A safra que mudou Bordeaux

1982 foi um ano espetacular em Bordeaux. Mas como ele se tornou um marco em sua história?

por Arnaldo Grizzo

A safra de 1982 foi excepcional tanto em quantidade (houve um rendimento muito elevado, cerca de 62 hectolitros por hectare) quanto em qualidade, e portanto permanece como um ano de referência. Os vinhos ainda hoje são potentes e ricos, com taninos aveludados e untuosos, com muita persistência e também grande frescor devido à vindima precoce que permitiu conservar a acidez necessária para o equilíbrio. A colheita foi feita sob um calor canicular e isso fez com que fossem desenvolvidos meios engenhosos para manter os mostos em temperatura aceitável durante a fermentação. Os equipamentos técnicos ainda eram muito rudimentares naquela época.

A importância de 1982 para Bordeaux, primeiro, foi que essa safra veio depois de uma longa série de anos medíocres. Depois, isso fez com que os proprietários ganhassem um pouco de dinheiro, o que permitiu uma modernização técnica. E, por fim, teve o surgimento de Robert Parker, que colocou Bordeaux em cena e fez com que os produtores entendessem que o tempo de "deixar para lá" havia se acabado.

Os parágrafos acima, que refletem a opinião de Patrick Moulin, do Château La Lagune, resumem o que significou a safra 1982 para os produtores bordaleses em geral. Para o diretor de La Lagune - que recebeu 92 pontos naquela vindima - e tantos outros, aquele ano causou relevantes transformações nos Châteaux e na estrutura de negócio do vinho de Bordeaux, criando um marco na história da região, além, obviamente, de ter sido uma safra histórica.

Robert Parker

Parker acreditou que 1982 era excelente

O fator Parker
Não dá para negar que um dos principais fatores que levaram a safra de 1982 a ser reconhecida mundialmente foi o crítico, até então pouco conhecido, Robert Parker. "Prefiro pensar que a particularidade dessa safra é que Parker foi o primeiro e um dos raros, em oposição a outros críticos, a detectar as qualidades extraordinárias da vindima ao prová-la en primeur", acredita Juliette Bécot, herdeira do Château Beau-Séjour-Bécot, um Premier Grand Cru B de Saint-Émilion que recebeu modestos 72 pontos naquela safra.

"Naquela época, o dólar estava muito forte. Todos queriam gastar. E queriam saber o que comprar. Foi assim que aconteceu", afirma Christopher Cannan

O jovem advogado apaixonado por vinho havia iniciado uma newsletter (que nasceu com o nome The Washington-Baltimore Wine Advocate) em agosto de 1978 e estava começando a ganhar algum espaço entre os enófilos de seu país por ter criado um sistema de avaliação de 100 pontos e por descrever os vinhos - apontando seus atributos de cor, aroma e sabor - de forma direta, sem floreios ou metáforas rebuscadas como era o costume na época.

Mais do que isso, Parker se diferenciava por, em uma década de safras ruins em Bordeaux, não temer esculhambar vinhos famosos que, segundo ele, eram medíocres e estavam com preço inflacionado. Em sua primeira newsletter, por exemplo, ele avaliou o Château Margaux da safra 1973 com 55 pontos, "um vinho pobremente feito e que deve ser evitado".

Até 1983, contudo, Parker era apenas mais um crítico no segundo escalão do gigantesco e ainda adormecido mercado dos Estados Unidos. Na época, o grande nome da crítica americana era Robert Finigan, que tinha uma newsletter de ampla penetração. Porém, no dia 30 de abril de 1983 - apenas nove dias depois de desembarcar de uma viagem por Bordeaux para a prova en primeur de inúmeros Châteaux -, Parker lançou uma newsletter com sua avaliação da safra de 1982. Era a sua consagração definitiva. Enquanto Finigan e Terry Robards, outro conhecido crítico da época, desdenharam do potencial dos vinhos daquele ano, Parker sentenciou: "Prevejo que 1982 vai entrar para os anais da história do vinho de Bordeaux".

OS FRANCESES JÁ SABIAM
Sim, Robert Parker foi quem deu notoriedade à safra de 1982 no mercado norte-americano. Enquanto seus concorrentes não admitiam que o ano havia sido excepcional e os vinhos eram ótimos, ele não foi nada modesto ou cauteloso na hora de descrever e dar notas aos bordaleses. Contudo, Parker não estava 100% sozinho em sua opinião sobre a vindima. O crítico francês Michel Bettane, na época também pouco conhecido, escreveu que 1982 era a maior safra em Bordeaux desde 1929. Mais do que isso, Émily Peynaud, um dos pais da enologia moderna - que era consultor de cerca de 40 Châteaux -, acreditava que aquele ano podia ser comparado com os lendários 1961, 1959, 1949 e 1947. Parker tinha grande admiração pelo enólogo e certamente levou sua opinião em conta.

A vontade do mercado

Christopher Cannan

"Todos queriam gastar", diz Cannan

"Não há erro com esses 1982, eles estão destinados a ser os maiores vinhos já produzidos nesse século", escreveu contundentemente na newsletter. E sua opinião se provou certa. Ou não? Há quem conteste a grandeza daquela safra, mas a verdade é que uma conjuntura de fatores fez com que Parker e a safra de 1982 de Bordeaux fossem eternizadas.

Um dos pontos foi a "vontade" do mercado norte-americano. "Naquela época, o dólar estava extremamente forte. Todos queriam gastar. E queriam saber o que comprar. Foi assim que aconteceu", garante Christopher Cannan, diretor da Europvin, importante négociant de vinhos de Bordeaux. Quando a campanha en primeur foi lançada, em abril de 1983, cada dólar valia cerca de sete francos. Nos anos seguintes, a conversão chegou a 10 francos.

Os consumidores "querendo comprar" se apegaram à opinião de Parker. Quase que do dia para noite, o mercado norte-americano tornou-se o de maior importância para Bordeaux quase que sem concorrentes até os dias atuais, quando os chineses entraram no jogo. Em pouco tempo, houve uma enxurrada de pedidos, e vinhos feitos em pouca quantidade, como Pétrus, por exemplo, desapareceram depois que Parker garantiu que era o vinho "mais perfeito e simétrico" que ele já havia provado.

"Houve uma oportunidade de internacionalização muito grande para os vinhos de Bordeaux com a entrada dos Estados Unidos em cena", garante Jean-Jacques Bonnie, do Château Malartic-Lagravière, de Graves, que na época sequer foi provado por Parker. "Em 1982, o que houve foi uma tomada de consciência dos vinhos finos bordaleses por parte dos norte-americanos, graças a Robert Parker. Essa foi a grande mudança ocorrida naquela safra", atesta Yann Schÿler, proprietário do Châteaux Kirwan e também herdeiro de uma família poderosa de négociants.


Um novo jogo, especulação

"Os americanos estavam mais ativos do que qualquer outro mercado e estabeleceram um precedente para o mercado de futuros. Foi a venda mais forte da história, os preços foram às alturas. Mil novecentos e oitenta e dois levou um grupo completo de novos compradores e especuladores para o mercado", apontou o négociant Dominique Renard para Elin McCoy, autora do livro "The Emperor of Wine - the rise of Robert Parker and the reign of american taste".

Segundo a autora, Jay Miller - amigo de Parker e que fazia parte de sua equipe de degustadores até o ano passado - chegou a pedir empréstimo de US$ 10 mil no banco para comprar vinhos da safra 1982. Outros tantos seguiram seu exemplo e o fator especulativo adentrou definitivamente o negócio do vinho no mundo. Tanto que, entre 1983 e 2002, 20 anos depois, estima-se que os vinhos da safra 1982 tenham subido mais de 2.000% em valor, superando com muita folga os 770% que a Dow Jones acumulou no mesmo período.

Bordeaux

Em 1982, as pessoas começaram a pensar em especulação no mundo do vinho

"Houve muitos anos em que a especulação esteve fora de questão. As safras de 1972, 73 e 74 foram um desastre. Em 1975, foi boa, mas ninguém tinha dinheiro, então alguns vinhos foram mal feitos. Já 1976 foi boa, 1977, um desastre, 1978, ok, 1979 e 80 médias, 1981, ok. Em 1982, as pessoas começaram a pensar em especulação", afirma Cannan. Na época, o mercado de futuros de vinho ainda não era algo plenamente desenvolvido. Com a supervalorização das garrafas daquela safra, essa especulação passou a ter um sistema organizado (implementado na década de 1990) que hoje conta até com uma "bolsa de valores" (Liv-ex).

Para entender como o mercado funciona, basta ver a tabela com o comparativo dos preços de alguns vinhos no lançamento da safra 1982 com os seus valores atuais em leilões e lojas especializadas. Para se ter uma ideia, o valor de lançamento de uma única garrafa de alguns dos grandes vinhos de Bordeaux atualmente ultrapassa o que era pedido por uma caixa com 12 na campanha en primeur de 1983.

"Aqueles que compraram os vinhos de 1982 como investimento fizeram a compra do século. Para a atual geração de entusiastas do vinho, 1982 é o que 1945, 1947, 1949, 1959 e 1961 representaram para a geração anterior", escreveu Parker em sua sexta versão do Wine Buyer's Guide, editado em 2002.

Os primeiros 100 pontos

Petrus 1982

Petrus 1982 recebeu 100 pontos

A safra 1982 também marcou os primeiros vinhos "perfeitos" de Parker, que atingiram 100 pontos. Pétrus e Léoville-Las-Cases foram dois que receberam a mais alta pontuação na época, mas que recentemente o crítico tirou pontos devido à evolução (Pétrus teve 93 e Léoville-Las-Cases, 95+, ambos redegustados em 2009). Outros como Lafleur, Latour, Le Pin, Mouton-Rothschild, La Mission Haut-Brion e Pichon-Longueville Comtesse de Lalande, com 30 anos de idade, ostentam a marca da perfeição, segundo o crítico.

"Os vinhos eram deliciosos, adoráveis, suaves, já maduros, fáceis de beber", lembra Christopher Cannan, que ajudou Parker a provar grande parte daquela safra, organizando degustações no escritório da Europvin (veja o artigo que ele escreveu sobre o crítico norte-americano na página 60). "Nunca provei tantos vinhos super-ricos, opulentos e dramáticos que obviamente foram produzidos com frutas muito maduras, compotadas", anotou Parker na época.


Como foi a safra?

"Um inverno suave resultou em um abrolhamento relativamente precoce entre 25 de março e 1o de abril. Um abril particularmente ensolarado e seco permitiu às vinhas crescer rapidamente. Granizo no início de março afetou alguns vinhedos. Maio e junho foram quentes e tempestuosos, encorajando novo rápido crescimento e um bom período de floração nos primeiros dias de junho. Julho e agosto foram bem quentes com períodos de chuva bem dispersos. Setembro foi quente e seco novamente, e a maturação das uvas foi prolongada, o que lhes deu níveis extraordinários de riqueza de açúcar (acima de 13oBx para a Merlot, 12 a 12,5oBx para os Cabernets). A colheita ocorreu de 16 a 30 de setembro, interrompida por algumas chuvas (sem consequência) depois do dia 21", afirma o relato da vindima no Château Latour, um dos 100 pontos de Parker em 1982.

A verdade é que o clima foi ideal em dois pontos cruciais do ano. O primeiro durante a floração. Temperaturas quentes nos primeiros dias de junho fizeram com que a floração ocorresse cedo (e com sucesso) - o relatório da safra 1982 no Pichon-Longueville Comtesse de Lalande, outro vinho 100 pontos, comprova: "Primavera: temperada, com um crescimento rápido da vegetação. Temperaturas elevadas e insolação excelente. Floração: 5 de junho. Muito rápida e com boas condições". Ou seja, se tudo corresse bem, a colheita seria mais cedo, evitando as possíveis chuvas de outono.

Colheita Bordeaux

Safra foi grande e de boa qualidade em 1982

Depois, o tempo seco e quente do verão criou uma maturação perfeita para os grãos. Agosto foi quente e nublado, o que ajudou a resfriar um pouco as vinhas (conforme as notas do Pichon Lalande - Verão: evolução espetacular dos grãos. Julho muito quente [temperaturas superiores a 25oC durante 23 dias]. Agosto mais frio, com chuvas irregulares). Em setembro, houve muito calor, com diversos dias de temperatura acima de 37oC, o que escureceu as cascas e os níveis de açúcar atingiram patamares recorde.

"Em 1982, o que houve foi uma tomada de consciência dos vinhos finos bordaleses por parte dos norte- americanos, graças a Parker"

O clima foi tão favorável que Mouton-Rothschild contratou 600 pessoas para sua colheita com medo de que as chuvas de fim da estação pudessem diluir as uvas e, dessa forma, fez o trabalho - que geralmente dura três semanas - em apenas uma. Quando as chuvas pesadas de outono caíram no dia 5 de outubro, a maioria das propriedades já tinha colhido tudo e agora se preocupava com o calor nos tanques de fermentação. Isso fez com que alguns produtores chegassem a colocar gelo sobre as cubas na tentativa de diminuir a temperatura (os tais "meios engenhosos" a que Patrick Moulin se refere no primeiro parágrafo dessa reportagem).

Mais do que isso, com um clima tão bom e uma quantidade tamanha de uvas sãs, houve quem sequer tivesse cubas suficientes para fermentar o vinho e precisasse encurtar a maceração, colocar o vinho em barrica rapidamente para dar espaço aos novos grãos que não paravam de chegar.


Uma safra grande

Todos sabem que as grandes safras geralmente são as que possuem clima ótimo e cujo rendimento costuma ser pequeno. Rendimento pequeno tende a significar melhor nível de açúcares, resultando em vinhos mais concentrados. Em 1982, não foi bem isso o que aconteceu. "Essa safra fantástica teve volumes enormes. Ela foi 50% maior que nos anos convencionais. Tanto que o INAO (Institut national de l'origine et de la qualité) deu autorização para todos os Châteaux produzirem mais, pois foi uma safra muito boa. Isso nunca mais aconteceu desde então. Foram rendimentos de 70 hectolitros por hectare, quando em média são 40/50", afirma Yann Schÿler.

Yann Schyler

Yann Schÿler

"Os Châteaux que conseguiram se dar melhor em 1982 foram os que melhor se adaptaram ao rendimento elevado. Era preciso uma cuba muito grande para evitar ter de colocar vinho nas barricas antes do fim da colheita e também para controlar a temperatura de fermentação utilizando as últimas tecnologias de resfriamento. Depois dessa safra, todos os viticultores compreenderam a necessidade de modernizar as cubas", conta Philippe Delfaut, diretor geral e enólogo do Château Kirwan.

Para Christopher Cannan, a safra 1982 foi tão grande que "você ainda consegue achar garrafas" no mercado. Contudo, o próprio Parker, conhecedor da ganância humana, sempre alertou os consumidores: "Cuidado. Muitos 1982 falsificados têm aparecido no mercado, particularmente Pétrus, Lafleur, Le Pin, Cheval Blanc e os Premier Grand Cru Classé".

UMA SAFRA DOS SONHOS
O ano de 1982 certamente deixou saudade nos proprietários dos Châteaux. Quando perguntados como foi o clima da safra, eles logo abusam de adjetivos. Nas anotações de Jean Sanders, proprietário do Château Haut-Bailly de 1955 a 1998 - que recebeu fracos 77 pontos de Parker em 1982 - está escrito: "Primavera precoce e luminosa, vegetação e floração precoces, calor no verão: tudo anunciava uma grande abundância e qualidade excepcional. A natureza, em alguns casos, pode ser generosa demais... A reputação da safra já estava estabelecida bem antes do início da colheita. Os vinhos apresentam, em geral, um charme incomparável e já estão sedutores, com um futuro certo".

Jean Merlaut, proprietário do Château Gruaud Larose, um dos que chegou próximo da perfeição em 1982, com 98 pontos, afirmou: "Não tive a chance de vinificar a safra 1982, mas ser viticultor dela me marcou, pois desde então Bordeaux nunca conheceu vindimas sem uma gota de chuva". E continua: "Houve uma floração perfeita, uma fase do pintor rápida e regular, um verdadeiro sonho. A maturação foi plena e regular".

Philippe Delfaut, enólogo do Château Kirwan retoma: "Foi uma safra muito precoce, depois de um verão quente e seco, com algumas chuvas que fizeram mais bem do que mal. Foi a primeira grande safra, depois de 1961, a atingir o mesmo nível que as fabulosas 1945, 47 e 49. Da mesma forma que foi a primeira grande safra a ter uma produção excessiva e de muito boa qualidade".

6 VINHOS PERFEITOS DE 1982


"O que mais prezo em minha adega são os remanescentes Bordeaux 1982, que comprei como investimento, pois, obviamente, aquela foi a safra que fez a minha reputação", Parker afirmou em entrevista para um site lituano em fevereiro de 2011. Ele costuma "revisar" suas anotações sobre vinhos constantemente e 1982 está entre suas safras mais revisitadas. Atualmente, seis vinhos daquela safra ostentam os 100 pontos. Veja o que ele escreveu sobre esses rótulos em 2009:

LAFLEUR 1982
Mesmo não sendo qualitativamente melhor do que Mouton, Latour e La Mission, está acima dos padrões em termos de prazer intelectual e hedonista. Tenho apenas algumas garrafas na minha adega e ele ainda está jovem. Intensidade extraordinária e pureza do licor de kirsch e alcaçuz, notável opulência, além da habilidade de parecer fresco com precisão laser são todas as coisas que precisam ser provadas para acreditarmos. Apresenta um pequeno atijolado nas bordas, mas está acima dos níveis de concentração, assim como uma textura viscosa e fruta e pureza irreais. O mais próximo dos lendários 1947 já produzidos nos últimos 30 anos.

LATOUR 1982
Sempre um pouco atípico, o Latour 82 tem sido o mais opulento, extravagante e precoce dos Médoc do norte. Não mudou muito durante os últimos 10-15 anos, revelando taninos doces, assim como extraordinariamente decadentes, ainda com níveis notáveis de fruta, glicerina e corpo. Um vinho maravilhoso e, em diversas ocasiões, pensei que fosse um Pomerol, devido à exuberância e suculência das frutas. Essa safra sempre esteve grandiosa, mesmo na juventude, e revelou uma precocidade que não se associa a esse Château. A concentração continua notável e o vinho é um encorpado, exuberante, rico e clássico Pauillac em seus perfis aromáticos e de sabor. Vai durar tanto quanto o Mouton 1982, mas tem sido mais acessível.

LE PIN 1982
Provavelmente não é um vinho perfeito para os classicistas. Esta exuberante, exótica, generosamente rica, concentrada e de pouca acidez bomba de fruta exibe uma notável complexidade aromática (café torrado, ervas, caramelo, chocolate, uma imensidade de ameixa doce, figo e amoras). É muito encorpado e incrivelmente baixo em acidez, mas ainda está intacto, e a cor densa está apenas começando a mostrar pontos mais claros.

Mouton 1982MOUTON-ROTHSCHILD 1982
Permanece como uma das lendas de Bordeaux. Deixou para trás o estilo jovem que exibiu nos primeiros 25 anos e, durante os últimos 4/5 anos, desenvolveu nuances secundárias como cedro e especiarias. O creme de cassis, por baixo da nota floral, do corpo, da pureza extraordinária, da textura multifacetada e do final que dura mais de um minuto está nesse 1982. O vinho ainda está incrivelmente jovem, vibrante e puro.

LA MISSION HAUT-BRION 1982 (resenha de 2012)
Um vinho monumental, este La Mission Haut-Brion histórico foi a última safra feita pela família Woltner antes de ela vender a propriedade para os Dilon vizinhos que já possuíam o Haut-Brion. Tive a sorte de prová-lo em barrica (que era uma bomba de fruta de Graves) e vê-lo desenvolver nuances na garrafa. Aos 30 anos, permanece majestoso, multidimensional e profundo. A safra 1982 ainda está na adolescência e não atingiu o ápice. Nunca achei que ela fosse maturar tão devagar. O vinho ainda possui densa cor púrpura. O aroma dominado por fruta revela muito cassis, mirtilo, terra queimada, trufas negras, incenso, grafite e notas de charuto. Ainda com concentração notável, corpo enorme, tanino doce sedoso e acidez imperceptível, 1982 permanece fresco, delineado e superatraente.

PICHON-LONGUEVILLE COMTESSE DE LALANDE 1982
Um dos vinhos monumentais do século passado. Desde o engarrafamento, ele flertou com a perfeição e foi um velocista desde a largada, o que fez com que surgissem questões sobre quando começaria a declinar. Contudo, aos 27 anos, ele mantém seu polimento, riqueza e fruta exuberante de cassis, chocolate, notas de geleia de amora e muitos sabores terrosos e do bosque. É um Pichon Lalande encorpado e rico, desprovido de acidez e tanino, mas incrivelmente bem equilibrado e puro.

Uma revolução

A safra de 1982 serviu para os Châteaux se recuperarem da fraca década de 1970 financeiramente e também serviu para que eles entendessem a necessidade de modernizar suas estruturas. Diante de uma colheita tão grande, houve quem simplesmente não conseguisse lidar com a situação e produzisse vinhos pobres, mesmo com uvas tão boas.

"Em Bordeaux, você tem anos bons e ruins regularmente. Atualmente, com a tecnologia, é difícil ter vinhos muito ruins. Mas 30 anos atrás eles não tinham o mesmo equipamento de hoje", observa Cannan. Assim, os produtores (já endinheirados) aprenderam na marra e logo começou um movimento em torno da modernização dos Châteaux, pois eles não mais queriam ser pegos desprevenidos caso uma nova safra grandiosa acontecesse.

Nesse sentido, o ano de 1982 também acabou por transformar o estilo de Bordeaux de certa maneira. "Foi uma safra especial. De alguma forma, ela foi pouco usual. Foi uma safra que Parker gostou e os americanos também. Muito potente e rica, pois foi quente", lembra Cannan, que completa: "Além de Parker, também enólogos como Michel Rolland vieram à tona depois disso e tiveram um impacto. Rolland fazia vinhos muito similares aos que Parker gostava. Usava madeira nova, colheita mais tardia, uvas mais maduras, que davam vinhos ricos. Antes de 1982, Bordeaux às vezes tinha problemas em alguns Châteaux que tinham muito volume e colhiam muito cedo, resultando em sabores verdeais. Isso acabou em 1982, ninguém queria mais esse tipo de vinho no top level. Com certeza, isso foi uma grande mudança".

Mouton cave

Para muitos, estilo frutado e opulento da safra 1982 criou o parâmetro para os vinhos desde então

"Mil novecentos e oitenta e dois colocou Bordeaux na Era Moderna", resume o crítico de vinhos Steven Spurrier, organizador de outro marco na história do vinho, o Julgamento de Paris. "Agora Bordeaux tem um fantástico manejo de vinhedos e os enólogos estão esperando por mais tempo para que as uvas estejam na maturação completa. Então, não há taninos verdes quando as frutas são colhidas. Os vinhos vão para os barris para maturar e os taninos estão lá, mas a fruta sempre vai dominar. Historicamente, você tinha que esperar 20 anos para um Bordeaux trabalhar seus taninos. Hoje, pode abrir a garrafa agora".

"Antes de 1982, ninguém falava sobre fruta nos vinhos. Porém, desde então, todos nós tentamos colher apenas quando as uvas estão devidamente maduras. Antes disso, você colhia as primeiras vinhas quando elas ainda estavam verdes e as últimas quando ela estavam sobremaduras", atesta Michel Tesseron, do Château Lafon-Rochet, de Saint-Éstèphe, que recebeu 86 pontos naquela safra.

"Tive o prazer de provar o vinho Gruaud Larose en primeur e ele tinha uma riqueza incrível, era aveludado, untuoso, gordo, repleto de fruta e frescor. Tinha vontade de beber tudo imediatamente. Diria que a natureza nos mostrou o caminho a seguir", disse Jean Merlaut, proprietário do Château Gruaud Larose. Qual é esse caminho? "Os vinhos agora são feitos com frutas mais maduras, com seleção mais restrita nos vinhedos, vinificados com muito mais cuidado e limpeza. A qualidade da fruta hoje é muito mais pura, mais expressiva e, em muitos casos, mais concentrada. Também vimos os níveis de álcool subir um, dois ou três graus, pois as uvas menos maduras foram descartadas. Quando o processo de seleção permite apenas frutas maduras nos tanques, de frutas mais maduras temos taninos mais suaves e os vinhos podem ser apreciados mais jovens", apontou Parker.

Parkerização
Muitos atestam que o estilo de vinhos da safra de 1982 em Bordeaux criou um padrão a ser seguido pelos produtores em anos futuros. Vinhos ricos, concentrados, extremamente frutados, com taninos suaves, que conquistaram o paladar de Parker naquele ano, passariam a tomar conta do mercado. "Acredito que isso [Parkerização] é um grande mito. Sempre advoguei em prol dos vinhos feitos naturalmente, com baixos rendimentos, fruta madura, menos manipulação e mais comprometimento na hora de vinificar e engarrafar. É obrigação do vinhateiro fazer um vinho sem compromisso com a moda, que seja a essência daquele vinhedo. Produtores que fizeram vinhos sujos, diluídos ou indiferentes tiveram que responder não somente às minhas críticas, mas às mudanças do mercado. Se isso é 'Parkerização', então suspeito que sou culpado, mas acredito que meus gostos são muito diversos e que os estilos de vinho que recebem boas avaliações são tão diferentes que ninguém pode dizer que existe um 'gosto de Parker'", escreveu o crítico, em sua defesa, em 2001.

"Parkerização existe, é um fenômeno, não se pode negar. Mas não estou criticando a pessoa. Em todo vinho dito sensacional, você vai ver que ele está certo. A única coisa que critico é quando o vinho tem alta pontuação e o preço fica muito alto, e também o contrário. Ele exagera as tendências. Isso é injusto com muitos produtores. No mundo do vinho, não existe uma só verdade, mas várias", diz Yann Schÿler.

Michel Rolland

Michel Rolland

Para alguns, como Christopher Cannan, por exemplo, a Parkerização não passa da simples mudança de estilo dos vinhos bordaleses: "Houve chegada de novos enólogos, que faziam vinhos que as pessoas gostavam, com muita madeira nova e uvas maduras. Isso foi uma mudança de estilo". Alguns enólogos como Michel Rolland, por exemplo, captaram isso rapidamente e passaram a produzir rótulos que logo caíram no gosto de Parker. Seria apenas coincidência ou algo pensado?

Em entrevista à ADEGA em 2010, Michel Rolland deu uma pista: "Minha vida não tem sido fazer vinho para mim, mas para o mercado. Não é muito poético, desculpe, mas é verdade. Também não gostaria de dizer que fazemos vinhos pensando nos críticos, mas é parte da busca por sucesso. Parker e eu enfrentamos críticas, mas deve ser como em qualquer negócio".

O tema da Parkerização foi tão debatido que chegou-se a cogitar que os produtores deixavam barricas específicas para o crítico norte-americano avaliar, com um vinho que melhor se adaptava ao seu gosto, enquanto outras continham o vinho que realmente iria ao mercado. "Seria um escândalo se algum proprietário fosse pego fazendo isso e arruinaria toda a sua fama, pois eu provo novamente o vinho engarrafado. Esse mito da 'barrica de Parker' vem de concorrentes que têm ciúme do meu sucesso", encerrou Parker em entrevista para a revista Paris Match em 2001.

" Minha vida não tem sido fazer vinho para mim, mas para o mercado. Não é muito poético, desculpe, mas é verdade", diz Michel Rolland

Uma safra verdadeiramente histórica?

Diante de tantas consequências, 1982 se tornou um marco, mas seria essa safra realmente estupenda, como Parker aclamou? A maioria dos críticos acredita que sim, mas, alguns especialistas ficam com o pé atrás, especialmente quando se deparam com a evolução de alguns bordaleses.

"Você nunca tem uma decepção com 1982. Nunca", afirma categoricamente Yann Schÿler, mesmo sabendo que o ano seguinte foi muito melhor para Margaux, onde está o Château Kirwan, de sua propriedade. "Acho que você pode guardar uma garrafa de 1982 por outros 10, 15 anos. Depois, pode pensar. Não vejo nenhum cansaço em 1982", completa.

Philippe Delfaut, enólogo do Kirwan, segue o mesmo tipo de pensamento: "Em nenhum momento os 1982 serão austeros. Desde o começo, eles mostraram sua exuberância e riqueza. Hoje, muitos começam a declinar, mas os grandes vinhos estão sempre em seu ápice".

Já Christopher Cannan vai em outra linha e diz: "Muitos dos vinhos agora já passaram do ponto. Não foi uma safra tão grandiosa como 1961, 45 ou 29, que foram as grandes safras do século XX. Mil novecentos e oitenta e dois foi uma boa safra, com vinhos bons para beber, mas sem tanta guarda quanto 1961 ou 49". O négociant pondera: "Alguns vinhos ainda estão ótimos. Como o Mouton. Mas alguns estão começando cair. Não foi uma safra tão forte, de grandes vinhos."

Para Steven Spurrier, que afirma não ter mais nenhuma garrafa de 1982 em sua adega, essa foi uma safra "merecedora de sua reputação", porém: "Por causa de sua grande produção, comparando intrinsecamente com as grandes safras de 1999, e talvez 95 e 96, ela não é tão boa. Mas, o clima foi perfeito. Mesmo tendo feito muito vinho, os Châteaux não exageraram e o vinho é perfeito. Você prova o Pichon Lalande e Léoville-Las-Cases com 30 anos e eles são sensacionais. Foi a safra que fez Robert Parker... Ou Parker fez a safra de 1982..."

Depois de 30 anos, os vinhos mais simples de Bordeaux certamente estão declinando, mas os grandes estão ótimos e podem evoluir ainda mais, segundo Parker

O próprio Parker chegou a escrever em 2002, no seu Wine Buyer's Guide: "A maioria dos Crus Bourgeois deveria ter sido bebida no final dos anos 1990. Vinhos menores de Saint-Émilion, Pomerol, Graves e Margaux estão completamente maduros". No entanto, ele continua: "Os grandes vinhos estão evoluindo em ritmo glacial e têm, pelo menos, mais 20 anos pela frente de acordo com degustações feitas em 2000 e 2001". E na mesma publicação coloca sem modéstia: "Hoje, ninguém pode negar a grandeza da safra de 1982". Um ano antes, já havia dito em uma entrevista: "Há aqueles que podem discutir que Mozart é superestimado e que Picasso não sabia desenhar, e há aqueles que discutem que Bordeaux 1982 pode não ter sido um grande ano. Contudo, essas opiniões são de uma ínfima minoria".

Parker é da opinião de que 1982 está no mesmo patamar das consagradíssimas safras de 1961, 49, 45 e 29. Muitos produtores compartilham dessa visão e os mais entusiasmados atualmente encontraram uma "correspondência" ainda mais forte: a vindima de 2009. "O ano de 1982 foi tão excepcional quanto as pessoas dizem, uma das mais grandiosas safras de Bordeaux juntamente com 2009", afirma Hubert de Boüard de Laforest, proprietário do Château Angelus, que teve uma nota bem fraca em 1982, com apenas 77 pontos, mas 99 há três anos. O próprio Parker afirmou, tão logo provou os vinhos en primeur, que a quente e carregada vindima de 2009 podia ser "a melhor dos meus 32 anos de carreira". De partida, atestou que 18 vinhos bordaleses eram perfeitos, com 100 pontos, um recorde em sua publicação. Mas será que 2009 se tornará um marco na história de Bordeaux? O tempo dirá.

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