Dal Pizzol, que foi implantar uma unidade produtora de espumantes lá, a Argentina levou um pouco mais de tempo para alcançar esse grupo).

O Brasil caminhava sério no sentido dos vinhos brancos secos (até mesmo a casa Chandon tinha, na década de 1980, um branco seco tranquilo em seu portfólio), com tecnologia apropriada, uvas bem adaptadas - nessa época o potencial da Riesling Itálico também já havia sido descoberto para os espumantes - e com um mercado consumidor que recebia bem o produto. Até que os brancos alemães meio-doces chegaram e despertaram o monstro do açúcar que estava adormecido nos brasileiros. Seu sucesso comercial forçou as empresas daqui a fazerem vinhos no mesmo estilo e os secos e varietais de uvas menos aromáticas, como a Chardonnay e a Trebbiano, por exemplo, perderam espaço, e quase sumiram depois com o avanço dos tintos.



Despertando na modernidade
Nos últimos cinco ou seis anos, a indústria vem se mostrando mais madura do que jamais foi e isso se reflete também nos novos vinhos que são lançados e nas pesquisas que, num passado recente, resultaram nas duas primeiras indicações de procedência do país e na primeira D.O. (Denominação de Origem), que está a apenas uma assinatura burocrática de se tornar realidade.

Os vinhos brancos, de 2005 para cá, mudaram mais uma vez e, agora, acompanham não uma moda, mas sim os estilos de cada região do país, de cada terroir e, também, um pouco daquilo que deseja o consumidor. "Não acredito que no futuro tenhamos tendências de consumo tão marcadas como tivemos no passado. Acredito que estamos na fase dos nichos de mercado, o que é positivo para todos os estilos, e por isso há uma retomada natural dos brancos" afirma Alem Guerra.

Há um consenso importante entre os enólogos quando se trata dos vinhos brancos: uma parte significativa do que é a qualidade final deles vem da tecnologia utilizada para fazê-los. "Claro que sem boa uva não há bom vinho, mas, com os brancos, a mão do homem e os cuidados na cantina são essenciais. São uvas mais delicadas, que oxidam rapidamente e exigem um processamento rigoroso e trabalhoso", explica o enólogo Miguel Ângelo Vicente Almeida, responsável pela unidade Seival Estate, do Grupo Miolo, na Campanha Gaúcha. Para conservar o frescor e a acidez necessárias para dar a vivacidade, e o que Miguel Ângelo chama de "melhor cara" dos vinhos brancos, equipamentos e cuidados prolongados são essenciais.

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"Sem boa uva não há bom vinho, mas, com os brancos, a mão do homem e os cuidados na cantina são essenciais", Miguel Ângelo Vicente Almeida, enólogo da Seival Estate

"Se você tiver uma boa uva no vinhedo, em um ano bom, ainda assim vai precisar de uma boa desengaçadeira, uma prensa de alta qualidade e tanques com cintas de controle de temperatura, pois os brancos fermentam entre 15 e 17 graus (caso da Chardonnay, por exemplo) e, se essa temperatura subir, você perde aromas e passa a ter um cozido desagradável no vinho", explica Ademir Brandelli, enólogo e diretor da vinícola Don Laurindo, no Vale dos Vinhedos.

A tecnologia e seu custo, nesse caso, podem ser também um dos motivos de muitas empresas não se dedicarem aos brancos. Fermentando durante 30 dias com controle total de temperatura, os custos de refrigeração são altos, e mesmo depois de pronto esse vinho precisará ser mantido em temperaturas mais baixas do que as que conservam os tintos, resultando em gastos adicionais.

Estilo Brasil
Embora o Rio Grande do Sul seja o terroir-mãe de quase todos os vinhos brasileiros, algumas mudanças definitivas nos vinhos brancos ocorreram por conta das conquistas em outros estados. Os vinhos das uvas Chardonnay e Sauvignon Blanc vindos de Santa Catarina foram um divisor de águas, que mostrou um potencial adormecido: para a Chardonnay, o potencial de guarda e evolução (selado com o Lote I da Villa Francioni, por exemplo) e para a Sauvignon Blanc, uma possibilidade de terroir, pois no Rio Grande do Sul ela raramente atinge o potencial aromático que obtém em Santa Catarina - caso do Sauvignon Blanc da Sanjo, um dos primeiros ícones da região no ano de 2008.


Essa mais do que saudável concorrência fez com que as empresas gaúchas corressem atrás de revitalizar seus vinhos brancos e, nos últimos anos, surgiram Chardonnays com variados estilos, desde frescos e frutados, sem nenhuma influência da madeira (como dois dos indicados para pertencerem à DO Vale dos Vinhedos, das vinícolas Pizzato e Don Laurindo), até aqueles com diferentes tempos de estágio em madeira, que acabaram por se tornar vinhos ícones em suas casas, como o Gran Reserva da Valduga e o Cuvée Giuseppe da Miolo.

As uvas brancas do passado, como Trebbiano, Peverella e a Riesling Itálico, tomaram caminhos diferentes. A Trebbiano ainda é usada para dar corpo e acidez a muitos vinhos, compondo blends, mas raramente vinificada como varietal. A Peverella quase desapareceu, sendo cultivada em pequena escala. Já a Riesling Itálico encontrou novo fôlego não apenas na composição dos espumantes, mas também como varietal, ganhando espaço com seu frescor e sutileza que, quando corretamente vinificado, transforma-o num vinho excelente para o aperitivo.


Hoje é possível encontrar, além de Chardonnay, bons vinhos feitos com Riesling, Sauvignon Blanc, Viognier etc

Juntaram-se a elas, nos últimos anos, a aromática e floral Viognier, vinda de dois terroirs diametralmente opostos: a região alta e fria de Campos de Cima da Serra, no extremo norte gaúcho e a região plana e mais quente da Campanha Gaúcha, no extremo sul. Depois, a Pinot Grigio, cultivada com grande sucesso pela Miolo, que também utiliza outras variedades brancas como a Verdejo e a Chenin Blanc na composição de seus espumantes vindos do Nordeste.

Mas talvez o caso mais interessante de renovação da última década tenha sido o das uvas da enorme família das Moscato, que por aqui são consumidas desde ao natural, passando pelos espumantes meio secos e doces, até os vinhos tranquilos secos e os de sobremesa. A gama de clones e de variedades (Bianco, Giallo, de Hamburgo etc) ampliou a oferta no mercado não apenas dos espumantes, consagrados pelos consumidores, mas mais recentemente de vinhos leves, frescos e frutados, de grande apelo comercial, fáceis de beber e, muitas vezes, de baixo custo.

Assim, um dos mais atraentes aspectos da evolução e transformação desses vinhos brasileiros hoje é sua diversidade. É possível encontrar um leve Riesling para o aperitivo, um Sauvignon Blanc fresco e herbáceo para a salada e o prato de peixe, um Viognier perfumado para o frango à moda asiática, um Chardonnay encorpado e evoluído para um prato de massa e molho branco e um néctar de sobremesa, das uvas Malvasia e Sémillon, para acompanhar um prato doce. Tudo isso vindo dos terroirs do Brasil.

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