O “mago” do Château Margaux deixa um legado de elegância e graciosidade
por Por Giuliano Agmont
Um buquê extraordinário, com elegância pura, riqueza incrível e classe. Cheio de juventude aos 30 anos. Um vinho realmente grande, um epítome da marca”. As palavras do crítico Steven Spurrier enaltecem um Margaux 1985 servido em 2015 durante o prestigiado jantar de inauguração da nova adega do Château Margaux – em comemoração aos seus 200 anos. As palavras dizem muito sobre um dos grandes personagens daquela noite, o enólogo Paul Pontallier, que perdeu a vida no fim de março de 2016, em decorrência de um câncer, prestes a completar 60 anos de idade.
Pontallier fazia parte de uma elite de cientistas do vinho, nas palavras de outra referência entre especialistas, a inglesa Jancis Robinson. Nascido em Bordeaux, em uma família de vitivinicultores seculares (os pais eram proprietários do Château La Loge Saint-Léger), ele se notabilizou por dois traços marcantes de sua personalidade, a elegância e o equilíbrio, a exemplo dos rótulos que ajudou a produzir.
Alguns o consideravam um mago de Margaux, ainda que suas ponderações acabassem invariavelmente por celebrar o terroir dos 262 hectares da propriedade onde trabalhou por mais de três décadas, uma das quatro melhores do Médoc segundo a famosa Classificação dos Grand Crus de Bordeaux de 1855, encomendada por Napoleão III. Apesar de inquestionáveis méritos de seu terroir, Margaux poderia ter perdido muito de seu prestígio sem as intervenções meticulosas de Pontallier, que chegou ao Château na safra de 1983 e foi decisivo na produção do Margaux 1985, degustado por Spurrier 30 anos depois.
Na época, ele era um jovem recém-saído da academia, com diploma de engenheiro agrônomo obtido em Montpellier e pós-graduação em enologia na Universidade de Bordeaux – onde foi discípulo do lendário professor Émile Peynaud. Pontallier também havia publicado um relevante artigo sobre o envelhecimento de tintos em barril e atuado por dois anos no Chile como professor – na ocasião, no início dos anos 1980, viajou por toda a América Latina e esteve no Brasil, onde visitou Garibaldi. Antes de enveredar pela enologia, porém, chegou a pensar em seguir carreira na medicina.
Por indicação de Peynaud, Pontallier, de apenas 27 anos, foi contratado pela também jovem Corinne Mentzelopoulos, 30 anos, que herdara o Château após a morte de seu pai, o magnata grego dos supermercados, três anos antes. Assim, Pontallier participou de projetos de restauração da propriedade ao replantar vinhas e melhorar a drenagem, além de renovar a adega e repensar a operação de vinificação. Seu principal desafio era reerguer o Château depois de mais de uma década de recessão e colheitas terríveis.
O que estava em jogo era o prestígio de uma casa cuja fama remonta ao período de Thomas Jefferson, que elegera o Margaux o melhor vinho de Bordeaux ainda no século XVIII, antes de se tornar presidente dos Estados Unidos (1801-1809). Nas mãos de Pontallier, o Premier Grand Cru Classé reviveu seus dias de glória com a graciosidade que lhe é peculiar. O enólogo soube fazer valer o terroir da propriedade. Aliás, uma propriedade onde se cultiva vinhas desde o século XVII, demarcada antes mesmo da construção do Château. Raro para um Cru Classé do Médoc, cerca de 90% dos atuais 78 hectares de vinhedos correspondem aos mesmos da Classificação de 1855.
Pelo menos 75% do vinhedo é de solo profundo em cascalho e argila grossa, ideal para o Cabernet Sauvignon – que é responsável por 90% do blend de seu principal vinho, cortado ainda com Merlot, Petit Verdot e Cabernet Franc. A chegada de Paul Pontallier ao Château Margaux em 1983 coincide com um ciclo virtuoso para este vinho francês. Um ponto de inflexão na história recente de uma das mais ilustres casas de Bordeaux, beneficiada em parte por questões climáticas.
No início, ao lado de Philippe Barré (seu antecessor) e depois imprimindo seu próprio modo de trabalhar, Pontallier construiu uma imagem que passou a se confundir com a do Château Margaux. Conseguiu isso produzindo “o melhor vinho possível”, como fazia questão de ressaltar. A devoção à personalidade do terroir somada à sabedoria de um vigneron consciente de seu papel permitiu a este obstinado perseguidor da excelência, sempre esbanjando elegância e conhecimento, tornar-se, também, um embaixador da casa, contando as histórias de cada safra de Margaux com uma exuberância singular.
No papel de embaixador, ele sempre buscou as melhores explicações em metáforas. Gostava de comparar seus vinhos à música, dizendo que, em ambos os casos, não é preciso ser um entendido para apreciar, e sentir. O grande vinho emociona tanto quanto uma obra-prima da música, sem complicações. Chegou a comprar também safras com filhos, dizendo que cada uma tem sua personalidade e requer um modo próprio de se lidar, como as crianças. Não por acaso, sempre tratou as safras que cultivou como um verdadeiro pai, independente do que obteve após o final do processo. Pontallier deixa a esposa, Beatrice, e quatro filhos, Guillaume, Thibault (que trabalha para Margaux como embaixador da marca na Ásia), Alice e Antoine.
Definitivamente, as degustações dos vinhos Margaux nunca mais serão as mesmas para aqueles que tiveram o privilégio de ter Pontallier à mesa. Sem o homem que busca a excelência em cada vinificação ou o contador de históricas que narra as sagas dos novos e antigos rótulos, a experiência perde um pouco de sua magia. Mas, seu legado se preserva no imaginário de quem conhece e aprecia o Château Margaux, um dos mais caros e celebrados vinhos do mundo.
Ninguém como ele conseguiu tirar o possível e o impossível deste Grand Cru Classé. Com uma sabedoria intuitiva, Pontallier acreditava que era preciso prudência e modéstia ao lidar com as vinhas, pois, tentando melhorá-las, pode-se desfazer certos equilíbrios. Como poucos, encarnou a modéstia e a humildade dos Grand Crus, que não têm nada a provar. Para ele, o objetivo nunca era a força do vinho em si, mas, sim, sua harmonia. Em uma de suas tiradas, disse que “nem sempre se aprecia a verdadeira força escondida no equilíbrio de um vinho”.
Valorizava a elegância, o equilíbrio e a finesse de um vinho sem que este deixasse de ser longo e preciso, com potência para se projetar na boca. O diretor-geral gostava de mencionar a palavra genialidade ao se referir ao terroir do Château Margaux. Sabia que era preciso expressar com exatidão e refinamento tal genialidade. E dedicou grande parte da vida a essa missão, buscando detalhes que aprimorassem as seleções, o que acabou levando a um avanço impensável há 20 ou 30 anos.
Fora de Margaux, Pontallier também deu consultorias em projetos de vinho na França, no Chile, nos Estados Unidos e na África do Sul. Em 1984, começou um empreendimento no Chile com seu amigo Bruno Prats, o Domaine Paul Bruno, atualmente Viña Aquitania. Recentemente, ajudou o filho Thibault a criar a marca Pont des Arts. Paul Pontallier se parecia com os vinhos Margaux. Impecável tanto no trato quanto nos trajes, exibia a graça que só um homem com sua cultura poderia ter. Sabia como poucos fazer com que seus interlocutores se sentissem especiais. Gostava de apreciar grandes vinhos. E sabia fazê-lo. Gostava de produzir grandes vinhos. E sabia como fazê-lo.