O segredo do comprador de vinho seria um tastevin infalível e que jamais permitiria ser enganado
Arnaldo Grizzo Publicado em 20/11/2024, às 17h00
Uma lenda diz que, no século XIV, um comprador de vinho nunca podia ser enganado. Ele nunca comprava bebida ruim. Seu segredo seria um tastevin infalível.
O objeto em questão ostentava em seu fundo o rosto de um papa – segundo a história, de Avignon, não de Roma, ou seja, um antipapa da época do cisma – e, assim que o vinho era derramado sobre a figura, a face sorria ou chorava, denotando se a bebida era boa ou ruim.
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Enfim, o tastevin (a palavra vem de “prova de vinho”, em francês) ou tambuladeira é o nome de um objeto metálico tipo copo raso que, durante muitos anos, foi usado para avaliar o vinho. Hoje é raramente visto. Diz-se que esse pequeno copo côncavo foi inventado pelos borgonheses e era feito de algum metal brilhante, geralmente prata, para poder refletir a luz. No fundo, há reentrâncias e outras concavidades que maximizam a intensidade da luz ao atravessar a bebida.
Por que tanta importância para luz? O tastevin foi criado para o vendedor e o comprador de vinhos poderem avaliar a natureza da bebida em ambientes de pouca luz. Numa época em que não havia luz elétrica, as adegas eram iluminadas com velas, castiçais, tochas, lampiões etc., nada que gerasse uma fonte de luz razoável sequer para descobrir a cor do vinho. E, convenhamos, muito do vinho se descobre apenas com a análise visual, especialmente se há algo errado.
Sendo assim, os produtores, mesmo na escuridão de suas caves, conseguiam verificar as nuances de cor de seus vinhos, assim como faziam os negociantes em tabernas. E, como na lenda contada no início, era (e ainda hoje é, convenhamos) preciso avaliar bem um vinho antes de comprar e vender. Se hoje é mais difícil encontrar vinhos estragados, isso não era tão incomum há alguns séculos, quando a conservação era precária.
LEIA TAMBÉM: Comprador gasta 190 mil reais em vinhos em aeroporto de DubaiComo o metal usado muitas vezes era precioso (prata) ainda se tornava uma joia, com muitos usando junto a uma corrente no pescoço. Inventários antigos davam conta de tastevins em posse de comerciantes falecidos que os deixavam a seus herdeiros. Como uma joia, ele costumava ser entalhado, seja com brasões, seja com o nome do proprietário. Além disso, foram feitas protuberâncias no copo, multiplicando o efeito da luz.
Diz a lenda que tastevins planos eram usados para avaliar vinhos brancos e os arredondados, para tintos. Fala-se ainda que as pequenas concavidades no fundo ajudariam a avaliar os tintos, ao passo que as reentrâncias na lateral melhorariam a análise dos brancos. Outra lenda aponta que as sete concavidades no fundo e as 12 reentrâncias na lateral (design comum em muitos tastevin borgonheses) significariam que o vinho deve ser bebido nos 12 meses do ano, sete dias por semana.
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Enfim, quando surgiu a luz elétrica, quando os vinhos passaram a ser comercializados não mais em barricas, mas em garrafas de vidro, a tambuladeira foi perdendo utilidade. O advento de taças de vidro e cristal também fez com que o processo de quase extinção se acelerasse. Hoje, o tastevin não tem vez em uma degustação técnica. Por isso, é raramente visto, apenas como peça decorativa ou no pescoço de algum sommelier saudosista. Ou ainda como “medalha” de alguma confraria (veja box).
No entanto, se você possui um tastevin e quiser derramar algumas gotas para avaliar a cor, vá em frente, os reflexos serão distintos dos que você está acostumado a ver em uma taça de vidro em um fundo branco.
Diversas confrarias usam o tastevin como um símbolo, mas há até mesmo confrarias que levam o nome do clássico objeto, como a Confrérie des Chevaliers du Tastevin, na Borgonha. Ela foi criada em 1934 por Georges Faiveley e Camille Rodier, entre outros amigos, com o intuito de resgatar irmandades báquicas medievais e promover o vinho da borgonhês, em crise na época. Pouco depois, eclodiu a II Guerra Mundial e a confraria “adormeceu”, voltando logo após e tendo como sede o Château de Clos de Vougeot.
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Hoje a confraria tem até um certificado próprio de “garantia” dos vinhos da Borgonha, o Tastevinage, que consiste em um rigoroso teste de rótulos de toda a região, com o objetivo de selecionar aqueles que atendam ao padrão de suas denominações e safras. Os escolhidos recebem um selo indicativo da Confrérie des Chevaliers du Tastevin.