Carta aberta aos ingleses

"Odeio quem me aponta os meus vícios!", Geoffrey Chaucer

por Fábio Farah

Foto-montagem
O pai da literatura inglesa, Geoffrey Chaucer, mencionou a cerveja real ale em sua obra-prima

Após publicar minha crônica Pardonnez-moi, Napoleón!!! (edição nº 12 de ADEGA), enfrento uma cruzada cultural e política. Tudo começou com um e-mail do badalado chef inglês Jamie Oliver: "Acho a comida inglesa fantástica. A França ainda é uma das nações gastronômicas mais incríveis do mundo, mas eles parecem estar presos a uma fórmula". Na semana seguinte, um amigo aristocrata ligou-me e disse que minhas opiniões indignaram seus pares na Câmara dos Lordes. Eles até ameaçaram me declarar persona non grata na ilha. De passagem por lá, outro amigo, funcionário do Itamaraty, conseguiu desatar o nó. "Eles dizem que possuem uma prova contra você", alertou-me por telefone. "Querem que você pare de criticar a Inglaterra". Uma revista sensacionalista britânica, que adora publicar fotos comprometedoras da realeza, procurou-me para uma entrevista exclusiva. Segundo eles próprios, tinham um "furo" nas mãos. "Que furo?", perguntei. "Você se lembra de sua visita a Canterbury?", indagou o jornalista em tom intimidador. Como sou gato escaldado, irei publicar em primeira mão a "prova" dos ingleses contra mim.

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Há seis anos, após três semanas em Londres, embarquei para Canterbury. No limite antigo da cidade, havia um castelo de pedra. Em ruínas. As paredes externas ainda cumpriam a missão de proteger o interior. Eram guardiãs de um passado glorioso. Imaginei Geoffrey Chaucer passeando por ali e encontrando pessoas que povoariam o Canterbury Tales. Assustei-me com um homem esbarrando em mim. Sem pedir desculpas, ele prosseguiu apressado e mancando com duas galináceas presas à mão. "Não seria The Cook prestes a preparar a sua especialidade: 'Frango Cozido com Medula'?", ponderei. Não estava disposto a sentar-me com ele e ouvir por horas as nuances de sabor da cerveja londrina, mesmo que a recompensa fosse uma deliciosa torta. Continuei o passeio, margeando o muro medieval. Próximo a um belo portal, um homem vestido de branco puxando o braço de uma senhora aflita. "Posso livrá-la do inferno. Mas se quiser conhecer os prazeres do paraíso...", insinuou-lhe. Logo o reconheci. Era The Friar, amante das tavernas e sem escrúpulos para abordar as mulheres mais ricas da cidade.

Na catedral, sede da Igreja Anglicana, dirigi-me ao lugar onde, em 1170, São Thomas Becket foi martirizado, transformando o local em um centro de peregrinação.Logo chegou um homem e se ajoelhou para uma prece, seguido por outro que usava capa e capuz verdes e um arco preso às costas. Sem sombra de dúvida era The Yeoman acompanhando The Knight. Embalado por sua devoção, fiz uma oração antes de continuar meu passeio. Fui surpreendido pelo latido estridente de um cachorro. O animal estava no colo de uma mulher sentada em um banco na primeira fileira. A julgar pelas jóias era The Nun, entregue às orações matinais. "The engaginghy submersion of the feminine in the ecclesiastical": a descrição não poderia ser mais adequada. Na saída, um homem magérrimo amarrando um cavalo esquálido antes de adentrar em território sagrado. O aspecto de estudante empobrecido e o ar intelectual revelavam sua identidade: The Oxford Cleric. Esquivei-me. Não estava disposto a discutir filosofia aristotélica e sua necessidade na construção de um mundo mais digno e justo.

fotos: Mariana Mansurfotos: Mariana Mansur
Ruínas do castelo: encontro com The CookCatedral de Canterbury: centro de peregrinação medieval

Poucos passos depois fui interpelado por um homem de olhos esbugalhados e caracóis cor de palha pendendo suavemente da nuca. "Interessado no perdão de todos os seus pecados e em um lugar privilegiado no Paraíso?", perguntoume, exibindo um pedaço de papel envelhecido com o selo papal gravado em cera, no canto direito. Deduzi que era uma indulgência e antes de perguntar o preço, ouvi a oferta: 100 libras. Deixei The Pardoner e procurei um restaurante para almoçar. Não esperava nada sofisticado. Ao dobrar a esquina, observei um homem trajado com uma elegância forçada entrar em uma taverna. "Será The Franklin?", pensei. Descrito como "sensual delight was the true felicity in sight", resolvi segui-lo. Alguém que gostava de impressionar os outros com sua haute cuisine, freqüentaria o melhor restaurante da cidade. Fiquei desapontado ao constatar que era uma mera casa especializada em gordurosos "Fish and Chips". "O que você deseja?", perguntou-me o atendente, com um sorriso malicioso. Barba branca. Cabelos cobertos com um manto. Muito semelhante ao escritor Geoffrey Chaucer. "A especialidade da casa... e um pint de real ale", respondi hesitante. Confesso aos ingleses: adorei aquela refeição rústica que espantaria até o gourmet menos sofisticado. E a foto em posse da revista sensacionalista certamente provaria isso. Mas pecar contra o ritual da boa mesa é um prazer indescritível com a cumplicidade do pai da literatura inglesa. Sobretudo tendo uma indulgência plenária guardada no bolso do casaco.

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