Desde seu passado vicentino até se tornar um dos vinhos preferidos de Robert Parker
por Por Arnaldo Grizzo
Pai dos pobres. Assim São Vicente de Paulo era chamado. Segundo consta, sua bondade e caridade eram infinitas. Durante a Contrarreforma Católica, no auge da Idade Média, ele percebeu que era preciso evangelizar os povos do interior da França, especialmente a população mais carente.
Então, assim como Santo Inácio de Loyola havia criado a Companhia de Jesus – que estendeu seus poderosos braços para o Novo Mundo, recém-descoberto – Vicent de Paul (seu nome francês) fundou, em 1625, a Congregação da Missão, também conhecida como Lazaristas (pois estava estabelecida no colégio de São Lázaro, em Paris) ou Padres Vicentinos. Os clérigos que se juntavam a essa sociedade tinham a missão de evangelizar os mais pobres nas comunidades do interior da Europa. Assim começa a história do nome do Château La Mission Haut-Brion.
Em 1650, Olive de Lestonnac, conhecida como Dama de Margaux, resolveu deixar uma anuidade para obras de caridade cristãs. Herdeira de diversas propriedades, assim como outras viúvas famosas da época (mais especificamente em Champagne), ela também se destacou nos negócios, mas dedicou muito de sua vida à filantropia. Olive era sobrinha de Santa Joana de Lestonnac, que fundou a Companhia de Maria, que por sua vez era sobrinha do filósofo humanista Michel de Montaigne.
“Uma fazenda em Aubrion, na paróquia de Talence, além de um alojamento para os fazendeiros, uma oficina de vinhos contendo uma cuba grande, uma média e duas outras pequenas, 22 journaux (antiga medida que significava a porção de terra que um lavrador conseguia trabalhar em um dia) de vinhas, cerca de cinco barris de madeira, além de outros 6 journaux de vinhas”, dizia um documento que Jean de Fonteneil, diretor geral do clero de Bordeaux, na época, recebeu com o legado de Olive para as obras da cristandade. Os 22 journaux (pouco mais de 7 hectares) eram relativas ao Haut-Brion e os outros 6 (cerca de 2,5 hectares), ao La Mission.
O nome de La Mission vem da Congregação da Missão, organização fundada por São Vicente de Paulo, dito pai dos pobres
Na verdade, o desejo de Olive de que parte de suas terras fossem para a igreja só se concretizou em 1664, quando sua enteada e herdeira, Catherine de Mullet as passou para a congregação fundada por Fonteneil nos moldes dos Lazaristas. Em 1682, porém, como a ordem religiosa do padre bordalês não teve sucesso, a propriedade, enfim, ficou a cargo dos padres da Congregação da Missão, ou somente “A Missão”, como eram conhecidos.
Muito antes de os Lazaristas assumirem, o Château La Mission Haut-Brion já ostentava boa fama. As primeiras referências à propriedade são do século XVI. Na época, Louis de Roustaing, dito Senhor de La Tour d’Esquivens, era dono de uma parcela de terras chamada Arregedhuys. Os Roustaing foram a primeira família não pertencente ao clero a produzir vinho na paróquia de Talence. Em 1540, Louis vendeu essa parcela de terras para o negociante Arnaud de Lestonnac (avô de Olive), casado com Marie de Pontac, irmã de Jean de Pontac, proprietário de Haut-Brion, logo em frente ao terreno de Arregedhuys.
Enfim, foi com o investimento dos Lestonnac e depois dos padres lazaristas que o vinho se tornou famoso. Pierre, pai de Olive, foi quem mandou construir o Château de Haut-Brion. Os padres, a quem ficou destinada a parte de La Mission, por sua vez, destinaram muito de seu tempo ao vinhedo, eliminando arbustos indesejados, melhorando as técnicas de viticultura. Eles também resolveram construir uma capela que foi chamada de Notre-Dame d’Aubrion. A partir daí a propriedade definitivamente passou a ser conhecida como La Mission Haut-Brion. Em 1713, ergueu-se um edifício onde, anos depois, oito padres, quatro irmãos e cinco servos produziam 24 barris de vinho, o equivalente a 21,6 hectolitros.
Durante o século XVIII, o vinho feito pelos lazaristas era considerado um dos melhores da paróquia e, diferentemente de outros que só eram usados para as celebrações das missas, La Mission era negociado no mercado de Bordeaux. Foi quando chegou aos lábios do Duque de Richelieu (sobrinho do poderoso Cardeal Richelieu), um dos governantes da região de Bordeaux na ocasião. Apesar de preferir os borgonheses, ao provar o vinho dos padres, ele ficou encantado e passou a ordená-lo sempre para suas festas. Segundo relatos, na época, os preços de La Mission eram maiores do que quase todos os vinhos de Médoc, as exceções eram os Premier Cru.
Fazendo parte de uma congregação religiosa, La Mission, assim como praticamente todas as outras propriedades da igreja, foi confiscado pelo estado durante a Revolução Francesa. Durante a licitação, porém, a propriedade foi adquirida por três vezes seu valor, o que prova a grande reputação estabelecida pelos lazaristas.
Mesmo sem estar na classificação de 1855, o vinho do Château possui preços equivalentes aos dos Premier Cru
Em 1821, a família Chiapella, vinda de Nova Orleans, nos Estados Unidos, assumiu o Château. Célestin (filho adotivo de um rico genovês) e seu filho, Jerôme (que também gerenciou outras propriedades bordalesas, como Cos d’Estournel), fizeram diversas melhorias na vitivinicultura de La Mission, além de terem encomendado o portão de ferro forjado (símbolo do lugar) e terem trabalhado muito o mercado norte-americano. Mas não conseguiram ingressar na famosa Classificação de 1855.
Em 1884, a família decide vender a propriedade, que, até 1919, passou por diversas mãos, chegando à de Frédéric Otto Woltner, que já era proprietário do vizinho Château La Tour Haut-Brion. Na época, o vinho de La Mission era extremamente valorizado, com preços mais altos do que os de Médoc, sendo equiparado apenas pelo Haut-Brion. Os Woltner modernizaram a propriedade. Uma de suas “invenções” foi uma cuba de aço-vitrificada para controlar a temperatura da fermentação.
Em 1983, devido a disputas internas, os Woltner decidiram vender o Château, que acabou comprado pela família Dillon, que proprietária do Haut-Brion. Sob direção do Príncipe Robert de Luxemburgo, o Château passou por diversas renovações, tanto estéticas quanto na área de vitivinicultura, adquirindo estruturas ultramodernas. O trabalho certamente foi recompensado depois que o crítico Robert Parker deu 100 pontos para diversas safras (1955, 1959, 1982, 1989, 2000, 2009 e 2010). Em 2009, a Liv-ex (que monitora o mercado de vinho fino no mundo) propôs uma reclassificação da lista de 1855 e, nela, La Mission apareceu como Premier Cru, com preços equivalentes aos outros cinco Premier “oficiais”.
O vinhedo de La Mission fica em uma travessa das comunas de Talence e Pessac e pertence à denominação Pessac-Léognan. Ele fica em frente ao Château Haut-Brion, com o qual divide o mesmo tipo de solo pedregoso e elevado. A principal diferença é que o terreno de La Mission é menos ondulado e um pouco mais rico. O cascalho lá é constituído de pequenas pedras de vários tipos de quartzo. O subsolo contém uma mistura de argila e areia.
São 29 hectares, sendo 27 plantados com cepas tintas (40% de Merlot, 50% de Cabernet Sauvignon e 10% de Cabernet Franc) e 3 com uvas brancas (80% de Sémillon e 20% de Sauvignon Blanc), que dão vida a quatro vinhos: La Mission Haut-Brion (6 a 7 mil caixas por ano), La Chapelle de La Mission Haut-Brion (4 mil caixas/ano), La Mission Haut-Brion Blanc (ex-Château Laville Haut-Brion, faz-se de 400 a 500 caixas/ano) e La Clarté de Haut-Brion (ex-Les Plantiers du Haut-Brion, 1 a 1,2 mil caixas/ano). Até 2005 também se fazia o Château La Tour Haut-Brion, cujas uvas agora vão para o La Chapelle, principalmente.
Uma das singularidades do local é a densidade de plantas bastante alta (10 mil por hectare), o que resulta em um vinho muito rico, denso, de muita cor. “Isso é uma das chaves do vinho de La Mission”, diz Jean-Philippe Delmas, enólogo do Château. Nos brancos, a Sémillon é o diferencial, com 85% do blend, o que resulta em um vinho muito aromático, amanteigado, que lembra os de Sauternes, mas sem ser doce.
Algumas das safras mais celebradas de seu principal vinho são: 1878, 1921, 1928, 1929, 1937, 1945, 1947, 1949, 1955, 1959, 1961, 1982, 1989, além das mais recentes 2000, 2009 e 2010, que Parker considerou perfeitas.
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